Atrofia social

Isolamento na pandemia enferruja habilidades sociais e causa ansiedade

Isolamento pode ter provocado um 'enferrujamento' das habilidades de convívio e de relacionamento


Publicado em 19 de agosto de 2021 | 04:30
 
 
 
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Na última semana, pela primeira vez no ano, o Brasil registrou taxa de ocupação menor que 80% em leitos destinados a pacientes com a Covid-19. E, desde 19 junho, o número médio de mortes diárias causadas pela doença no país vem caindo de forma consistente. Esses resultados se devem à evolução da vacinação em todo o território nacional. Hoje, mais de 55% dos brasileiros receberam pelo menos uma dose da vacina, e quase 25% completaram o esquema de imunização. 

Claro, o número de vítimas da pandemia segue alto. Na terça-feira (17), a média móvel era de 833 óbitos em 24 horas – a menor marca desde o dia 7 de janeiro deste ano. E, além do ainda alto índice de mortes diárias, o falecimento de celebridades nacionalmente conhecidas, como o ator Tarcísio Meira, expõe que, apesar dos avanços, o coronavírus segue sendo uma ameaça à vida. Trágicas, essas perdas também reforçam o que especialistas já indicavam: que nenhum imunizante é 100% eficaz contra qualquer doença. Por fim, é presente o temor pela disseminação da variante Delta, mais contagiosa que outras cepas.

Entretanto, ainda que a pandemia não tenha sido vencida e que protocolos sanitários, como o uso de máscara e a manutenção de distanciamento social, sigam sendo necessários, cresce a sensação de uma volta à normalidade. As ruas estão sensivelmente mais cheias, e mais pessoas têm se mostrado dispostas a retomar atividades. Não sem algum embaraço.  

Abraços seguem interrompidos 

A comerciante Simone Cristina, 47, que atua na região central de Belo Horizonte, diz que, desde a reabertura do comércio na capital, em abril, se viu em situações até mesmo constrangedoras. “Antigamente, a gente tinha liberdade de encontrar alguém e abraçar, dar três beijinhos… Mas, agora, nunca sabemos bem como agir. Já aconteceu de eu ir para o abraço, e a pessoa sinalizar que não quer ser tocada”, diz, entre risadas.  

Essa falta de jeito mencionada por Simone talvez seja a expressão mais evidente de como o isolamento – necessário para conter o avanço da doença – pode ter repercutido em um enferrujar das habilidades sociais. Para a comerciante, nada que um novo ajuste não dê conta. Mas, para outras pessoas, sobretudo aquelas que mais se resguardaram, após mais de um ano sem muitas interações, a retomada dos encontros pode soar assustadora. 

É assim que se sente o ator Cristiano Lopes, 30. Em 2020, quando atividades não essenciais foram suspensas, ele experimentou, ao ir a um supermercado, um episódio de ansiedade social, fenômeno caracterizado pelo medo ou nervosismo em situações sociais comuns, em que a pessoa fica sempre receosa em estar sendo julgada, fazer algo que possa ser visto com maus olhos ou sente que está sendo criticada ou avaliada negativamente. “Estar lá me causou medo e gerou um estado de mal-estar”, comenta. 

Hoje, embora já tenha recebido as duas doses da vacina, Lopes prefere não frequentar espaços como bares e restaurantes. “Meu maior medo é contaminar outras pessoas”, garante, reconhecendo que, além disso, sente-se mais seguro e preservado na intimidade de sua casa. Tanto que, em um momento em que aglomerações deixarem de ser vetadas, ele supõe que ainda as evitará. “Vou ter que ir me readaptando devagar, de pouquinho em pouquinho”, pontua. 

Medo 

O receio expressado por Cristiano Lopes em relação a algumas formas de interação social é absolutamente normal. Essas reações, aliás, já eram esperadas, como garante o psicólogo Ivan Dias, que atua em saúde pública e saúde mental.  

“Do mesmo modo que mudar de uma rotina de sociabilidade para a de afastamento exige esforço cognitivo, também acontece na situação inversa. Isso porque o organismo tende a se acostumar com padrões comportamentais específicos, e sair do hábito de rotinas isoladas exigirá um planejamento de vida diária diferente, o que pode gerar estresse”, explica, reforçando que essa atitude não significa, obviamente, que essas pessoas torçam contra a superação da emergência sanitária. 

Lembrando que a pandemia prejudicou um comportamento essencial humano, que é a socialização – “induzindo ao isolamento e causando sofrimento por si só, pois somos seres sociais, em grau maior ou menor quanto à frequência e ao tipo de interação social” –, o psicólogo assinala que algumas pessoas, após estarem confortáveis em sua rotina isoladas, podem apresentar mais dificuldades de se expor aos percalços que envolvem as relações interpessoais. 

“Além disso, há o impacto psicológico de ter vivido tanto tempo em isolamento. Neste contexto, as fatalidades que acometeram o país e diversas famílias podem dificultar que as pessoas confiem na sua saúde”, complementa. 

Considerando todo esse cenário e ainda que a socialização exija um repertório de habilidades sociais, envolve diversos fatores relacionais e pode ser dispendiosa do ponto de vista emocional, Dias reforça que é esperada alguma ansiedade na retomada do comportamento social. “Contudo, caso ocorra a ansiedade social de forma recorrente e persistente, é recomendado que a pessoa procure um profissional, pois pode ser indício de alguma questão psicológica a ser investigada”, avalia. 

Insegurança 

Para a psicóloga e pesquisadora Renata Borja, um elemento central para explicar a persistência do receio social à retomada de atividades é a sensação de falta de perspectiva. “A angústia é gerada não só pela ruptura de rotina, mas também por um medo do futuro”, examina.

“A verdade é que, para muita gente, o medo ainda não passou. O que não é sem-razão. Quantas vezes, no decorrer da crise de saúde, vimos uma grande diminuição do número de casos e, depois, mais uma escalada? Então, neste momento, há pessoas que estão aliviadas, mas há também aquelas que estão desconfiadas. E tem ainda quem esteja com medo de encontrar o outro, porque sente que perdeu um pouco do traquejo, que lhe faltam recursos sociais”, sinaliza.  

Renata detalha que, no caso desse último grupo, será preciso voltar a treinar as habilidades de convivência e interação. “Essas habilidades são desenvolvidas por nós ao longo da vida. Quando, de repente, se fica recluso, sem contato, acabamos deixando de utilizá-las, e, por isso, podemos começar a duvidar da nossa própria capacidade social. Então, é importante ir voltando gradualmente, sendo gentil consigo mesmo, mas sem fugir, sem se ver como incapaz”, aconselha.

Introvertidos e extrovertidos. 

Ivan Dias avalia que, indiferente de características de personalidade, todos sofreram com o isolamento. “Mesmo as pessoas mais introspectivas ou introvertidas têm uma necessidade social específica, geralmente menor que as pessoas com a rotina mais sociável pré-pandemia, mas ainda assim presente”, diz.

O psicólogo acredita que, agora, a pressão exercida sobre essas pessoas, que são mais contidas socialmente, deve ficar mais explícita. “O que ficará mais claro, com o fim da pandemia, será a pressão social que existe para o comportamento de socialização aconteça, principalmente em datas significativas para os contextos desses sujeitos, como feriados, festas comemorativas”, opina.

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