Perturbadora, a série de retratos “Matriphagy” (“Matrifagia”, em português), idealizada pela artista plástica francesa Noémie Ninot, registra como, desde muito jovens, meninas se percebem reféns de estereótipos de gênero e precisam lidar com a pressão associada a expectativas sociais que recaem sobre as mulheres. Nas fotografias, crianças e adolescentes entre 4 e 16 anos, convidadas pela fotógrafa a falar sobre como se viam no futuro, aparecem flertando com procedimentos estéticos, como preenchimento labial, e se imaginando no papel de esposas e de mães, seja usando vestidos de noivas ou ostentando barrigas de grávidas. 

Recentemente, Noémie voltou a refletir sobre a experiência vivida por ela no processo de realização da série “Matriphagy”, de 2020. “As meninas me contaram muito sobre suas fantasias, suas projeções mentais e físicas para o futuro. Também me contaram como suas mães ou irmãs eram modelos cujos gestos e linguagem elas queriam reproduzir. Essas fantasias, embora múltiplas e diversas, testemunham a violência dos estereótipos que cercam o conceito de feminilidade e as expectativas reservadas às mulheres”, disse em entrevista à revista francesa de moda, arte e cultura “Purple”. “As entrevistas e desenhos coletados mostram que as meninas rapidamente se integram às noções de artificialidade, de atração e de pressão sexual. Algumas já desenvolveram baixa autoestima, gostariam de ter os lábios refeitos e, como as mães delas, começar dietas para serem menos ‘gordas’. Outras já estão se perguntando sobre seu papel como mãe e esposa”, apontou a artista. 

Para a psicóloga Márcia Tosin, expoente do movimento da criação neurocompatível, as constatações de Noémie refletem como aspectos socioculturais impactam a construção individual e coletiva de como deve se dar o exercício da feminilidade. “O que vemos é uma reprodução de uma visão patriarcal que tenta uniformizar todas as pessoas do gênero feminino, como se todas nós tivéssemos que nos encaixar em uma mesma forma, em um mesmo modelo”, pontua. 

Márcia pondera que é completamente comum que as crianças demonstrem o desejo de pintar as unhas, de usar batom ou de se maquiar. “Elas podem conviver com pessoas que têm esses hábitos ou podem ter, nas mídias, esses exemplos, que vão buscar reproduzir. E não há nada de mal nisso. Enquanto brincadeira, não é algo que a gente tenha que demonizar. O que precisamos, como adultos, é estar atentos para que o uso de maquiagem não passe disso, de uma brincadeira saudável. O problema é quando o uso desses produtos é sintoma da não aceitação da própria aparência”, avalia. 

“Também é natural que as meninas tentem reproduzir modelos que estão próximos delas, como suas mães e irmãs, além de outras figuras midiáticas”, comenta. Sabendo disso, sugere que os tutores e adultos próximos tenham cuidado com comportamentos que podem potencializar os efeitos deletérios associados à reprodução de estereótipos de gênero. “Um primeiro ponto é criar meninas e meninos de maneira igualitária, sem fazer diferenciações. Frases como ‘esconde essa calcinha’, por exemplo, indicam uma educação que faz que elas se sintam as principais responsáveis pelos usos e abusos realizados pelos outros sobre os corpos delas”, diz. 

A psicóloga aconselha também que os adultos evitem fazer comentários, depreciativos ou elogiosos, sobre o corpo de uma criança. “É claro que elas precisam de elogios, pois precisam ter enaltecidas as características delas. Mas existem muitas formas de fazer isso”, adverte. “Falar bem do cabelo, como ele é, e não por causa de um penteado, elogiar a cor da pele como ela é, e não por causa do uso de maquiagem, são exemplos de atitudes que vão ser positivas. Mas é sempre bom lembrar que existem outras formas de enaltecer uma menina para além da beleza”, propõe. 

Educadora parental e psicanalista, Mary de Jesus acrescenta que comentários excessivos sobre a aparência e o comportamento de uma criança também tendem a ser nocivos para a construção da autoimagem. “Se os pais estão sempre corrigindo, seja a forma de comer, de se vestir ou de se comunicar, se tudo o que essa menina faz parece errado, ela pode adotar uma postura de tentar se adequar, de buscar sempre aprovação do outro, gerando potenciais traumas. Tende a ser mais efetiva, portanto, uma abordagem que se prenda menos a expectativas em torno de estereótipos de gênero e que seja mais acolhedora à infância, isto é, sem esperar que a criança aja como um adulto”, analisa. 

Mary destaca que a baixa autoestima na infância pode repercutir em uma série de problemas na fase adulta. “Por não terem confiança em si e por acharem que precisam ser aceitas pelo outro, essas pessoas acabam se tornando mais vulneráveis a distúrbios alimentares e a relações abusivas e também têm mais chances de serem expostas ao uso abusivo de substâncias tóxicas”, assevera. 

O poder do exemplo 

Noémie Ninot lançou, neste ano, o projeto “Mothers and Daughters”, em que volta a investigar como meninas são influenciadas pelo conceito de feminilidade. Mais uma vez, a francesa usou o seu trabalho para refletir sobre como figuras femininas próximas, como mães, irmãs e avós, são relevantes para a construção da identidade das crianças. 

“No processo de criação, recorri a um processo de impressão industrial, tradicionalmente utilizado para confecções de vestuário. Isso me permitiu criar essas imagens em camadas, colapsando uma em outra por meio do calor da impressão. É um processo difícil. As fotos ficam queimadas e arranhadas. Mas foi fascinante para mim ver como essa técnica funciona como alegoria dos relacionamentos que estão sendo abordados. Estes podem ser realmente violentos e destrutivos. Alguns dos resultados fizeram os rostos e corpos desaparecem. Outros resultados foram mais suaves, sugerindo uma relação mais positiva e amorosa, em que as imagens se fundem de uma forma diferente, unificando mais do que destruindo”, expôs Noémie em entrevista à “Purple”. 

Regra geral em todos esses processos, a artista também fala sobre as marcas que ser mulher deixa em toda a população feminina. “‘Marcas’ é um termo interessante, pois pode levar a consequências físicas e mentais. ‘Ser mulher’ neste caso tem a ver com as condições das mulheres neste mundo. O que você tem que passar para se sentir válida como pessoa? Como as pessoas vão te tratar quando te identificarem como mulher? Um exemplo de marcas de curto prazo seriam as práticas de beleza, como a maquiagem. Exemplos de longo prazo seriam coisas como cirurgias plásticas, distúrbios alimentares, traumas, violência…”, avaliou.

Hipersexualização

Um dos desdobramentos da reprodução de papéis de gênero na infância denunciados pelos trabalho de Noémie Ninot é a hipersexualização das crianças. Tema que foi abordado no polêmico filme “Mignonnes” (“Lindinhas”, título da obra no Brasil).

A produção original da Netflix é protagonizada por Amy, uma criança senegalesa criada em conformidade aos costumes de sua família, de tradição muçulmana, que muda-se, aos 11 anos, para a França. A trama coloca em primeiro plano o choque entre tradição e modernidade enfrentado pela personagem interpretada pela atriz Fathia Youssouf, que logo encanta-se com o aparente empoderamento de colegas da escola em que estuda e que formam um grupo de twerk – um estilo de dança fortemente sensualizado.

Nome por trás do projeto, a diretora Maïmouna Doucouré classifica “Mignonnes” como um “comentário social”. “Essas cenas (de crianças reproduzindo comportamentos e poses erotizadas) podem ser difíceis de assistir, mas não são menos verdadeiras”, argumentou em entrevista ao jornal norte-americano “Washington Post” respondendo a críticos que viam na obra uma apologia à hipersexualização da infância.

Na ocasião, a cineasta detalhou que o filme reflete resultados de uma pesquisa empreendida por ela no qual entrevistou cerca de cem meninas entre 10 e 11 anos. Ela própria, senegalesa e radicada na França, diz que a obra possui atravessamentos autobiográficos: “Durante toda a minha vida, fiz malabarismos com duas culturas: a senegalesa e a francesa. Como resultado, as pessoas frequentemente me perguntam sobre a opressão das mulheres nas sociedades mais tradicionais. E eu sempre devolvo: mas a objetificação dos corpos das mulheres na Europa Ocidental e nos Estados Unidos não é outro tipo de opressão?”. 

“Estamos assistindo a uma exposição assustadora das crianças e dos adolescentes nas redes sociais, e os pais parecem não saber o que fazer”, sinalizou a psiquiatra da infância e adolescência Luciana Nogueira de Carvalho, para quem o filme acerta ao colocar em pauta dimensões que, na educação formal ou doméstica, costumam ser silenciadas – principalmente no que se refere ao debate sobre a sociabilidade e a sexualidade.

Em conversa com O TEMPO à época do lançamento de “Mignonnes”, a especialista lembrou que o processo de engajamento nessas mídias se apresenta de várias formas e varia de acordo com a faixa etária, mas que não se deve desconsiderar que a erotização é uma forma de entrada em tais espaços. “O filme nos mostrou um fenômeno contemporâneo, e que bom que agora a questão está posta. Precisamos tratar desse assunto com mais rigor”, disse.

Gênero e infância

Para além dos impactos específicos dos estereótipos de feminilidade que recaem sobre as meninas, a reportagem já ouviu relatos de como a tentativa de enquadrar crianças em determinados papéis de gênero pode ser motivo de extremo sofrimento mental e emocional.

Foi o que aconteceu na família da professora Soraya Ottoni, 48, que narra uma história que, da gestação aos primeiros anos de vida de Alessandro, atualmente com 22 anos, pode reverberar em outros diversos lares onde mães e pais se percebem diante do mesmo dilema que um dia assombrou a educadora: o de não saber o que fazer diante do comportamento de filhos e filhas que não agem conforme as expectativas neles depositadas pelo simples fato de nascerem com o sexo masculino ou feminino.

“Fiquei muito feliz ao descobrir que ia ser mãe. No ultrassom, soubemos que seria um menino. Ficamos honrados. Decidimos que ele carregaria o nome do pai, que, todo orgulhoso, contou para todos que teríamos um ‘varão’. Desde esse primeiro momento, passamos a seguir um padrão. O enxoval, por exemplo, tinha cores específicas que foram determinadas para o gênero masculino. Os brinquedos são, também, segregados. Boneca é de menina, e carrinho, de menino. Quando a gente projetava o futuro, pensava em aulas de futebol, de judô, de esportes radicais e em tipos de roupas e vestuários específicos”, recordou Soraya em entrevista publicada em dezembro do ano passado.

“Contudo, logo na primeira infância, essas expectativas que eu tinha foram caindo por terra. Ao longo dos anos, o meu filho disse que aquelas brincadeiras que pensamos que seriam legais para ele, na verdade, não eram. Ele preferia outros brinquedos e outros tipos de brincadeiras. Na época, meu maior dilema era se devia ou não o impedir de brincar de boneca, de vestir minhas roupas, de usar meus sapatos, entre outras manifestações que já diziam sobre a expressão de sexualidade do Alessandro. Eu não sabia o que era ser mãe de uma criança LGBT e, por várias vezes, tentei impedi-lo de fazer ‘coisas de menina’. Agora sei que o que eu fiz foi provocar nele dor e culpa”, completou a educadora.

Hoje, Soraya dedica-se à luta pelo direito de toda e qualquer criança a uma infância plena, quer ela se adéque ou não a certos padrões de comportamento. Por essa razão é integrante do coletivo Mães Pela Liberdade, que acolhe famílias que possuem entes LGBTQIA+ em Minas Gerais.