Dani Marino, editora do portal de cultura pop Minas Nerds, é fã dos filmes do cineasta Woody Allen há décadas, a ponto de decorar diálogos de longas como “Vicky Cristina Barcelona”.
Mas ela não tem assistido às produções mais recentes do diretor – já não se identifica com as personagens femininas frequentemente apaixonadas que ele cria e, além disso, está decepcionada devido às acusações de abuso sexual que recaem sobre ele.
Dani não é a única: para muita gente, Woody Allen está “cancelado”. Não, ele não morreu nem deixou de fazer cinema. É só mais um alvo da cultura do cancelamento.
Para o dicionário “Macquire”, o mais popular do inglês australiano, esse é o termo que define 2019. Ele o explica como “atitudes de uma comunidade para interromper o apoio a uma figura pública, como o cancelamento do papel dela em um filme, o banimento de uma música dela ou sua remoção das redes sociais. Geralmente, essas atitudes são uma reação a acusações sobre comentários ou ações inaceitáveis socialmente”.
Um artista falou algo controverso com o qual você não concorda? Pela lógica do cancelamento, você pode recorrer à rede social mais próxima e declarar: ele está cancelado. Em muitos casos, o cancelamento é uma denúncia contra declarações e atitudes consideradas racistas ou homofóbicas, por exemplo.
Diga-me quem cancelas...
"Se quero falar para o mundo nas minhas redes sociais que sou feminista, pego o caso de uma celebridade e me posiciono a partir dele”, elabora Fernanda Medeiros, pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Imagem e Sociabilidade (Gris), da Universidade Federal de Minas Gerais. Cancelar, portanto, transforma-se em afirmação da identidade de um grupo – por isso, é comum entre minorias.
Nas eleições de 2018, a cantora Anitta foi bombardeada por mais de 214 mil posts no Twitter marcados com a hashtag “AnittaIsOverParty” (algo como “festa para celebrar o fim da Anitta”). O movimento partiu de um público LGBT que lamentava o fato de a cantora não se posicionar contra Jair Bolsonaro.
Mais do que demarcar posições sociais, cancelar pode servir para evidenciar pautas importantes, como os casos de Woody Allen e do ator Kevin Spacey, que giram em torno de acusações de abuso sexual. “Isso abre portas para debater a questão do assédio”, aponta Medeiros.
Um estudo publicado neste ano por pesquisadores da Universidade Yale (EUA) avaliou os efeitos do movimento MeToo, no qual mulheres contam, nas redes sociais, suas histórias de abuso sexual inspiradas por celebridades que acusaram o figurão do cinema Harvey Weinstein.
A pesquisa descobriu que, nos primeiros três meses da campanha, iniciada em outubro de 2017, as denúncias de crimes sexuais aumentaram, em média, 14% nos países avaliados, como EUA e Austrália.
Cancelado, eu?
“Woody Allen pode até ter perdido contratos, mas tem mais de 80 anos e é um diretor muito profícuo. Não acho que vá ficar pobre por isso”, reflete Dani, levantando a questão: cancelamento sem malefícios práticos na vida do artista é cancelamento de verdade? Ela mesma responde: “Não, só muda a vida de quem está cancelando. A pessoa fica em paz consigo mesma”.
Atitude negativa
Em outubro, o ex-presidente dos EUA Barack Obama reuniu-se com jovens em um debate e alertou contra a cultura do cancelamento: “Ela não é ativismo. Não traz mudanças. Se tudo o que você faz é jogar pedras, provavelmente não vai chegar muito longe”.
A antropóloga e cientista social Rosana Pinheiro-Machado concorda: “Cancelar é sempre negativo. O problema não é a crítica – criticar posições públicas é fundamental. O problema é quando isso escorrega para uma negação do sujeito, do que a pessoa tem a dizer e do que faz”.
Com postura politicamente à esquerda, ela lamenta ao ver pessoas desse espectro cancelarem alguém por um posicionamento, pois identifica traços de uma direita mais extrema, na indisposição ao diálogo.
Pequenas palavras
Há quem seja cancelado depois de uma única declaração considerada problemática pelo público. Vem daí mais uma crítica a essa cultura – a de que não daria chance ao aprendizado.
A própria Rosana, que congrega quase 80 mil seguidores no Twitter, afastou-se da rede por dois dias depois de receber vários comentários contra um post seu, em que criticava quem é contrário a Bolsonaro e que diz “eu avisei” quando decisões do político incomodam seus eleitores. “As pessoas me cancelaram. Eu poderia ter mudado de opinião (com críticas). Isso é muito estúpido”, disse.
Frases
“O cancelamento não muda a vida da celebridade. Só a de quem está cancelando.”
Dani Marino
Editora do portal Minas Nerds
“A cultura do cancelamento abre portas para debater pautas coletivas importantes.”
Fernanda Medeiros
Pesquisadora de celebridades
“O cancelamento é fechar o debate. Essa cultura é um comportamento de manada.”
Rosana Pinheiro-Machado
Antropóloga e cientista social