“Ficar para titia” é uma expressão pejorativa usada para se referir a mulheres que não se casaram e não tiveram filhos e, em última instância, tiveram que se contentar com a experiência marginal da maternidade. Ou seja, apenas se aproximaram do papel de mãe ao se dedicar ao cuidado de crianças geradas por amigas e familiares. Para além desses significados imediatos, esse dito popular, geralmente usado em tom de piada, diz muito mais sobre a nossa sociedade do que aquilo que se pretende dizer ao recorrer a ele.
“A primeira questão, ao discutir o papel da ‘tia’, nesse sentido de ser a cuidadora dos filhos dos outros, como se esse fosse um papel menor, é ver o papel da mulher em um sistema social em que é cobrado que elas cumpram a função de cuidar do outro”, opina o doutor em psicologia social Cláudio Paixão Anastácio de Paula, inteirando que esse padrão se repete na maioria das civilizações humanas conhecidas.
“Nesse cenário, ganha valor perante a sociedade aquela mulher que conquistou para si um homem e conseguiu constituir uma família em torno de si. Há, inclusive, um reforço social com uma série de rituais e práticas que reafirmam esse lugar de cuidadora que, culturalmente, foi imposto às mulheres”, examina. Portanto, é como se, para serem validadas socialmente, aquelas que não tiveram filhos tivessem que cumprir o papel de tias. Uma alternativa vista quase como um prêmio de consolação – que, aliás, mantém a mulher ocupada com o cuidar do outro.
No mesmo sentido, a antropóloga e doula Thais Rocha lembra que a expressão “ficar para titia” é empregada apenas para se referir a mulheres, sem que exista um equivalente masculino para esse dito popular. “Há, nesse desenho social, uma imposição de gênero em que a validação feminina equivale à realização de matrimônio e maternidade. E não precisamos ir muito longe em nossos repertórios culturais para ver os estereótipos da ‘tia’, ou da ‘solteirona’ sempre mobilizados para desqualificar uma mulher. Temos ‘A Megera Domada’, do (escritor e dramaturgo inglês) William Shakespeare, constantemente atualizada na mídia, e que diz respeito à mulher que não foi ‘escolhida’ para formar família por se posicionar contra paradigmas machistas em que mulheres são naturalmente cuidadoras e coadjuvantes. Onde está a agência feminina nessa narrativa?”, questiona.
“Ainda hoje, mulheres independentes, assertivas, financeiramente potentes, que priorizam outras realizações para além de cuidar, são criticadas por alcançarem objetivos que sempre foram de direito masculino. A visão social funciona como se a mulher que ‘ficou pra titia’ fosse preterida e fosse mais uma versão da penalidade sofrida por querer ter os mesmos direitos que um ‘solteirão’ – que, aliás, é uma expressão que não tem a mesma carga negativa do que ‘titia’ ou ‘solteirona’”, reforça ela.
Origem da expressão. Quando começou a ser usada, a expressão “Ficar para titia” dizia sobre irmãs mais velhas em cujas famílias aquelas que eram mais novas já tinham filhos. Dessa maneira, essas mulheres teriam virado tia antes de ter se tornado mãe. Atualmente, o termo também é usado para falar de pessoas que, já com certa idade, não têm uma parceria e não possui filhos.
Maternidade como opção, não como imposição
Autora de pesquisa sobre parentalidade pelo programa de pós-graduação do Departamento de Antropologia Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Thais Rocha reforça que o desejo de não querer ter filhos é antigo e justo. “A renúncia da maternidade é legítima por si só. Mas ainda existe uma dupla punição que afeta, historicamente, as mulheres que fazem essa opção”, assinala. “Como doula, já acompanhei mulheres que temiam tanto a maternidade quanto a não maternidade. Temiam a gravidez e o parto, devido à violência obstétrica. Temiam a maternidade, devido à perda de espaço no mercado de trabalho. Temiam o trabalho de cuidado, a amamentação, o puerpério devido à sobrecarga despejada nas mulheres”, reforça.
No Brasil, apesar da série de pressões sociais e culturais, do inabalável relógio biológico e da ideia de feminilidade relacionada à maternidade, 37% das mulheres dizem abertamente não querer gerar uma criança, conforme dados de uma pesquisa global realizada pela farmacêutica Bayer, com apoio da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e do Think About Needs in Contraception (Tanco).
“Mas, mesmo que a escolha de não ter filhos represente alguma autonomia feminina, a responsabilização pelo cuidado das crianças ainda é majoritariamente direcionada às mulheres. Isto é, sendo mães, tias ou avós, quem cuida das crianças ainda somos nós. Socialmente, ainda existe uma relação direta entre ser mulher e cuidar de alguém. E essa relação precisa ser analisada antes de comemorarmos que mais mulheres tenham a possibilidade de optar por não ter filhos”, salienta Thais. A estudiosa pondera ainda que o fato de uma mulher optar por não ter filhos não deveria ser percebido como sinônimo direto de ela estar disposta a cuidar dos filhos de outras mulheres da família. “É importante admitirmos que muitas mulheres não querem ter filhos porque não querem cuidar, de forma alguma, de ninguém. E não porque não querem gestar e parir, simplesmente”, pontua.
Contudo, ela reconhece a importância do apoio das tias que desejam desempenhar papel parental na criação das crianças. “Desde que me tornei mãe, aos 21 anos, sempre tive apoio das mulheres da família – sejam tias, avós, bisavós ou madrinhas – nos cuidados com minha filha, hoje com 4 anos. Isso, infelizmente, não acontece entre os homens que seriam os equivalentes masculinos – incluindo tios, avôs e padrinhos. Sou a filha do meio de três irmãs que sempre participaram ativamente da criação da minha filha, demonstrando disponibilidade de assumir tarefas cotidianas que comumente são obrigatórias às mães e facultativas aos pais, que podem se ausentar delas sem serem criticados. Acredito que minhas irmãs, Raquel e Luciana, me apoiam não necessariamente porque são tias e não têm filhos, mas porque percebem minha sobrecarga, principalmente por ser mãe solo”, opina.
“Nesse sentido, as tias não me parecem mulheres que ‘foram mais espertas’, ao pularem a etapa da gravidez e hoje usufruírem dos benefícios da maternidade, sem serem mães, mas sim mulheres que seguem apoiando outras mulheres sobrecarregadas em um sistema que responsabiliza desigualmente o cuidado entre os gêneros”, reflete a antropóloga. “As tias e as avós da minha filha, por vezes, desempenharam papéis parentais que cabiam ao pai. Devemos, portanto, questionar também o quanto a redistribuição de cuidados apenas entre mulheres mantém as desigualdades de gênero, pois, ao mesmo tempo que alivia para a mãe, essa ajuda exclusivamente feminina continua desresponsabilizando homens de obrigações que são deles”, conclui.
O psicólogo social Cláudio Paixão Anastácio de Paula concorda. “Não existe, no imaginário popular, uma figura masculina equivalente à tia”, observa. “É uma pena, mas vejo poucos avanços no sentido de repensar essa distribuição do trabalho doméstico, do trabalho de cuidado com o outro e do exercício de parentalidade”, comenta.