Pluralismo

Igreja que abraça e acolhe pessoas LGBTs abre célula em BH

O discurso e a prática religiosas que acolhem LGBTs são fundamentais, defende psicólogo


Publicado em 06 de janeiro de 2020 | 12:49
 
 
 
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Faltando uma hora para o início do culto dominical, que normalmente reúne o maior número de fiéis, o movimento no interior da igreja, onde uma banda gospel repassa as músicas que serão apresentadas e um grupo participava de um curso bíblico, é intenso. Sem se incomodar com os testes de luz e som, religiosos oram individual ou coletivamente até que Wagner da Silva Lopes, 40, sobe ao púlpito e passa a orientar o sentido das preces: “Agradecemos ao Senhor, que é Pai e que nos acolheu. Que nessa noite o Senhor rompa cada barreira de nossos corações”.

Como muitos ali, o engenheiro de produção veio de família católica, converteu-se evangélico na adolescência e, entre idas e vindas, voltou a se conectar com a igreja recentemente, quando conheceu a célula belo-horizontina da Cidade de Refúgio – que funcionando em uma pequena sala comercial, abrindo suas portas diante da movimentada avenida Amazonas, no bairro Gutierrez. Entre as paredes preto foscas e as 34 cadeiras distribuídas harmonicamente em três grupos, dois ventiladores tentam aliviar o calor enquanto fiéis se avolumam, sendo recebidos com abraços por outros religiosos, entre eles a empresária Kenya Reis, 37, ex-missionária da igreja Assembleia de Deus.

Apesar de sempre atuante no meio evangélico, a biografia dela também é marcada por períodos em que se viu forçada a afastar-se dos templos. Kenya dá continuidade ao louvor: “Agradeço ao senhor de estar Lhe servindo sem máscaras”.

Hoje, até 50 pessoas se reúnem no local, que é invariavelmente tomado de regozijo, música e clamor – cena que pode soar comum às cerimônias evangélicas que acontecem Brasil afora, mas, ali, algo destoa do tradicionalismo por vezes reacionário destes espaços: quando Lopes fala do “Pai que nos acolheu” ou Kenya diz sobre “estar Lhe servindo sem máscaras”, eles endereçam mensagens aos fiéis da Cidade de Refúgio, em sua maioria LGBTs. Ainda recentes e pouco difundidos, o discurso e a prática de igrejas que partem de um princípio de acolhimento são classificados como “fundamentais” pelo psicólogo Samuel Silva.

“A visão religiosa hegemônica que não aceita as pessoas LGBTs aumenta a exclusão e gera sentimentos de culpa”, sinaliza o terapeuta. “Com o passar do tempo, esses sentimentos são intensificados e podem culminar em questões emocionais ligadas à baixa autoestima, autoconfiança fragilizada, quadros de depressão, transtornos de ansiedade e tentativa e/ou ideação suicida, em casos mais graves”, aponta ele, que diz já ter recebido em seu consultório “pessoas que apresentam intenso sofrimento por conta de tentarem negar o fato de serem LGBTs por causa do discurso religioso”.

Aceitação

Em geral, diante do impasse entre fé e sexualidade, dois caminhos se desenham: a repressão da própria identidade ou o autoexílio em relação à comunidade religiosa – algo especialmente difícil para quem cresceu em lares cristãos, como Kenya e sua mulher, Tayrine Alice, 30, que é filha de pastores da Assembleia de Deus. Habituadas a uma retórica hostil a LGBTs e em defesa da “cura gay”, o início da história do casal foi confuso. “Tentamos nos afastar, sofremos muito”, lembra Tayrine. 

Desesperada, Kenya buscar refúgio em Muriaé, onde ficou por cinco meses, de favor, na casa de sua irmã. À época, por pensar que estaria amaldiçoada por mais que se dedicasse à santificação, ela pensava em tentar contra a própria vida.

O sofrimento só cedeu lugar à aceitação quando, em uma madrugada e em meio ao choro, clamou: “Eu Te pedi, Senhor, que tirasse ela do meu coração, eu busquei uma cura, eu procuro uma vida digna, mas há um amor em estar com ela”. Momentos depois, ela diz ter sido “iluminada pelo Espírito Santo”: “Foi quando compreendi que Ele a colocou ali, que Ele tem um propósito e que muitas pessoas chegariam a Ele através de mim”. 

Teologia é igual a de outras igrejas

O engenheiro Wagner Lopes só pôde apaziguar os embates entre a homoafetividade e a religiosidade quando descobriu a chamada “teologia inclusiva”. “Por anos, busquei viver minha fé do jeito que eu sou. Agora, vi que tinha respaldo na letra (referindo-se à Bíblia)”. Todavia, ainda que soe novo, para Faustino Teixeira, professor do programa de pós graduação de ciência da religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, não há diferença teológica entre o modelo seguido pela Cidade de Refúgio e outras de matriz cristã, dado que, em geral, são locais onde predomina a crença de que só o cristianismo “é o caminho para a salvação”.

Bíblia é guia e objeto de estudo

Em BH, os pastores Vinícius Jardim, 27, e o presbítero Bruno Jardim, 28, conduzem a Cidade de Refúgio. O casal, que tem um filho, o pequeno Arthur, de 10 anos, de quem falam longa e orgulhosamente, veio de São Paulo para dedicar-se à fundação da igreja em Minas. Como outros fiéis, a história deles é atravessada por impostos conflitos entre sexualidade e fé, até que se reconectam à religiosidade já em um contexto de inclusão – palavra que preferem evitar. “Nós preferimos a terminologia ‘pluralista’”, diz Bruno. Ocorre que eles perceberam que o termo ‘igreja inclusiva’ “soava restritivo a um público, no caso o LGBT, quando, na verdade, a proposta é ser uma igreja para todos”.

O presbítero se apressa em esclarecer que “a Cidade de Refúgio não altera nenhuma verdade bíblica”. “A gente usa a mesma Bíblia que qualquer igreja evangélica e cristã, mas nós temos uma interpretação sócio-histórica e cultural”, explica, reforçando que esta é uma prática antiga, e não é exclusividade do grupo. Exemplo é uma passagem das Cartas de Paulo aos Coríntios onde se lê que mulheres não podem falar nos templos e que elas não podem se adornar. “As igrejas evangélicas, no Brasil e no mundo, fazem uma interpretação desse texto entendendo que Paulo estava tratando de um contexto específico, que não se aplica mais hoje”.

Bruno também reforça que a Cidade de Refúgio não adere à “teologia inclusiva” – que, segundo ele, faz uma interpretação filosófica e, em alguns casos, exclui alguns trechos bíblicos. Quanto às diferenças em relação a outras igrejas, Vinicius diz não saber citar diferenças. “Acaba sendo o modus operandi, mas o foco é sempre o mesmo: anunciar Jesus”.

Minientrevista

Samuel Silva, psicólogo e terapeuta dedicado a pessoas LGBTs

1. Conversando com fiéis que encontraram nas igrejas inclusivas refúgio, noto um padrão: são pessoas que, geralmente na adolescência, se afastam da religião por entenderem que há um conflito entre a fé e a sexualidade. Como esse impasse pode ser prejudicial para essas pessoas?

Quem não se adequa a tais regras religiosas, mesmo que não creia naquela religião, é julgado como pecador e passa a ser excluído, punido e silenciado não apenas no contexto religioso, mas em outras esferas da sociedade e seus espaços de socialização (escola, trabalho, relações familiares, mídia, etc.).

Esse impasse é prejudicial por causar impactos na subjetividade dessas pessoas. A vivência e a prática religiosa fazem parte das culturas humanas e afetam a todas as pessoas, as que creem ou as que não creem, direta ou indiretamente. Assim, quando uma pessoas LGBT encontra julgamento, exclusão e punição nas suas vivência religiosas os possíveis efeitos disso são o surgimento de sentimentos de culpa, não pertencimento e inferioridade. Com o passar do tempo, esses sentimentos são intensificandos e podem culminar em questões emocionais ligadas à baixa autoestima, autoconfiança fragilizada, quadros de depressão, transtornos de ansiedade e tentativa e/ou ideação suicida, em casos mais graves.

2. O senhor já atendeu ou conhece estudos sobre como a retórica anti-LGBT, que permeia muitos cultos tradicionalistas, impacta jovens e adultos?

Estudos demonstram que essa visão religiosa hegemônica que não aceita pessoas LGBTs aumenta a exclusão e gera sentimentos de culpa, logo, intensificam o sofrimento. A tendência, então, é que jovens LGBTs reprimam ou não aceitem sua sexualidade e seu gênero para assim serem incluídos na prática religiosa. 

Já recebi e ainda recebo no consultório pessoas que apresentam intenso sofrimento por conta de tentarem negar o fato de serem LGBTs por causa do discurso religioso. Não praticar ou não assumir aparecem como tentativas de controle subjetivo do desejo e forma de “proteger” pessoas do pecado. Mas isso na verdade causa danos na autoestima, na autoconfinaça, na autoimagem e no sentimento de pertencimento e merecimento. 

3. Acredita que as igrejas que acolhem o público LGBT podem contribuir e reduzir os impactos que a ideia de uma condenação divina tem para parcela da população?

O discurso e a pratica de igrejas que acolhem as pessoas LGBTs ainda é recente e pouco difundido, contudo é fundamental. O pecado, por exemplo, é uma noção que se atualiza com o passar dos anos, acompanha a evolução das sociedades, embora nem sempre tão rápido como gostaríamos. 

Nesse sentido o papel das igrejas que acolhem as pessoas LGBTs é fundamental, pois são espaços que apreciam os textos religiosos fazendo reflexões atualizadas e contextualizadas. Isso permite incluir, acolher e valorizar vivencias que antes eram silenciadas socialmente, como a das pessoas LGBTs.

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