É fácil encontrar até crianças pequenas que sabem de cor o bordão de muitas influencers do YouTube: “Oi, meninas”, como abrem os vídeos, já é frase habitual no imaginário de internautas.
Na vida de Nathaly, Tiê e Luciene, não é diferente: na faixa dos 20 anos, elas são de uma geração que consome conteúdo digital com voracidade. Mais do que acompanhar produtoras de histórias online, as três se colocam em frente às câmeras para produzir seus próprios “cases”. Mas não sobre uma vida de glamour, compras ou viagens.
Para a jornalista Elena Wesley, elas são “utilidade pública”. Elena coordena o projeto Narra, uma agência de jornalismo formada por jovens repórteres criados em favelas cariocas, iniciativa do Observatório das Favelas, organização social sediada no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. Elena reforça a importância da reportagem comunitária, que denuncia situações vividas na periferia que nem sempre grandes veículos percebem.
Para além disso, celebra o movimento de jovens periféricos explorando assuntos diversos, como moda, beleza e finanças. “O favelado consegue falar de qualquer assunto a partir da sua própria perspectiva. Em uma sociedade tão preconceituosa e racista, as blogueiras têm um papel fundamental de informar. Elas também influenciam quem não é da periferia. A gente tem mania de estranhar o que é diferente na nossa própria vivência e esse é o perigo, porque disso surgem estereótipos nocivos”.
A história das narrativas da periferia não surgiu com o mundo online. Muito antes das redes sociais, na década de 60, a escritora mineira Carolina de Jesus preencheu pilhas de cadernos sobre sua rotina na favela e se tornou best-seller com o livro “Quarto de Despejo”.
Mas a internet tem se tornado uma aliada – ainda que 60% dos lares brasileiros das classes D e E não tenham acesso a ela, segundo a pesquisa TIC Domicílios 2018, do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br). Entre os brasileiros dessas classes que acessam a internet, 98% o fazem pelo celular. E 36% dos internautas das classes mais baixas postam textos, fotos e músicas criadas por eles. Na classe A, o porcentual sobe para 55%. “A internet foi um divisor de águas na periferia.
Antes, havia jornalismo impresso, TV e rádio, com determinadas pessoas falando de determinadas coisas na mesma perspectiva. A internet deu visibilidade a diferentes pessoas e opiniões”, diz Elena.
Kdu dos Anjos, gestor do projeto Lá da Favelinha, que promove atividades culturais para jovens no Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, concorda que a internet abriu portas, mas destaca que quem vive da periferia não depende apenas dela para se comunicar.
“A favela é favela e não precisa de internet pra isso, não tem manual. Quem não vive aqui e tem interesse procura quem são os grandes geradores de conteúdo, que estão postando tudo do dia a dia deles”.
Vegana, sem dinheiro e com 9.000 seguidores
Luciene Santos, 24, estava há seis meses adaptando-se ao veganismo, mas não encontrava pessoas ao redor para trocar dicas sobre a dieta sem alimentos de origem animal. “Tive que ir atrás de informação, porque as pessoas da periferia onde eu morava não sabiam do assunto”.
Nesse caminho, esbarrou em um obstáculo: o mundo de amêndoas, tâmaras e eventos pagos de veganismo mostrados na internet não cabiam no baixo orçamento. Uma saída foi se inspirar na página Vegano da Periferia, uma conta no Instagram com mais de 250 mil seguidores que seleciona informações sobre veganismo a baixo custo.
Para provar que ele é possível, há cerca de um ano ela criou o perfil Sapa Vegana, em que agrupa receitas como queijo de amendoim e moqueca de banana da terra. Até agora, atrai quase 9.000 seguidores e ainda não faz do canal uma fonte de renda.
“Como estagiária de direito, eu ganho dois terços de um salário mínimo, mas as pessoas acham que não é possível ser vegana sendo pobre”. Segundo ela, as contas com comida foram de R$ 400 para R$ 150 mensais com o veganismo – e frequentando “fim de feira”. Hoje, ela mora no Jaraguá, bairro da periferia de São Paulo.
O “sapa”do nome é abreviatura de “sapatão”. “Quando eu me assumi, passei por muita coisa, saí de casa, coisas por que a maioria das pessoas LGBT passam. E acho importante dizer em todas as minhas lutas que sou LGBT. Minha intenção é atrair pessoas como eu”, diz.
Dos cachos coloridos às críticas a Marcelo Crivella
Na perspectiva de Elena Wesley, jornalista do Observatório da Favela, falar sobre “transição capilar” (adoção do cabelo natural) foi o estopim para o surgimento de mais blogueiras negras e de periferia. Foi justamente explorando cabelo e beleza que Tiê Vasconcelos, 25, iniciou seu Instagram. “Eu comecei falando sobre cabelo cacheado e meus cuidados com a pele. Mas, depois, passei a falar da minha realidade”, diz.
Essa é a realidade que ela vive no Complexo do Alemão, um dos maiores conjuntos de favelas do Rio de Janeiro. No Instagram, mais de 68 mil pessoas acompanham o dia a dia de Tiê, que reveza as fotos destacando o cabelo multicolorido com “stories” ao som de tiroteios e notícias sobre mortes no morro – como a da menina Ágatha Félix, atingida no final de setembro.
Tiê acaba de inaugurar um canal no YouTube, onde mostra sua “casa na favela” – um ambiente pequeno, mas bem-cuidado, onde exibe móveis usados que reforma com o namorado. “As pessoas acabam criando estereótipos da favela, de barracos de madeira. Tanto que recebi comentários da galera falando que nem moro em uma”, diz.
Para chamar atenção do prefeito do Rio, Marcelo Crivella, para questões que ela considera importantes, Tiê criou o perfil #CrivellaCorreAqui. A conta reúne montagens de cenários problemáticos da cidade (como um buraco na avenida Itaoca) ao beijo entre dois homens de uma HQ, popularizado na Bienal do Livro do Rio após tentativas de censura pelo prefeito.
“Fiz até uns adesivos para colar perto do buraco da Itaoca”, conta Tiê. O discurso político mais evidente tem tido um custo. “A produção de conteúdo já é uma fonte de renda para mim, mas algumas empresas se afastaram por causa do meu posicionamento quando comecei a mostrar a minha realidade”.
E a av. Itaoca continua interditada... #CrivellaCorreAqui #censura
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A guru financeira dos “baixa rendinhas”
Os seguidores da blogueira Nathaly Dias, 26, têm um apelido carinhoso: são os “baixa rendinhas”. Eles são quase 85 mil no Instagram e 124 mil no YouTube. Entre imagens da limpeza do banheiro de casa, vídeo mostrando os arredores da favela e fotos com o namorado, encontram um tema central – as finanças.
“Eu não vou falar para as pessoas investirem no Tesouro Direto, nada disso, mas educar de forma que elas não precisem comprar todas as coisas que veem na televisão, mostrar que não precisam ter essa vida que as blogueiras padrão dizem que a gente tem que ter”, diz a carioca, ou “Blogueira de Baixa Renda”.
Ela tinha 16 anos quando ganhou o primeiro computador. A internet já estava cheia de youtubers e influenciadores, mas Nathaly não encontrava quem se parecesse com ela. “Eu via vidas perfeitas, namorados perfeitos e me perguntava cadê uma pessoa parecida comigo na internet”.
Dez anos depois, em 2018, foi para o Instagram – depois de dividir em várias vezes um celular no cartão de crédito da mãe e utilizar o aparelho para produzir conteúdo. A ideia é ensinar “pobres” (como ela mesma chama o público) a equilibrar as finanças sem sofrimento.
Para isso, criou conceitos como o “minimalismo baixa renda” – em 20 vídeos, explica como diminuir o consumo ao necessário. “Eu fiquei muito inspirada por um documentário da Netflix sobre minimalismo, mas só via gente muito rica e num patamar alto de carreira praticando”.
Para ela, sucesso financeiro significaria pagar um plano de saúde para a família – o que não conseguiu ainda. “Dinheiro faz com que a gente tenha acesso a coisas que não tem hoje na periferia, como saúde e educação. Acho que para a gente, que é favelado, periférico, ele é necessário para o mínimo, conquistar o básico”.
Outras conquistas têm surgido, e ela abandonou o estágio em administração – está no último período. “Minha vida financeira era um inferno com o estágio. Ficava à noite acordada pensando em como pagar as contas”, diz.
Agora, sua única renda vem do conteúdo que produz, apoiada por patrocinadores como o banco Superdigital. Os “mimos” também estão chegando: “Eu recebi uma mochila cheia de maquiagem que não tem condição de um ser humano usar nem em cinco anos”, brinca. É com as primas que muitos desses presentes vão parar.
Por trás da câmera
A casa de Nathaly e a comunidade são os cenários constantes de produção. Mas alguns aspectos do morro ficam de fora – em um “story” do Instagram dela, por exemplo, seguidores ouviram tiros e recomendaram que ela apagasse o material, por segurança.
Ela seguiu o conselho. “Dá mais medo por causa da Marielle. Se, no Estado onde eu moro matam vereadora, imagina a criadora de um canal. Prefiro não me envolver em questões polêmicas”.