Habituado à linguagem dinâmica das redes sociais, Hian Junio, 19, é um dos fenômenos nacionais do TikTok. E se no aplicativo de compartilhamento de vídeos curtos ele soma mais de 1 milhão de seguidores, a verdade é que sua produção é muito anterior à criação da plataforma. Desde os 13 anos, o mineiro de Santa Luzia, na região metropolitana de Belo Horizonte, disponibiliza vídeos com apelo cômico em seu canal no YouTube. “É um caminho que sempre quis trilhar”, reconhece. Durante todo esse tempo, Hian tem acompanhado os percursos de diversos comediantes e também os debates que, volta e meia, colocam o humor em pauta. No caso de suas produções, a graça vem de situações cotidianas interpretadas de maneira exagerada, de forma a destacar o absurdo dessas experiências – algo próximo do estilo de outros fenômenos recentes do humor, como o youtuber Whindersson Nunes e a tiktoker Pequena Lô, ambos referências para o mineiro.

E, ainda que a linguagem humorística adotada por Hian e seus contemporâneos destoe daquela popularizada no final do século passado, em que grupos minorizados eram ridicularizados, e do stand-up popular na última década, que estava calcado, principalmente, em uma exposição depreciativa de pessoas e situações, os vídeos dele também já renderam polêmica e exigiram um exercício empático. Recentemente, Hian retirou do ar um conteúdo que ofendeu a comunidade surda. “Ao produzir um conteúdo, sendo leigo em um assunto, podemos ferir algum grupo. Acho importante estar aberto a ouvir para aprender. Nesse episódio, uma pessoa me procurou e expôs que o material era ofensivo, então decidi remover”, pontua.

Contudo, nem todos concordam com esse posicionamento e reclamam de uma mordaça do chamado “politicamente correto” – expressão que a extrema direita norte-americana associou, nos anos 90, às expressões, políticas ou ações que evitam ofender, excluir e marginalizar grupos vistos como desfavorecidos ou discriminados, especialmente por razão de gênero, orientação sexual ou raça. Caso dos proprietários de um bar, localizado no interior paulista, que foi multado no início de dezembro passado pelo Programa Estadual de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon-SP). Segundo o órgão, o lugar exibia mensagens que debocham de situações sociais e de crimes graves, desrespeitam valores da sociedade e do ser humano e, portanto, ferem o Código de Defesa do Consumidor e o Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária. A entidade ainda pediu que fosse aberta investigação por apologia do crime pela Polícia Civil do Estado de São Paulo (PCSP). A empresa, por sua vez, se posicionou dizendo que se está “em um país livre, onde as pessoas podem fazer piadas do que quiserem”.

Há limites para o humor?

Fatos assim fazem retornar uma questão que já parece superada por boa parte da nova geração de humoristas e que, ao longo dos anos, foi repetida à exaustão: há limites para o humor? Aparentemente, dentro da própria comunidade de comediantes, tem se construído o consenso de que sim. É o que se pode perceber nas palavras de Hian: “Acredito que não é preciso exceder o limite da ofensa para se fazer um humor de que as pessoas gostem. Esse modelo, em que a gente ria do outro, era bem forte no passado. Mas, hoje, acho que não precisamos desse mecanismo, que muitas vezes aciona nossos preconceitos, para fazer graça”.

Além das declarações, as escolhas feitas por humoristas apontam para esse mesmo entendimento. Ao remover o vídeo considerado ofensivo, o mineiro adotou uma postura que faz lembrar aquela de outros nomes de relevo da comédia. O canal Porta dos Fundos, por exemplo, apagou, no final de 2020, um conteúdo classificado como machista e reconheceu o equívoco. Em outra ocasião, o grupo retirou do ar uma esquete considerada gordofóbica – e depois fez uma releitura do texto.

Também no ano passado, o comediante Yuri Marçal precisou se retratar depois da publicação de um episódio com o personagem Jesus Favelado, criado por ele, em que tratava de temas como o caso da criança de 10 anos, vítima de estupro desde os 6, que ficou grávida e passou pelo procedimento de aborto, que é legal no país em casos como o dela.

Na avaliação do psicólogo Alyson Aguilar, essa mudança de comportamento é desejável. “Eu acho que as pessoas estão ficando mais empáticas em relação às minorias. Por outro lado, o humor está, na maioria das vezes, ofendendo alguém ou alguma coisa, às vezes de forma muito discreta, porque rir do outro é um componente básico da comédia”, analisa. Ao mesmo tempo, avalia que a piada é uma forma de comunicação que apela ao pejorativo para desconstruir uma ideia de seriedade historicamente formatada como ideal. Por fim, Aguilar pontua que é possível ofender alguém sem ser engraçado, mas que o humor também pode ser usado como prerrogativa para ofensa. É justamente a partir de tal constatação que o psicólogo defende que deve haver um limite desse artifício comunicacional, que deveria se estabelecer também por meio do exercício empático, diz.

Em relação ao potencial ofensivo, o receptor tem papel tão importante quanto a forma e o conteúdo da piada. “A reação vai de cada um. Mas, para grande parte das pessoas, pode parecer muito punitivo passar por uma situação constrangedora ou vexatória. Uma consequência é a pessoa deixar de frequentar lugares parecidos com aquele em que se sentiu ofendida, ficando mais reclusa. Se a pessoa tiver predisposição para depressão ou estiver passando por momentos delicados, isso pode ter um efeito amplificador em relação a comportamentos depressivos”, analisa Aguilar. Ao mesmo tempo, o psicólogo destaca a importância de se saber rir de si mesmo. “É algo importante para aprender a lidar com nossas próprias frustrações, além de ser um caminho de aceitação, em que me reconheço como pessoa errante, falível. Rir de si mesmo é essencial para desenvolver a maturidade”, conclui.

Humor traz benefícios para a saúde

Alyson Aguilar sustenta que o humor traz benefícios para a saúde como um todo. “Estamos falando de um componente que diminui a pressão arterial, que libera hormônios associados à sensação de prazer, como endorfina e serotonina, e reduz a produção do hormônio do estresse. O humor também pode agir reduzindo a ansiedade e o medo, gerando relações de confiança e favorecendo a criatividade”, comenta, salientando que pessoas bem-humoradas conseguem se adaptar mais ao contexto social e às situações-problema, além de terem mais facilidade em resolver conflitos. Não por acaso foi justamente em um momento de crescente estresse, provocado pela emergência da Covid-19, que humoristas como Hian e Pequena Lô conquistaram milhões de espectadores.

Mas nem todos têm esse riso solto. “Essa é uma habilidade que tem muita ligação com a subjetividade e com a história de vida de cada indivíduo. Normalmente, quem teve uma história de vida mais rígida, mais privada em alguns aspectos, pode, sim, levar sua rotina de uma maneira mais séria. Não que isso seja errado, mas, além de não achar graça de algumas situações que grande parte das pessoas acharia, a falta desse atributo pode se desdobrar em dificuldade de ser flexível em algumas situações”, expõe o psicólogo, acrescentando que aspectos filogenéticos (relativos à espécie humana), ontogenéticos (relativos à biografia do indivíduo), e culturais (relacionados ao grupo em que se está inserido) interferem na forma como cada um lida com o humor.

Liberdade de expressão é um direito relativo, não absoluto

“A liberdade de expressão é salutar para a democracia, mas não é um direito absoluto, e sim relativo, precisando ser exercido com consciência”, defende Humberto Lucchesi de Carvalho, presidente da Comissão de Liberdade de Expressão da Ordem dos Advogados do Brasil Seção em Minas Gerais (OAB-MG). Para ele, o século XXI é a era da comunicação, “em que o grande desafio é coexistir e conviver harmonicamente com pontos de vista divergentes”.

Sócio-fundador do Instituto Brasileiro de Perspectivas em Expressões de Liberdade, Carvalho sustenta que há quatro pilares principais em relação ao debate sobre liberdade de expressão: o exercício desse direito, a ofensa, a censura e o politicamente correto.

O especialista explica ser pacificado que todo cidadão tem o direito à manifestação, sem que seja necessária licença prévia, mas que pode ter que arcar com as consequências de seus atos. Dessa maneira, à luz da Constituição Federal de 1988, pode haver responsabilização cível ou penal. “A depender do que for dito, a pessoa pode ser responsabilizada. Temos alguns processos que são recorrentes, como nos casos de injúria, de difamação, de discriminação e preconceito e de apologia de crimes”, examina.

Em termos de decisões de cortes superiores, que podem ter efeitos vinculantes ou subordinantes, Carvalho lembra três decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) que confirmaram a importância da liberdade de expressão e de imprensa para o exercício democrático, sendo que uma delas diz especificamente sobre conteúdo humorístico. De 2009, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 130 baniu do direito brasileiro a censura, garantindo liberdade de manifestação. Em 2015 foi julgada a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.815, que afastou a necessidade de prévia autorização para a produção de biografias. Por fim, em 2018 a ADI 4.451 foi julgada, sendo vetada a proibição de sátiras com políticos durante o período eleitoral.