"Todos são iguais perante a Lei, sem distinção, de qualquer natureza, garantindo-se a todos a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Isso é o que estabelece a Constituição Brasileira. Mas a realidade é bem distante do que prevê a lei, a começar pela inclusão das pessoas com algum tipo de deficiência. A estimativa é que quase 24% da população brasileira, o equivalente a 45 milhões de pessoas, possuem algum tipo de deficiência. Porém, segundo os especialistas, a falta de inclusão vai além do trabalho e do preconceito.A invisibilidade começa no básico, na saúde. No dia em que se celebra a Luta da Pessoa com Deficiência no país, apesar das obrigatoriedades legais, os dados não são animadores. 

Para se ter uma ideia da falta de investimentos, dos R$ 7,3 bilhões previstos no Orçamento do Estado para 2020 para área da saúde, está estimado apenas 0,51% deste total para a assistência a pessoa com deficiência. O Portal da Transparência mostra que dos R$ 38 milhões previstos aos programas de cuidados a pessoas com deficiência, até o momento, somente R$ 13 milhões foram utilizados pela administração estadual.

Apesar da peculiaridade da pandemia do novo coronavírus neste ano, a situação não é muito diferente dos anos anteriores. No ano passado, R$ 49,9 milhões estavam previstos na Lei Orçamentária para serem destinados aos programas de assistência, mas apenas 19% (R$ 9,7 milhões) foi gasto. Já em 2018, foi pago apenas R$ 17,9  aos programas, o equivalente a 38% do orçamento disponível. 

De acordo com o professor do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG, Ricardo Alexandre de Souza, em Belo Horizonte, a maioria das pessoas com deficiência usam o SUS. O docente participou de uma pesquisa que está sendo desenvolvida por professores da UEMG e da UFMG para traçar o perfil da pessoa com deficiência na capital.  

"O SUS de fato é o suporte na saúde na maioria dessa população. Falta muita coisa, a começar pelo básico. Se houvesse estrutura para identificar e cuidar da deficiência o quanto antes, maior seria a possibilidade de cura ou qualidade de vida dessas pessoas. Fala-se muito em reabilitação, que é muito importante, sim, mas falta investimento da atenção primária. Nas faculdades, não existe um preparo para lidar com pessoas com deficiências. Mas é inegável que o SUS é melhor do que a maioria dos planos de saúde no quesito assistência à pessoa com deficiência, porque, na rede privada, se limita a quantidade de consultas e muitas vezes a oferta de serviços é muito menor", avalia o professor. "Infelizmente, o SUS tem que fazer um escolha de Sofia, ele cuida de mais gente ou daquilo que é mais raro ou grave?", questiona. 

Drama.

Há mais de um ano e meio, o empresário Rodrigo Dorneles, 36, não consegue agendar os atendimentos da filha Yasmin, de 9 anos, pelo Sistema Único de Saúde. A pequena é autista e deficiênte auditiva. "Ela precisa de uma série de terapias, incluindo psicólogos, terapia ocupacional, fisioterapias. O desenvolvimento está estagnado, porque ela precisa disso para continuar. Eu, como pai, fico frustrado. Tive que começar a pagar um plano de saúde, mas não adiantou nada, porque o atendimento à pessoa com deficiência não é prioridade em nenhum lugar. Mesmo pagando a gente não consegue dar prosseguimento, estou na fila de espera com ela", lamenta.

"Quando levo ela ao médico por um problema comum em qualquer criança, vejo que as pessoas tem medo, não colocam soro nela, porque não sabem lidar com a agitação. É um aprendizado que todos deveriam ter, porque eu aprendo todos os dias com ela. São os pais que tiram os filhos de perto dela, é família que se afasta e fala que ela só me dá problema. O sonho é que o diferente não fosse um problema".

Escritora para surdos busca desmistificar a deficiência auditiva no Brasil

Imagina acordar e perceber que você perdeu completamente a audição? Algumas semanas antes de completar 10 anos, a carioca Lak Lobato acordou e percebeu que não ouvia mais. A escritora ficou 22 anos sem a audição até que, após uma cirurgia de implante coclear, voltou a ouvir.

Hoje, aos 43 anos, ela luta pela inclusão dos surdos no Brasil, desmistificando o termo no seu blog, "Desculpe, não ouvi!", e em seus livros. “Quando perdi a audição de um dia para o outro, eu tive perda súbita durante o sono. Nenhum médico me deu um diagnóstico do que aconteceu. Sempre fui uma pessoa muito auditiva, gostava de ouvir música e conversar, foi muito difícil para mim. Pensa: passar a mão no cabelo, na calça jeans, tudo isso faz barulho. Tive que me redescobrir", conta a escritora, que é ativista na luta pela inclusão dos surdos oralizados – surdos que utilizam qualquer língua oral para se comunicar.

"Eu não tinha até então afinidade com a leitura, mas desde então, ler,  se tornou meu passatempo, porque era algo que eu conseguia fazer com facilidade, diferente de assistir televisão, ouvir música ou participar de uma roda de conversa. Mas falar de surdez nunca foi meu sonho, foi algo que surgiu. Nós vivemos num mundo extremamente capacitista, que olha a pessoa com deficiência como uma coitada ou como um super-herói. O ruim desses extremos é que ela dificilmente é vista como alguém que tem as mesmas potencialidades, que pode contribuir, que tem muito a oferecer, desde que ela encontre acessibilidade e inclusão", pontua a Lak. 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Talvez se a vida não fosse tão cruel comigo, fechando todas as portas por onde tentei entrar, colocando sempre no meu caminho gente que não queria me ajudar, me dando zero oportunidades de crescer profissionalmente, eu não estivesse fazendo o que eu faço hoje. Talvez eu nunca parasse para escrever um livro, quanto mais dois ou três ou quatro. Talvez eu não me preocupasse em ajudar pessoas quase que 24h por dia. Talvez eu não tivesse paixão suficiente para levar representatividade para crianças. Talvez eu não me preocupasse em explicar como amar ouvir. Nada disso foram escolhas. Foram propósitos que o destino colocou na minha vida, tudo porque a sociedade nunca quis me deixar ser uma pessoa qualquer!

Uma publicação compartilhada por Lak Lobato (@laklobato) em

"Ainda existe muito desconhecimento sobre a inclusão, sobre a diversidade de deficiências e formas de acessibilidade. O perfil da deficiência auditiva mesmo é plural. O que eu percebo é que crianças são extremamente abertas a aventuras desconhecidas. Para elas, tudo pode ser tratado com naturalidade, porque elas não têm os preconceitos que os adultos têm com as diferenças, elas apenas não conhecem", completa. 

Entenda
Lei.
Instituída em 2002, a Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência é voltada para a inclusão das pessoas com deficiência em toda a rede de serviços do Sistema Único de Saúde (SUS). Como qualquer cidadão, as pessoas com deficiência têm o direito à atenção integral à saúde, incluindo serviços básicos como imunização, assistência médica ou odontológica, ou ainda serviços de atenção especializada, como reabilitação e atenção hospitalar.

Serviços. As pessoas com deficiência tem direito a encaminhamento para serviços mais complexos, receber assistência específica nas unidades de média e alta complexidade, além de ter acesso a terapias de reabilitação física, auditiva, visual ou intelectual e ajuda técnica e meios auxiliares de locomoção de que necessitem, complementando o trabalho de reabilitação. 

Profissionais. As equipes são compostas por assistentes sociais, enfermeiros, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, médicos, psicólogos e terapeutas ocupacionais.

Programas. Atualmente, além da atenção primária (posto de saúde), Minas conta com 27 Centros Especializados em Reabilitação (CERs) e cinco Oficinas Ortopédicas. Segundo o Ministério da Saúde, para o funcionamento desses serviços, são repassados a Minas R$ 61,3 milhões por ano. Segundo a SES, o Estado conta ainda com 40 serviços de reabilitação física, além de 20 serviços de reabilitação auditiva e 181 serviços focados a pessoas com algum tipo de deficiência intelectual. Em relação à reabilitação visual, a rede de cuidados conta com 15 serviços.

Minientrevista
Cristiane Miryam Drumond de Brito

Professora do Departamento de Terapia Ocupacional da UFMG

Como você avalia o atendimento e a oferta de serviços a pessoas com deficiência? O SUS avança no país, buscando ampliar a rede de cuidados da pessoa com deficiência, com serviços qualificados em centros específicos de reabilitação. No entanto, ainda podemos observar que há uma certa visão hegemônica de que prestar assistência às pessoas com deficiência é apenas ofertar serviços de reabilitação, atendimento médico e  prescrição medicamentosa. A pessoa com deficiência precisa mais do que esses cuidados assistenciais. Elas precisam de atividades significativas em suas vida cotidianas, de estabelecer vínculos, construir sentidos de vida, poderem fazer escolhas, terem oportunidades de serem acolhidos  em suas diversidades de existência. 

Como superar esses desafios? Havia um investimento público no SUS de forma ampla, mas, desde 2016, quando se congelou os investimentos em políticas públicas por 20 anos, tudo isso vem sendo sentido pela população com a diminuição de oferta de serviços, falta de recursos materiais e humanos. O impacto vem sendo sentido por todos os brasileiros, porque o SUS é amplo, mas quem sente mais é a parcela da população mais vulnerável, inclui-se aqui as pessoas com deficiência. Outra questão é a extinção do Conselho dos Direitos da Pessoas com Deficiência. Os conselhos integravam a política nacional de participação social, o que fragilizou o acompanhamento e fortalecimento da inclusão das pessoas com deficiência. Vivemos em um governo que vai acabar também com as cotas para pessoas com deficiência em empresas e nas universidades. Tudo isso tudo é algo que reflete no SUS. Não adianta reabilitar fisicamente uma pessoa se ela não tem uma escola pública de qualidade para frequentar, se ela não tem espaços de lazer para participar da sociedade. Uma coisa está ligada a outra. Por isso, é necessário compreender as reais necessidades das pessoas com deficiência e incluí-las nas políticas públicas.  A deficiência física, auditiva e/ou visual não é impeditiva para a pessoa participar, são os aspectos sociais, econômicos e políticos que dificultam a participação dessas pessoas.

A pandemia trouxe retrocessos a essa população? As pessoas com deficiência estão sofrendo muito, porque muitos dependem de cuidados diários, precisam de contato físico  para se comunicaram, como os surdos e cegos, para realizar as higienes cotidianas. Alguns serviços de atenção a essas pessoas foram suspensos, o que gerou um retrocesso no processo de reabilitação. Sabemos que pessoas com deficiência sofrem violência doméstica, negligência. A pandemia fez  com que as pessoas com deficiência ficasse ainda mais isoladas.

Outro lado. 

Procurada, a Secretaria de Estado de Saúde (SES) informou que o pagamento do Orçamento depende da efetivação da prestação do serviço. Por isso, apesar do valor empenhado, muitas vezes os serviços não foram ofertados ou não cumpriram as metas, não sendo, portanto, pagos.

Já sobre os valores informados pela pasta, a SES informou que foram repassados, em 2020, R$ 18,7 milhões a assistência a pessoas com deficiência, enquanto nos anos de 2019 e 2018, foram pagos R$ 18,2 milhões e R$ 16,7 milhões, respectivamente. 

Por meio de nota, o Ministério da Saúde reforçou que a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência é organizada a partir da atenção primária, atenção especializada em reabilitação auditiva, física, intelectual, visual, ostomia e múltiplas deficiências, atenção hospitalar e de urgência e emergência.  

De acordo com o órgão, atualmente, além da atenção primária (posto de saúde), o Brasil conta com 247 estabelecimentos habilitados - como Centros Especializados em Reabilitação (CERS) e 45 Oficinas Ortopédicas. Em relação aos recursos orçamentários voltados para ações e políticas de atenção à saúde da pessoa com deficiência no Brasil, o governou reforçou que em 2019, foram executados R$ 103,9 milhões e para este ano a previsão é R$ 142,2 milhões.