Os cantos e encantamentos da religião de matriz africana que surgiu na Chapada Diamantina, na Bahia, em meados do século XIX, estão eternizados no recém-lançado site Memória das Cantigas do Jarê, que contém um arquivo digital com textos, fotos históricas e cantigas transcritas e gravadas. 

Nove lideranças religiosas do município de Lençóis foram entrevistadas e convidadas a entoarem as principais cantigas das cerimônias, totalizando 445 versões em arquivos de áudio. 

Os registros sonoros foram realizados nos terreiros e depois mixados em estúdio. “O objetivo é preservar também as vozes, tonalidades e ritmo conferido por cada uma das lideranças”, explica Paula Zanardi, antropóloga e coordenadora do projeto.   

O que difere o jarê de outras religiões de matriz afro é a sua forte influência indígena, tanto nos rituais como na cosmologia. “A incorporação de espíritos indígenas aos seus ritos é tão marcante que todas as entidades podem ser referidas como caboclas. Essa influência pode ser vista em sua música e dança em ritmos acelerados”, comenta a antropóloga. 

Ela explica que “as músicas entoadas durante os cultos possuem um papel central na religião, pois é por meio delas que se faz o contato com os caboclos. E para cada entidade existe um conjunto de cantigas específicas que são ‘trazidas’ durante a incorporação”. 

A arte do site foi criada por Fernanda Cogo, designer e mãe pequena de terreiro de umbanda, e mescla símbolos tradicionais da matriz afro com imagens dos pejis, nome dados aos altares das casas de jarê. A colagem da página inicial do site foi criada a partir de fotografias dos elementos dos terreiros de jarê.

“Conforme o visitante desce o rolamento da página, ele vai adentrando uma cerimônia de jarê com cânticos para Ogum. O fundo do site te leva noite adentro, cantando para a Aldeia d’Água, Iansã, Xangô etc. até amanhecer com os cantos para Cosme e Damião.

A plataforma traz ainda uma coletânea com mais de 300 cantigas transcritas originalmente pelo antropólogo Gabriel Banaggia”, finaliza a antropóloga.

SERVIÇO: O arquivo digital Memória das Cantigas do Jarê pode ser acessado pelo site: www.cantigasdojare.com.br  

 Encontro da cultura Yorubá com indígena 

 O antropólogo Ronaldo Senna define o jarê como um candomblé de caboclo, um culto resultante do encontro de entidades Yorubá com as nativas da região da Chapada Diamantina, que seriam espíritos descendentes de índios. 

Este sempre foi o mundo de Edcléia Lopes de Souza (Cleinha), 40, filha biológica de Cosme José de Souza, 85, o mais velho líder religioso da comunidade e dirigente da Casa de Cosminho, e filha de santo de pai Gil de Ogum, que morreu recentemente. “Desde que nasci vivo a religião jarê. Somos sete irmãos e nos dias de festas nos revezamos nas diversas funções”, diz ela. 

Cleinha fala com orgulho dos encontros com os encantados. “A festa de Cosme e Damião começa no dia 22 de setembro e termina às nove da manhã do dia 24. Tem caruru na abertura, ronda da casa, e todos se vestem de branco e cantam para Ogum, Cosme e Damião e depois para os orixás das águas e das matas, ao som dos atabaques. Ver nossa cultura eternizada no projeto Memória das Cantigas do Jarê é muito bacana”, celebra. (AED) 

A jornalista Ana Elizabeth Diniz escreve neste espaço às terças-feiras. E-mail: anabethdiniz@gmail.com