Comportamento

Amores platônicos são parte do processo de amadurecimento

Sentimento pode indicar medo de rejeição e ser um problema se causar angústia


Publicado em 10 de dezembro de 2020 | 03:20
 
 
 
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Bastou uma conversa à espera do elevador para que o artista plástico Marco Oliveira, então recém-chegado à casa dos 50 anos, desenvolvesse um afeto assumidamente platônico por sua vizinha, que até aquele instante era uma completa desconhecida. Naqueles breves minutos em que se conheceram, ela perguntou se era ele quem, tempos antes, interpretava no saxofone canções como “Tenderly”, composição do norte-americano Walter Gross que foi gravada pela primeira vez como uma valsa pelo pianista brasileiro Dick Farney e que depois foi transformada em jazz e se popularizou na versão de Nat King Cole. O encontro coincidiu com uma época em que Marcão, como o tatuador e designer é conhecido, havia se distanciado da prática musical, pois o entusiasmo que lhe é característico tinha se perdido junto ao fim de um relacionamento de 25 anos. Saber, então, que a vizinha diariamente se aproximava da janela para ouvi-lo era revigorante. “Eu tocava para ela e sabia que ela estava lá e esperava por isso”, comenta.

Embora de alguma maneira tivessem forjado um vínculo e, pela música, se comunicassem, nenhum deles buscou estabelecer uma relação com o outro para consumar aquele amor não confidenciado. E Marcão tampouco se sentia preparado para entrar em uma nova relação naquele momento. Algo abstrato, o sentimento que passou a carregar consigo depois daquele furtivo encontro era capaz de resgatar o seu olhar de encantamento para as coisas da vida.

Contudo, diferentemente do que aconteceu com Marcão, esses amores – que crescem em nós sem que o outro saiba que é desejado – nem sempre são saudáveis. “Essa manifestação, quando ocorre na fase adulta, pode indicar dificuldades da pessoa em efetivar e em se entregar a um amor que fosse mais carnal”, aponta a psicóloga e sexóloga Sônia Eustáquia da Fonseca. “Se já vivemos um período em que a genitalidade está presente, então é hora de vivermos amor e sexo, buscando a correspondência desse sentimento, que é o contato físico”, acrescenta, lembrando que, se estamos vivendo apenas uma dessas dimensões e isso nos tem causado sofrimento, é preciso estar em alerta e buscar ajuda. Por outro lado, a especialista pondera que há aspectos mais positivos atrelados a essa emoção, que pode, de fato, ser inspiradora.

A psicóloga clínica Telma Cunha acrescenta que esse comportamento está vinculado à característica humana de buscar acolhimento e de evitar situações em que se possa sentir-se rejeitado. Algo natural, mas que se torna um problema quando o medo do “não” transforma-se em algo imobilizador, repercutindo em quadros de angústia. Comumente, a origem desse modo de agir está associada à autoestima baixa e à história de vida. “Atendo muitos casos em que noto que os pacientes se sentem inadequados, em que têm a certeza que serão rejeitados”, considera.

Coordenadora do Núcleo de Psicologia Seu Lugar, a também psicóloga clínica Leni de Oliveira indica que o amor platônico está umbilicalmente associado ao romântico. “Eles estão nesse mesmo campo da idealização, daquilo que não é real e que está sempre no campo das possibilidades, da fantasia, mas que não chega a se consumar de fato”, diz. Ela também liga o sentimento ao medo do sofrimento – “quando o sujeito tem medo de sofrer por amar, tornando-se mais cômodo ter esses sentimentos só para si”, pontua.

Construção do eu

Para o estudante de teatro Johnny Gellmann, a experiência de viver um amor platônico na adolescência foi arrebatadora. Em 2013, aos 16 anos, ele foi a um congresso em Brasília, onde se apaixonou por um dos participantes. Preferiu, naquele momento, deixar o sentimento reservado para si e não se declarar ao rapaz. Ao mesmo tempo, aproveitou a oportunidade para se abrir quanto à própria sexualidade para dois amigos que o acompanhavam. De alguma maneira, sentir-se apaixonado naquela semana significou um passo importante para o seu processo de autoaceitação. E, talvez por ser uma emoção que lhe fez bem, até hoje nutre pelo jovem um afeto singular. “Inclusive, ele está mais bonito agora”, reforça o ator em formação, indicando que acompanha o motivo de sua paixão adolescente nas redes sociais.

O meio virtual, aliás, representou a quebra de paradigmas do que se entende por amor platônico. “Antes, era algo muito mais comum na adolescência. Mas isso mudou. Hoje, os adolescentes utilizam-se de redes sociais e fazem pelo menos um contato declarado para outra pessoa. Pode ser que não tenha uma correspondência física, mas é diferente (de quando o sentimento não é revelado)”, argumenta a sexóloga Sônia Eustáquia da Fonseca. A pandemia da Covid-19, por sua vez, também favoreceu a vivência de relações mais abstratas. “Há um impedimento de chegar perto, de concretizar um amor, então é um escape esperado”, complementa a especialista.

Amor platônico é importante para o desenvolvimento pessoal

“Viver amores platônicos é algo que vai nos acompanhar durante a vida toda, sendo um fenômeno que ocorre com intensidade maior na adolescência porque faz parte desse movimento de amadurecimento. É algo que vou viver primeiro na cabeça, calculando riscos e ganhos, para depois viver na prática”, comenta a psicóloga Leni de Oliveira.

Assim, ao desenvolver um sentimento platônico, uma pessoa que sai de um relacionamento achando que nunca mais vai amar alguém começa a notar que poderá, sim, deslocar esse investimento de tempo e de energia para outras pessoas. “É como se nos ajudasse a elaborar que podemos voltar a viver uma paixão, que nossa capacidade de nos apaixonar não se perdeu com o fim daquela relação. E, daí, vamos perdendo o medo de viver isso na realidade”, comenta em uma análise que faz lembrar o caso de Marcão, que abre esta reportagem.

A mesma lógica norteou a história do estudante de teatro Johnny Gellmann. “Se a pessoa está em um processo de aceitação, ao se permitir vivenciar esse amor platônico, vivendo essa emoção apenas na sua cabeça, ela, de alguma maneira, começa a se permitir amar alguém de mesmo gênero, por exemplo. Logo, para que traga esse amor para a realidade, começa a entender que terá que trazer questões da sua sexualidade à tona”, avalia. “É meio aquela história: treino é treino, e jogo é jogo”, brinca.

Adolescência. Amores platônicos são, por vezes, consequência da busca por novas referências, um fenômeno típico da adolescência, quando as figuras maternas e paternas deixam de ser os únicos e centrais modelos a serem seguidos. É como se o sentimento de amor se misturasse ao de admiração, sendo comum, por exemplo, que grupos de pessoas nessa faixa etária se apaixonem por uma mesma celebridade que tenha seu apreço.

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