Racismo

Brasileiros nunca demonstraram tanto interesse por questões raciais como em 2020

Protestos antirracistas em todo o mundo aliados ao trabalho do movimento negro no país ajudam a compreender fenômeno


Publicado em 17 de setembro de 2020 | 03:00
 
 
 
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Estimulado pela organização do povo negro no país, pelas dinâmicas das redes sociais e pela insurreição de protestos antirracistas em todo o mundo, o interesse dos brasileiros por assuntos relacionados a questões raciais nunca foi tão grande. É o que se pode inferir a partir de uma série de indicativos extraídos de plataformas digitais ao longo deste 2020. 

O evento catalisador desse fenômeno, que já vinha sendo construído ao largo dos anos, parece ter sido o assassinato do afro-americano George Floyd, que, no dia 25 de maio, foi asfixiado por nada menos que oito minutos por um policial branco com histórico de uso da violência em abordagens. A cena recrudesceu a sensação de indignação que há muito orbita a sociedade e desencadeou a maior onda de protestos contra o racismo nos Estados Unidos desde a morte do líder Martin Luther King Jr, em 1968. Quase cinco meses depois, os atos públicos do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam, em português) são justificadamente renovados a cada vez que um novo caso de violência institucional contra pessoas de pele preta vem a público.

A onda de protestos logo se espalhou por diversos países e chegou também ao Brasil – nação que tem longo histórico na realização de mobilização contra a violência do Estado direcionada à população negra, mas que, na maioria das vezes, apenas assistia a tais manifestações de uma perspectiva esvaziada, tratando as reivindicações, por exemplo, como atos de vandalismo. Desta vez, no entanto, o barulho parece vir despertando uma maior fatia da população para a luta antirracista. Um indício dessa tendência é fornecido por um estudo realizado pela Ipsos, com entrevistados de 15 países e divulgado no final de junho. De acordo com o levantamento, 76% dos brasileiros apoiam os protestos pacíficos e as manifestações que estão tomando as ruas norte-americanas (e de outros países) desde o assassinato de Floyd.

E a internet, claro, também se verteu em terreno de disputa e passou a ecoar, com fôlego inédito, toda a indignação que se fez palpável mundo afora. Vide o abaixo-assinado que pede justiça para o caso de George Floyd, hospedado na plataforma digital Change.org, que tem recorde de apoiadores: foram 19,6 milhões de signatários até agora – mais que o triplo em comparação à segunda maior campanha promovida pelo site, que soma 5,5 milhões de apoiadores.

Brasileiro está mais engajado virtualmente, indicam dados da Change.org

“O Brasil é a quarta nação mais engajada na petição (do caso Floyd). O interesse é tão grande que também reverberou em projetos feitos no país”, explica Anne Galvão, conselheira de diversidade e inclusão da organização. Para além da solidariedade em relação ao trágico episódio, afinal, o país tem muito a dizer sobre seus próprios mortos e sobre o seu próprio povo que, por sua cor, é vítima de violações de direitos. “A cada 23 minutos, um jovem negro morre no Brasil”, revelou a Organização das Nações Unidas (ONU), com base em números do Mapa da Violência, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), ao lançar, no início de junho, a campanha “Vidas Negras”, denunciando a violência relacionada ao racismo que perpassa todo território nacional.

Neste contexto, Anne relata que, até 2019, o Change.org recebia poucos abaixo-assinados dedicados a pedidos de justiça e de reparação ante situações flagrantemente racistas. Além disso, quando eram registrados, as campanhas pouca solidariedade pareciam despertar. Exemplo disso, a defesa de um novo pacto de segurança pública depois de uma ação policial ter resultado na morte de nove pessoas na madrugada de 1º de dezembro, no bairro Paraisópolis, em São Paulo, só mobilizou cerca de 3.500 apoiadores. 

Hoje, por outro lado, nota-se que o volume de campanhas relacionadas à questão racial inscritas na plataforma vem subindo. Tanto que a ferramenta – que conta com mais de 390 milhões de usuários em todo o mundo – estreou, recentemente, uma homepage específica para esse tipo de conteúdo: o #VidasNegras, que reúne, atualmente, 90 petições. Algumas delas já ultrapassaram ou estão perto de ultrapassar a marca de 3 milhões de signatários, caso do pedidos de justiça ante a execução de João Pedro, que, dentro de casa, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro, foi morto a tiros por policiais em 18 de maio.

Buscas no Google e pesquisas nas universidades evidenciam crescente interesse

O aumento de interesse por temas relacionados às questões raciais também é observado pelo histórico de buscas feitas por meio do Google. Um levantamento do coletivo Influência Negra, que busca ampliar a visibilidade a influenciadores, youtubers e criadores de conteúdo negros e negras, demonstrou que alguns verbetes – como “privilégio”, “antirracismo”, “antirracista” e “o que é racismo estrutural” – foram pesquisados neste ano em uma frequência até então inédita. Para se ter uma ideia, a busca por “caminhos para combater o racismo” cresceu mais de 5.000% de 2019 para 2020.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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Nas universidades também percebe-se um crescimento expressivo do número de estudos brasileiros sobre desigualdade racial e racismo nas duas últimas décadas: as publicações acadêmicas sobre o tema aumentaram 28 vezes, indo de cinco, em 1999, para 147, em 2018 – segundo levantamento feito pelo jornal Folha de São Paulo. A publicação ainda informa que o país é o quinto em produção acadêmica nessa temática, com 4% do total global. Os Estados Unidos lideram com 59%.

Manifestações internacionais, ações afirmativas e entendimento do racismo como estrutural ajudam a entender fenômeno

A psicóloga Cristiane da Silva Ribeiro, integrante da N’ZINGA, um coletivo de mulheres negras da região metropolitana de BH, pontua que um emaranhado de construções ajuda a compreender esse fenômeno de “tomada de consciência”. Ela cita as manifestações antirracistas que acontecem em diversos países ocidentais como um fator relevante. Outro são as ações afirmativas, “que garantiram a ampliação desse debate a partir de uma presença mais ampliada da população negra nas universidades, promovendo novos olhares sobre questões históricas”, avalia. “Quando temos a entrada no campo acadêmico, a partir de cotas, outras narrativas se tornam possíveis”, complementa ela.

Fator fundamental para essa virada de chave, indica, é a mudança na forma como o racismo é percebido. Se anteriormente era visto como algo individualizado, ligado ao comportamento, agora é lido como algo estrutural e estruturante da sociedade brasileira. “A perspectiva de racismo estrutural, que engloba também a branquitude e seus privilégios, qualificou o debate: o racismo passa a não ser mais exclusivamente sobre um comportamento de alguém e se torna algo da estrutura, da construção social e, portanto, deixa de ser um problema exclusivo da população negra”, avalia.

“Acho que a gente viveu, no Brasil, durante toda sua constituição, o mito da democracia racial e essa busca de uma legitimação constante de que era essa a nossa forma de existência, de que o Brasil era um país harmonioso. À medida que isso começa a cair, temos vários desdobramentos, entre eles a revisão da branquitude: pela primeira vez, temos o branco pautado, chamado a rever os lugares que ocupa na sociedade. Temos essa figura do homem, branco e heterossexuais, que era posta como universal, sendo questionada. E não se trata de acusar alguém de racista, mas, sim, de ter ciência de uma série de privilégios que são inacessíveis para outra parte da população”, completa.

Para ela, “estamos no meio de um processo de construção de um novo discurso social. Por isso, a gente está incluindo novas narrativas, não disputando. O que se propõe é um convite para a prática cotidiana, o que inclui, eventualmente, ceder espaços”, argumenta.

“Foi necessário que houvesse uma comoção com o racismo em outro país”

Membro da Uneafro Brasil e da Coalizão Negra por Direitos, Douglas Belchior celebra a tomada de consciência, mas é crítico ao fato de o assunto ter demorado tanto a se tornar relevante para parcela da sociedade. “A imprensa, formadores de opinião, artistas e intelectuais têm sim dado mais atenção à pauta racial, muito em função do impacto das manifestações a partir dos EUA no contexto do assassinato de George Floyd. Infelizmente, foi necessário que houvesse uma comoção com o racismo em outro país, para que se sentissem constrangidos com a violência racial do próprio país, onde temos um George Floyd a cada 23 minutos”, critica. 

Belchior, que é professor de história, lembra que “a denúncia do racismo sempre foi promovida pelo movimento negro brasileiro. Graças à permanente e cotidiana revolta das pessoas negras diante do racismo, conseguimos fazer desta realidade um tema relevante – e que, hoje, não pode mais ser ignorado”, situa. “Precisamos superar o racismo. Para isso é necessário enfrentar os que ganham com ele e por isso, não querem que nada mude. Mas vamos enfrentar e mudar!”, conclui ele.

Os pontos levantados por ele são questionados também pela multiartista, pesquisadora e cientista Zaika dos Santos. Para a estudiosa, o debate do combate ao racismo não deve partir de uma perspectiva nortecentrada – isto é, deve se inspirar e refletir a luta do próprio povo negro e não se pautar apenas diante da reação ao racismo em países ricos e culturalmente hegemônicos.

Zaika assevera que a luta antirracista “não deve ser limitada a uma sensibilidade momentânea” e argumenta que pessoas não negras devem incorporar posturas antirracistas ao cotidiano delas: “O racismo não pertence a nós, afrodescendentes, e sim à cognição e à historicidade branca colonialista, eugenista, universalista abstrata e hegemônica que versa a dominação sobre a diversidade”, diz.

Redes sociais e até sensação de vulnerabilidade ante a pandemia da Covid-19 também são fatores

Já o Denilson Tourinho, ator, mestre em educação e idealizador do Prêmio Leda Maria Martins de artes negras, acredita que velocidade com que as informações são disseminadas é um dos fatores da equação que resultou nessa crescente de interesse por temas raciais. “Tudo é transmitido de imediato e ao vivo. É como se estivéssemos presentes em todos os locais em que acontecem os atos e, fundamentalmente, passamos a participar também das reflexões”, examina.

Outro elemento, diz, é a sensação de vulnerabilidade quase universal causada pela pandemia. “Essas discussões nem sempre chegavam para todas as camadas da sociedade e, mesmo que chegassem, muitos não se sentiam sensibilizados para esses dados, que eram vistos como algo fictício. Agora, há uma inquietação que tirou tantos do lugar de conforto”, elabora Tourinho, lembrando, por outro lado, que as condições sociais afetam a forma como a doença é manifesta na sociedade.

Compreensão de que a sociedade é estruturalmente racista não implica em transformação imediata

O fato de haver uma tomada de consciência, não significa um reverbero imediato em relação a ações práticas, algo que pode ser especialmente complicado em um país que, historicamente, quis acreditar no mito da democracia racial.

Uma pesquisa do Instituto Ethos com as 500 empresas de maior faturamento do Brasil, por exemplo, demonstrou que 64% dos gestores reconhecem que, no quadro de executivos, há menos negros do que deveria. De acordo com o estudo, pretos e pardos são até 58% dos aprendizes e trainees, mas apenas 6,3% deles estão em cargos de gerência. Entre os executivos, são apenas 4,7% e, considerando um recorte de gênero, apenas 0,4% são mulheres negras.

E, mesmo cientes de que há um problema a ser enfrentado – há evidências que companhias com mais diversidade étnica são mais propensas a obter resultados acima da média –, 85% desses gestores admitiram que não possuem planos para reverter esse quadro.

Diante desses dados, é fácil constatar como “a falta de representação, para além dos espaços políticos, é ampla e permeia também o setor privado – uma área em que ações afirmativas ainda são quase nulas”, analisa o publicitário Dú Pente. Pós-graduado em ciência política, ele acredita que, se não existirem diretrizes e normativas que estabeleçam processos de busca por igualdade, “a tendência é que o status quo se mantenha e a referência siga sendo a branquitude como norma”, pontua.

“Pautar o antirracismo garantindo que a democracia seja democratizada”

Na esfera pública, Dú Pente defende que ações afirmativas mais robustas e melhor fiscalizadas são o caminho para encurtar a desigualdade racial. Sobretudo, “é importante que crianças negras e não negras tenham uma educação antirracista para que esse ciclo cesse”.

Em outra frente, sublinha ser fundamental “pautar o antirracismo garantindo que a democracia seja democratizada. “Uma ação recente que exemplifica o que pode ser feita é a última decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) (que já é válida para as eleições deste ano) sobre a distribuição do fundo partidário proporcional para candidaturas de pessoas negras e de pessoas brancas no Brasil”, comenta.

“Entendendo que a democracia custa caro, esta é uma ação que, na prática, impacta nos processos democráticos, já que há uma subrepresentação gigantesca: mais de 80% dos eleitos são brancos na maioria das casas legislativas”, sinaliza. Para efeito de comparação, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), os negros (pretos e pardos) eram a maioria da população brasileira em 2014, representando 53,6% da população. Os que se declaravam brancos eram 45,5%.

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