Decisão

'Geração NoMo': no Brasil, 37% das mulheres não querem ser mães

Mulheres que optaram por não ter filhos levantam a voz para defender decisão e constituem a chamada ‘Geração NoMo’ – ‘Not Mothers’; especialistas garantem que maternidade não é sinônimo de felicidade


Publicado em 01 de outubro de 2020 | 03:00
 
 
 
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Quando você vai engravidar? Bem que poderia ser exceção, mas atire a primeira pedra a mulher que nunca escutou essa pergunta. A chegada aos 30 então ainda é anunciada para as mulheres como o momento ideal para se pensar em ter filhos – alguns até dizem que o corpo parece “pedir por uma gravidez”, como se o relógio biológico começasse a apitar. O problema é que o questionamento esconde a afirmação de um futuro que é dado como certo, como se a maternidade fosse um caminho natural para todas as mulheres.  

Mas, enquanto há quem tenha o sonho de engravidar e garanta que o sorriso do filho faça tudo valer a pena, há também quem não sinta essa vontade, seja pela decisão de priorizar os objetivos profissionais e os estudos, fazer uma viagem sozinha pelo mundo ou simplesmente por não se identificar com a maternidade. Ser mãe não é sinônimo de felicidade, garantem os especialistas. 

“Vivemos em uma sociedade que historicamente coloca a maternidade como um ideal feminino. Mas por que não podemos optar pelo nosso próprio corpo? Acreditar e dizer que toda mulher deve sonhar ou viver um sonho com a maternidade é uma pressão cruel e que pode ser traduzida como pesadelo até para algumas mães que se sentem de maneira diferente”, afirma a psicóloga Daiana Quadros Fidelis. Mestre em psicologia clínica, Daiana estuda em seu doutorado atualmente a não maternidade e maternidade tardia. “A simples afirmação ‘não quero ter filhos’ é seguida pela pergunta: ‘mas por que não?’ É como se a mulher fosse obrigada a se justificar, porque toda menina cresceu ouvindo que se ‘nasce’ com esse desejo”, pontua.  

Caroline Mesquita, professora do curso de pós-graduação do departamento de psicologia da PUC Minas, é categórica: “Quando uma mulher disser que não quer ser mãe, acredite. E ela nem precisa se explicar sobre isso. É preciso trabalhar a ideia de que a mulher é livre para escolher não viver a maternidade e esquecer o mito de que ela só será completa com um filho”, explica. 

E os números estão aí para provar: cada vez mais mulheres estão desistindo da maternidade ou simplesmente estão fazendo prevalecer a vontade de nunca ter filhos. No Brasil, 37% das mulheres não querem ter filhos apesar da série de pressões sociais e culturais do inabalável relógio biológico e da ideia de feminilidade relacionada a maternidade. Segundo uma pesquisa global realizada pela farmacêutica Bayer, com apoio da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e do Think about Needs in Contraception (TANCO), no mundo, o índice chega a 72%.

De acordo com socióloga, Bruna Angotti, os motivos são vários e vão desde os gastos que se tem com uma criança até pelo aumento do número de mulheres no mercado de trabalho. Mas a professora da USP, ressalta que o principal é: "Muitas mulheres simplesmente não querem ser mães. É um direito. A mulher que faz essa escolha não é incapaz ou irá se arrepender", explica. 

Só que na prática, mesmo com toda liberdade conquistada pelas mulheres nos últimos anos, ainda existe estigma em torno daquelas que nunca sentiram o tal desejo materno. A mulher que opta por não ter filhos constantemente é acusada de ser egoísta e fadada a ser solitária o resto da vida. O preconceito é tão enraizado que, segundo um estudo, publicado pela revista Sex Roles, em 2017, muitas mulheres que não optaram pela maternidade afirmaram se sentir culpadas e moralmente erradas. 

"A maternidade está ligada ao papel social e cultural da mulher construído pela sociedade. A gente vê isso nos brinquedos de meninas e nos brinquedos de meninos. A mulher cresce acreditando que tem a função de cuidar e isso só compete a ela. Desde a infância, existe uma exposição muito grande a vários estímulos que reforçam que ela só será reconhecida socialmente se exercer a função do cuidado", avalia Caroline Mesquita. 

Decidida.

A artista digital, Caroline Barrueco, 34,  já cansou de escutar frases como "você vai ficar sozinha" ou ainda "isso é egoísmo, você vai mudar de ideia" por defender a escolha. "Acho até estranho ter que justificar isso. A maternidade nunca me atraiu, assim como também nunca tive vontade de pular de bungee jumping. Crianças são ótimas. Mas toda a nossa sociedade acaba por excluir, sobrecarregar e invisibilizar as mães. A maternidade, do jeito que existe hoje em dia, não é o que quero para minha vida. Não ser mãe também é uma possibilidade, e não tem nada de errado nisso”, avalia. 

Há alguns anos, a artista fez um aborto na Alemanha, onde mora, e teve mais certeza da decisão. “Quando descobri que estava grávida, fiquei sem ar, me senti mal e assustada. Eu soube instantaneamente que queria interromper a gravidez. Eu fiz um aborto legalizado e sob acompanhamento médico e psicológico. Acho importante assegurar que toda gravidez seja desejada. Assim todo mundo fica melhor, as crianças, as mulheres e a sociedade como um todo também”, afirma Caroline. 

Esse também é o caso da roteirista e mestra em Sociologia Samira Ramalho, 32, que até a suspeita de uma gravidez acreditava no sonho de ser mãe. Mas hoje, mesmo casada e em uma relação estável, não inclui nos planos um filho. “Assim que eu comecei a namorar meu atual companheiro, houve um mês em que minha menstruação atrasou uma semana. E isso me assustou e gerou tanto estresse que eu ‘tomei ranço’ da ideia. Percebi que naquele momento seria um grande transtorno, e isso não mudou muito. Continuo estudando, cheia de projetos que ainda não quero dividir com a maternidade. Eu simplesmente não tenho nenhum bom motivo para ter filhos, e está tudo bem. A sociedade tradicional quer que a gente tenha filhos, mas demite e desampara as mães”, reflete.  

“Aos 32 anos decidi tirar as trompas” 

Desde criança, a advogada Patrícia Marxs, 34, sempre gostou das bonecas que tinham profissão. Brincar de casinha e mamãe nunca foi do feitio da cearense, que, aos 32 anos, realizou uma cirurgia para a retirada das tubas uterinas. O método é definitivo. No Brasil, segundo a Lei de Planejamento Familiar, laqueaduras e cirurgias desse tipo só podem ser realizadas após os 25 anos ou por mulheres que já tenham dois filhos (veja as regras abaixo). O procedimento pode ser feito pelo SUS.

“Na adolescência eu já tinha essa certeza de que não queria ser mãe. Terminei um casamento por causa disso”, afirma. Patrícia se casou cedo, aos 19 anos. Fazendo faculdade e em dois estágios, a prioridade sempre foi a carreira e a saúde. Mas, na época, o ex-marido já queria ter filhos e escondia as pílulas anticoncepcionais que ela tomava diariamente. “Me falaram que se um homem estava disposto a ter um filho era o maior sinal de amor que poderia existir. Era uma forma de perpetuar esse amor. Só que hoje eu vejo o tanto que isso é abusivo. Eu não querer deveria bastar, eu não preciso ceder e abrir mão dos meus objetivos para provar o meu amor”, relata a advogada, que conta que a gota d’água para a separação foi a escolha que o marido a fez tomar, entre a cirurgia bariátrica e a gravidez.  

“Juntaram várias coisas, mas, nessa época, eu era obesa, queria fazer a cirurgia de redução de estômago. Era a vontade de toda a minha vida, além da questão da minha saúde. Só que, se eu fizesse a cirurgia, eu não poderia engravidar por um tempo. Aí decidi seguir a minha vida sozinha”, conta.  

Só que o medo de engravidar continuou acompanhando a advogada. O receio de uma gravidez indesejada era tão grande que Patrícia fazia exames de gravidez de 15 em 15 dias. "Virou uma doença. Eu pesquisava se existia alguma patologia em mulheres que não queriam ser mães. Cheguei ao ponto de não ter relação sexual. Era um pavor tão grande, que mesmo tomando todos os cuidados, eu tinha medo. Não era algo saudável. Eu queria fazer laqueadura para viver em paz", explica. 

Mas foi só depois de muitos anos de terapia que a advogada aceitou que a escolha de não ser mãe não precisava vir acompanhada de culpa. "Eu não sou uma pessoa amarga e sem coração por isso, eu adoro crianças. Sei até onde comprar fraldas mais barato para as minhas amigas. Eu só não quero para mim", pontua.

E foi só aí, a partir dos 28 anos, que Patrícia, com todo o apoio do seu atual companheiro, começou a buscar ajuda médica para encontrar um método irreversível para evitar uma gestação. "Perdi a conta de quantos médicos me consultei, alguns se recusaram a fazer o procedimento porque interpretaram que havia a necessidade de ambas as exigências. Demorei para encontrar uma médica que conseguiu entender que isso afetava a minha saúde, o meu psicológico", conta 

Hoje, Patrícia dá dicas na internet em uma página que criou no instagram (@laqueadurasemfilhossim) para quem passa pelas mesmas dificuldades que ela passou. Lá, a advogada dá apoio moral para quem ainda se sente diferente só por não querer ser mãe. "Acolho e dou informações. Há muita desinformação, é a forma que encontrei de contribuir. Sempre sugiro que em casos de recusas do procedimento se faça uma denúncia à Agência Nacional de Saúde, nos casos dos planos privados, ou procure a ouvidoria do SUS. É um direito nosso".

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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Restrições

Apesar das normas para se realizar a laqueadura no Brasil, a socióloga Bruna Angotti pondera. "Com certeza tem muito a se discutir e aprimorar, mas a grande questão é que vivemos processos de esterilização em massa nos anos 80. As mulheres iam dar à luz e só descobriram que tiveram o útero retirado, porque paravam de menstruar. Isso tudo na tentativa de evitar a reprodução de mulheres pobres. A lei veio como uma forma de coibir essa violência", observa. 

Critérios para laqueadura 

- No Brasil, o procedimento pode ser feito pelo SUS. Mas, segundo a Lei 9.263, a cirurgia só é permitida para mulheres maiores de 25 anos ou, pelo menos, com dois filhos vivos. 

- O procedimento é proibido em mulher durante os períodos de parto ou aborto, exceto nos casos de comprovada necessidade, por cesarianas sucessivas anteriores. 

- Para aqueles que são casados, a esterilização só pode acontecer após comprovado o consentimento de ambos os cônjuges. 

- Atualmente tramita no Senado um projeto de lei que tenta alterar a Lei do Planejamento Familiar. Entre os pontos discutidos está a retirada da exigência que o cônjuge autorize a laqueadura ou a vasectomia.

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