Em um país profundamente desigual, a ideia de uma meritocracia pura e absoluta torna-se possível apenas no campo da utopia, já que, na prática, a formulação aparece dissociada de qualquer senso de justiça. Contudo, ainda que inviável, é sensível que a mentalidade do merecimento afeta profundamente as dinâmicas sociais e a autopercepção de si, revelando-se, muitas vezes, um engodo nocivo ao bem-estar.
É o que observa a psicóloga Simone Miranda Felipe. “Na minha prática clínica, percebo que há dois fenômenos problemáticos atrelados a um apego excessivo ao ideal do ‘fazer por merecer’, que envolvem uma leitura disfuncional de si próprio. De um lado, há aqueles que estão constantemente se sentindo aquém das expectativas neles depositadas. De outro, há os que não conseguem distinguir privilégio de direito e acham que precisam gozar de certas benesses mesmo sem ter feito nada para alcançar aquele objetivo”, expõe.
No primeiro caso, Simone lembra que a exposição de grandes feitos, por meio de redes sociais, e a expectativa pelo cumprimento de alguns padrões sociais idealizados exercem pressão sobre os indivíduos por uma performance impecável nas mais diversas atividades. “Se a gente for pensar, é muito difícil se sentir plenamente merecedor se isso significa cumprir com tudo o que é esperado de nós. Em parte, isso ajuda a entender por que o Brasil, ainda antes da pandemia, já se encaminhava no sentido de ser o país mais ansioso do mundo”, examina.
“Já peguei casos graves de pacientes que, da perspectiva profissional, apesar do sucesso, se sentiam incompetentes e incapazes”, situa.
Na avaliação do psicólogo Ernani Gomes, especialista em terapia cognitivo-comportamental e professor na Universidade Estácio, o espírito competitivo percebido em nossa sociedade provoca uma tendência a comparações desmedidas e indevidas, que podem minar o senso de merecimento e sabotar a autoestima. Esse contexto, continua ele, estimula que algumas pessoas manifestem uma crença limitante de desvalor, em que tudo o que já foi conquistado é creditado à sorte, e não ao esforço pessoal.
A exaustão é outro dos possíveis efeitos associados ao credo que reza a cartilha da meritocracia. Isso porque, acreditando que basta trabalhar duro para que todo e qualquer objetivo seja alcançado, sem se considerar que fatores externos podem favorecer ou prejudicar aquela empreitada, a jornada pode se tornar sem fim, e o fato de o prometido sucesso não vir, uma fonte de adoecimento mental.
Na outra ponta, a ilusão meritocrática gera problemas também para aqueles que acreditam ser merecedores incondicionais. “Temos os casos de pessoas que se comprometem pouco e, mesmo assim, acreditam que devem ser premiadas. São sujeitos que têm dificuldade de diferenciar o que é direito, e deve ser a eles garantido, do que é apenas um privilégio. Um exemplo são adolescentes que cobram de seus pais um celular de última geração ou um cartão de crédito, como se esses objetos fossem essenciais, como se merecessem receber esses itens, ainda que não façam nada para um dia tê-los”, observa Simone.
A psicóloga destaca que esses indivíduos tendem a ter dificuldade de agir com autonomia e, assim, experimentam grande frustração ao serem contrariados ou ao ficarem frente a algum desafio. Curiosamente, é comum que essas pessoas também compartilhem de crenças limitantes de incapacidade. “Embora elas demonstrem acreditar merecer algo, também se sentem incapazes de lutar por isso”, comenta.
Por fim, há também o caso daqueles que se recompensam sem qualquer moderação, um hábito que pode esconder excessos que só servem para encobrir o mal-estar. Não que se presentear seja proibido. Quando cumprimos com algum objetivo, pode, sim, ser interessante se permitir algum agrado. Mas, se precisamos fazer isso sempre, talvez haja uma insatisfação pregressa que merece ser tratada, podendo desencadear atitudes compulsivas. Exemplo disso são os sujeitos que se recompensam com compras sempre que enfrentam um grande desafio, terminando por ficarem endividados.
Saída
Para Simone Felipe, equilíbrio é a palavra-chave. “Devemos entender que, em algumas ocasiões, é importante que consigamos cumprir com as expectativas em nós depositadas, que devemos nos comprometer e buscar resultados. Porém, devemos estabelecer o quanto é aceitável que haja essa entrega, saber se recompensar de forma adequada e entender que, em alguns momentos, não precisamos dar conta dos ideais imaginados para nós”, diz.