Aos 71 anos, o aposentado Joaquim Borges redescobriu o gosto pela marcenaria. Quando desocupado, ele dedica-se a criar brinquedos de madeira para seus oito netos em um exercício de imaginação à moda antiga, sem auxílio de recursos como vídeos tutoriais. À medida que os itens ganham forma, orgulha-se de ver esculpir no rosto das crianças largos sorrisos. E até os adultos se descobrem privilegiados pelas habilidades do, hoje, artesão. “De vez em quando faço uns presentes, tipo uns porta-temperos, e dou para os mais chegados”, relata. Aliás, amizades não faltam a Joaquim. Mesmo depois de afastado da rotina laboral por conta da idade, ele buscou manter laços fraternos com antigos colegas de trabalho do setor de construção civil, pessoas que encontra semanalmente, o que exige dele rotineiras caminhadas a pé. Não por acaso, apesar de algum desconforto eventual, o mineiro garante que, fisicamente, seu corpo vai muito bem, obrigado. Dá até para pegar uns “bicos” de vez em quando, garantindo um complemento de renda.
Feliz da vida por ter conquistado a aposentadoria, podendo se dedicar a outras atividades que lhe causam prazer, a história de Joaquim, infelizmente, não é tão comum quanto se pode imaginar em uma sociedade em que se deposita grande expectativa sobre o momento em que, desprendidos de compromissos profissionais, poderíamos, em tese, “usufruir daquilo que conquistamos”. “É habitual a crença de que, ao se aposentar, poderemos aproveitar a vida, viajar e nos dedicar a novas experiências. Contudo, nem sempre é isso o que acontece”, observa o geriatra Marco Túlio Cintra, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia.
Na verdade, ao contrário de alcançar as graças após uma vida de muito trabalho, são comuns os casos de idosos que, após o pendurar de chuteiras, acabam desenvolvendo quadros depressivos. Segundo Pesquisa Nacional de Saúde do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), problemas dessa ordem atingem cerca de 13% de quem tem entre 60 e 64 anos no país. E, mais que nacional, esta parece ser uma realidade global. É o que indica um levantamento do Institute of Economics Affairs (IEA), feito em 2013. De acordo com o estudo, as chances de ocorrência de depressão aumentam 40% após a aposentadoria.
Vazio
“Em primeiro lugar, podemos analisar esse fenômeno à luz da maneira como lidamos com o trabalho, que costuma ser o espaço em que concentramos nossas atividades sociais e de lazer. Nossos colegas, muitas vezes, são nossas principais companhias para conversas e para atividades de entretenimento”, comenta Marco Túlio Cintra, que é professor adjunto do Departamento de Clínica Médica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Além disso, a forma como nos vemos também costuma estar atrelada ao que fazemos profissionalmente, entendendo que nosso ofício representa também o papel que desempenhamos em sociedade”, prossegue.
O médico psiquiatra Bruno Brandão concorda. “Atendo muitos casos em que o sujeito, ao se aposentar, perde o contato com os amigos, passando a ter interações sociais mais pobres”, indica. Ele ainda lembra que, mesmo em família, as relações podem ficar prejudicadas graças a uma dessincronização social. “Há uma falsa expectativa de que, nessa fase, a pessoa vai, automaticamente, curtir momentos com seus filhos, com seus netos. Porém, na realidade, o que pode acontecer é uma situação de isolamento, uma vez que só a rotina do aposentado mudou, enquanto seus familiares seguem cumprindo com suas jornadas laborais”, sinaliza.
“A sensação de invalidez também é um fator importante, assim como a autopercepção da velhice, que pode estar associada a pensamentos sobre a morte, com a ideia de se estar chegando à reta final da vida”, assinala o especialista, ressaltando que, cedendo a essa lógica, muitos deixam de pensar em metas e projetos. Combinada com a ausência de uma percepção de cumprimento de um papel social, essa perda de uma perspectiva de futuro acarreta com o esvaziamento de propósitos de vida. “E sabemos, por meio de estudos sobretudo da área da psicologia positiva, que ter um propósito é um componente importante para o bem-estar e a felicidade, que são fatores de proteção contra a depressão”, pontua Brandão.
Cintra lembra que contribui para essa sensação de invalidez o fato de muitos serviços prestados por pessoas idosas, como cuidar dos netos ou auxiliar em tarefas diversas, serem pouco reconhecidos – e raramente serem remunerados.
Dificuldades financeiras são outro fator fortemente associado a casos de depressão após a aposentadoria. “Para começar, o ordenado recebido é menor do que o salário que esse indivíduo tinha anteriormente. Por outro lado, há aumento de despesas com saúde, por exemplo. Até porque, além de o aumento de gastos nessa área ser comum na terceira idade, essas pessoas, ao se desligarem da empresa, perdem o acesso a alguns benefícios, como planos de saúde. No fim, a conta não fecha e, em vez de aproveitar a vida e ter uma velhice tranquila, esses idosos acabam tendo dificuldade de se manter”, salienta o geriatra.
Brandão reforça que o impacto financeiro implica maiores chances de desenvolvimento de depressão. “Sabemos que quadros depressivos têm componentes biológicos, como a predisposição genética, psicológicos, como a capacidade de lidar com adversidades, ambientais, entre eles os eventos estressores, sendo que os aspectos econômicos são muito significativos nesse sentido”, indica, asseverando que debilidades físicas e um histórico de problemas de saúde também ampliam o risco da ocorrência de quadros depressivos. “Não podemos esquecer que, nessa faixa etária, há convivência com o luto e a perda de amigos, outro elemento que, embora não associado à aposentadoria, agrava essa situação”, explica.
Prevenção
A experiência de Joaquim Borges, que se manteve ativo e buscou fortalecer vínculos ao mesmo tempo em que construía novos hábitos após a aposentadoria, é vista como um bom exemplo de vivência dessa fase da vida. Uma história que está em sincronia com o que descreve a gerontóloga Elisandra Vilella no artigo “Mente na Terceira Idade”, citado por Renata Nunes, diretora executiva de O TEMPO, na coluna “Por Nossos Pais”, de 2015.
No texto, a mineira lembra que “a aposentadoria é um momento de transição, um rito de passagem. E, por ocorrer numa idade avançada, é sempre associada à velhice ou a um momento de redefinição de metas”. Em seguida, citando Elisandra, ela acrescenta: “Aposentar pode ser continuidade, renovação, aprendizado, recolocação, porque uma pessoa com bagagem terá sempre habilidades e perspectivas. Todos querem se aposentar, mas continuar na ‘roda-viva’ sem vinculação à velhice, a algo descartável, desvalorizado”.
As falas dialogam com o que sugere o psiquiatra Bruno Brandão. “É preciso se preparar para esse processo, o que muitas vezes não acontece”, diz. Além de manter uma vida social vigorosa, ele elenca uma série de dicas para uma vida pós aposentadoria plena e satisfatória. “Primeiramente, busque manter uma boa qualidade de sono – o que não significa dormir por um longo período. O descanso é fundamental para a saúde. Evidentemente, é indiscutível a importância de manter uma boa dieta alimentar e de se manter fisicamente ativo”, diz. Além disso, o especialista cita que o planejamento financeiro é importante, embora reconheça que manter reservas financeiras não seja possível para todos. “E, por fim, invista no autoconhecimento, aceitando o próprio envelhecimento e entendendo que a vida não parou”, completa.