“Para muitas mulheres, a maternidade significa renúncia. Para se tornarem mães, elas são forçadas a abrir mão de outros tantos projetos e sonhos, incluindo a própria trajetória profissional”. A análise é da psicóloga e especialista em gestão de pessoas e negócios Graziela Alves, que se propôs a falar sobre como a gestação e a pós-gestação acentuam a desigualdade de gênero no mercado de trabalho, depois de ler o relato de uma coordenadora financeira demitida apenas três dias após a volta da licença-maternidade do primeiro filho. Ela trabalhava na empresa havia 14 anos e, em tom de desabafo, relatou a história no LinkedIn, maior rede social profissional do mundo. “Não só como mulher, mas como profissional, e agora com um filho, me sinto uma pessoa melhor, ainda mais responsável, ainda mais forte e compromissada”, escreveu na publicação, que viralizou e já soma mais de 100 mil reações e 3.600 comentários.
Tanto engajamento não ocorre ao acaso, mas reflete como a situação vivida por aquela profissional é comum a tantas outras mulheres. No país, embora a discriminação de gestantes e lactantes seja proibida pela legislação trabalhista, quase metade das trabalhadoras já sofreu com algum tipo de penalização pelo simples fato de ter se tornado mãe. É o que indica, por exemplo, um estudo da Fundação Getulio Vargas (FGV), de 2017. De acordo com a pesquisa, 46% das brasileiras se veem desempregadas ainda no primeiro ano depois do parto.
Também se debruçou sobre o tema a professora Regina Madalozzo, do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper). Em parceria com Merike Blofield, da Universidade de Miami, ela identificou que, enquanto os pais costumam ser recompensados com melhores perspectivas em seus empregos após o nascimento do primeiro filho, a situação é o oposto para as mulheres: entre aquelas que dividiam a casa com um companheiro, 38% gostariam de estar trabalhando, mas não tinham com quem deixar a criança ou não conseguiram encontrar emprego; já entre as mães solo, 57% estavam na mesma situação.
O problema, aliás, está longe de ser uma exclusividade nacional. Um estudo feito na Dinamarca, que recolheu dados entre 1980 e 2013, mostrou que os ganhos das mulheres tendem a cair significativamente depois do primeiro filho, o que não ocorre com os homens. Na mesma linha, um levantamento feito nos Estados Unidos, em 2018, revelou que, após o nascimento de uma criança, a diferença salarial entre cônjuges, em relações heterossexuais, chega a dobrar.
É sensível, diante de todos esses dados, como a maternidade parece representar o ápice da desigualdade de gênero na vida profissional. E, de acordo com Graziela, esse cenário se torna ainda mais crítico a partir da segunda gestação. “Estamos falando de uma injustiça social que chega a ser cruel. As mulheres hoje estudam mais, mas têm remuneração menor do que a de homens que ocupam o mesmo cargo. Quando têm um filho, passam a lidar com uma grande sobrecarga de trabalho, já que tendem a acumular tarefas de cuidado com a casa e com a criança e passam a receber ainda menos – quando não são simplesmente rejeitadas pelas empresas em que trabalhavam”, critica.
Por trás da desigualdade
Entre as diversas explicações para o fenômeno, fatores históricos e culturais precisam ser levados em conta. Nesse sentido, o ensaio “Hierarquias Reprodutivas: Maternidade e Desigualdades no Exercício de Direitos Humanos pelas Mulheres” fornece algumas pistas que podem levar a uma melhor compreensão dessa realidade. No texto, as autoras Laura Davis Mattar e Carmen Simone Grilo Diniz, ambas ligadas ao departamento de saúde materno-infantil da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP), lembram que, durante muito tempo, ao menos no mundo ocidental, a responsabilidade pelo cuidado com as crianças foi, sobretudo, designada a pessoas do gênero feminino, que ficaram por séculos presas ao ideal do bom e necessário desempenho dessa tarefa.
“Isto se deve, em grande parte, às características presentes nos corpos dos homens e das mulheres que foram historicamente interpretadas pelos homens – fossem eles médicos, juristas ou figuras públicas – como sendo definidoras das capacidades que têm e papéis sociais que exercem”, anotam. “Assim, pode-se dizer que é majoritariamente sobre a mulher que recaem as principais atribuições e responsabilidades com os filhos, sendo comum nas relações familiares a constituição de uma rede feminina de solidariedade e apoio para cuidar das crianças. E essa responsabilidade, quase que exclusiva das mulheres, acabou restringindo muitas delas ao espaço privado, limitando suas potencialidades e acentuando a desigualdade de gênero”, complementam.
Graziela Alves acrescenta que resquícios de uma lógica colonizadora também reforçam a discriminação contra mães no mercado de trabalho. “Percebo que as empresas, mesmo que isso não ocorra de forma consciente, se sentem ameaçadas com esse novo papel daquela profissional. É algo que tem muito a ver com uma expectativa gerada em torno de uma suposta maior indisponibilidade daquela mulher a partir do momento que tem um ou mais filhos, sentimento que é potencializado por esse histórico colonizador e escravocrata, que marca nossa cultura e, entre outros tantos desdobramentos, transmite a ideia de posse sobre a mão de obra. Então, é como se a empresa ficasse ameaçada de perder o domínio do profissional diante dessas novas atribuições”, analisa.
A psicóloga ainda lembra que muitas empresas mapeiam e tentam se resguardar dessa eventual indisponibilidade – e muitas fazem isso já na entrevista de emprego. É o que indicou uma pesquisa realizada pela plataforma de recrutamento InfoJobs, segundo a qual 46% das respondentes contaram que já enfrentaram constrangimento ou preconceito em processos seletivos por seu gênero. “Não deixa de ser curioso que outros possíveis fatores que poderiam levar a afastamentos acabam não sendo monitorados. Ninguém pergunta para o homem se ele joga futebol no fim de semana, se ele faz algum esporte de risco que poderia provocar algum tipo de acidente levando também a um afastamento”, pontua.
Soluções
“Não há caminho fácil para mudar essa realidade, mas, pelo menos, já sabemos que percurso traçar”, sinaliza a especialista em gestão de pessoas e negócios Graziela Alves. Ela indica que o mundo corporativo e as famílias precisam cumprir uma lista de deveres de casa a fim de que essa transformação ocorra. “Se, no seio familiar, existir um debate sobre os papéis sociais, se existir uma desconstrução daquela ideia de que papéis são designados pelo gênero da pessoa, ao que tudo indica, essa mentalidade será transposta para a vida profissional, e aquele filho ou filha vai crescer entendendo que a criação de uma criança não é um dever natural e exclusivo das mães, quebrando o cerne dessa lógica que penaliza profissionalmente as mulheres por terem filhos”, sinaliza.
“E, em relação às empresas, precisamos lembrar que ainda há uma presença majoritariamente masculina em cargos de liderança, conferindo a eles a posição de definidores da cultura daquele empreendimento ou daquele setor”, lembra. No Brasil, uma pesquisa realizada pela consultoria Grant Thornton indicou que elas ocupam 38% dos postos de liderança. “Acredito que, se tivéssemos menos disparidade nessa seara, poderíamos ter também um ambiente mais acolhedor para a maternidade no mundo corporativo”, diz, citando que processos seletivos que contemplem a diversidade fariam que essa consciência fosse ampliada.
Mas Graziela reconhece que ambos os caminhos envolvem uma mudança cultural, que costuma se dar de maneira lenta e gradual. “Para acelerar esse processo, questões de ordem prática, como leis e diretrizes, podem funcionar”, sustenta. Para ela, um bom começo seria repensar as regras para a licença-maternidade, que possibilita que funcionárias se ausentem por um período 120 dias sem que haja corte de remuneração, e para a licença-paternidade, em que o afastamento é de apenas cinco dias, podendo chegar a 20 dias em alguns casos. “Alguns países, como a Suécia, já testam outros modelos mais igualitários”, cita. Por lá, os pais têm direito a 480 dias de licença-parental remunerada, que são divididos igualmente entre os pais.
“Essa paridade, que comunica para a sociedade que o cuidado com a criança não é dever apenas da mulher, seria muito benéfica, sobretudo se associada a políticas públicas e também a ações de empresas no sentido de fortalecer a rede de apoio necessária para a criação dos filhos, como as creches”, pontua a psicóloga, citando que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) atribui a responsabilidade de garantir direitos das crianças não apenas à família, como também à comunidade, à sociedade em geral e ao poder público.
Saída. A paridade entre as licenças parentais é desejada pela maioria das trabalhadoras brasileiras. Segundo a pesquisa realizada pelo InfoJobs, 69% das entrevistadas concordaram que mulheres não possuem as mesmas chances que os homens ao buscar uma oportunidade de emprego. E 75% delas acreditam que a solução para a questão passa pela intensificação da licença-paternidade.