Importantes janelas para o pensamento modernista, os periódicos literários feitos em Minas mereceram a atenção de Mário de Andrade, que, no final da década de 20, fez um balanço sobre o que pôde ver no Estado. “À época, ele avaliou que, das publicações mineiras, ‘A Revista’ e a ‘Verde’ foram as principais. A primeira do ponto de vista individual, por ter projetado nomes importantes como o de Drummond. E a segunda do ponto de vista coletivo, por ser um canal de consolidação do movimento”, examina Luiz Ruffato. O escritor lembra ainda que outras revistas com proposta similar surgiram em Minas.
Em Itanhandu, cidade de cerca de 5 mil habitantes na Serra da Mantiqueira, causou alvoroço o lançamento, em 1927, da “Electra”, editada pelos poetas Heli Menegale e Heitor Alves. “Eles eram mais ligados ao chamado grupo católico, que tinha integrantes como (o escritor) Tasso da Silveira. Curiosamente, embora esteticamente modernista, essa publicação tinha um conteúdo mais reacionário”, informa.
Por fim, em 1929, surge em Belo Horizonte o periódico “Leite Criôlo”, dirigido por João Dornas Filho, Aquiles Vivacqua e Guilhermino César. “Essa última estava mais alinhada à antropofagia proposta por Oswald quando ele já tinha rompido com Mário de Andrade. Contudo, estamos falando de uma revista muito problemática, com muitas passagens racistas”, critica o escritor.
Detalhe que o aparentemente contraditório verniz estético vanguardista sobre um conteúdo reacionário não é uma característica apenas mineira, mas também de todo o movimento. Em São Paulo, para ficar em um exemplo alegórico, figuras como Plínio Salgado, fundador e líder da Ação Integralista Brasileira, partido nacionalista católico de extrema-direita inspirado nos princípios do movimento fascista, circulou, por anos, entre grupos de artistas e intelecutais ligados ao modernismo.
Terreno fértil. Além das contribuições do ponto de vista literário, Cataguases foi um espaço importante para a reunião de expoentes do modernismo ao longo dos anos 40. Na cidade, o escritor Francisco Inácio Peixoto, um importante industrial e fazendeiro naquele período, patrocinou importantes manifestações culturais de Cataguases, inclusive fazendo do lugar um terreno fértil para a arquitetura modernista. “Ele levou para lá personalidades como (o arquiteto) Oscar Niemeyer, (o paisagista) Burle Marx e (os artistas plásticos) Djanira da Motta e Silva e Cândido Portinari. Um grupo que, depois, foi levado para Belo Horizonte por Juscelino Kubitschek, na época em que foi prefeito da capital e governador do Estado”, comenta Ruffato.
Alinhamento político
Para o sociólogo e escritor Sergio Miceli, “a experiência mineira extravasou as fronteiras estaduais e está entre as mais consistentes e bem formatadas considerando todo o movimento modernista brasileiro”. E nada disso foi por mero acaso.
O estudioso aponta que a proximidade de artistas mineiros a oligarcas da política do café com leite (nome que se dá ao processo de alternância de poder entre os estados de Minas Gerais e São Paulo, que ocorreu durante o período da ‘República Velha’, entre 1889 e 1930) e, posteriormente, a associação desses intelectuais com políticos da ditadura do Estado Novo, quando Getúlio Vargas deu um golpe e assumiu a presidência, garantiu certa ênfase ao grupo.
Miceli cita que Carlos Drummond de Andrade, para ele a voz fundamental do modernismo em Minas, por exemplo, trabalhou no gabinete de Gustavo Capanema, ministro da Educação que mais tempo ocupou o cargo. Mas, claro, o sociólogo ressalta que não foi essa proximidade que fez da obra do poeta algo potente.
“Ele não apenas adota a agenda proposta pelo movimento como também a executa à sua maneira, o que torna sua obra especial e destacada. Há, nos poemas de itabirano, aquilo que Mário de Andrade chamava de ‘cenas da vidinha besta’. Mas não de uma maneira qualquer, pois ele sempre traz, como plano de fundo, o cotidiano da vida em Minas e o faz de um modo mineiro”, analisa, acrescentando que outros nomes são também importantes para dissecar como esse movimento se formatou no Estado. Caso de João Alphonsus e Cyro dos Anjos, por exemplo. Para Miceli, seria oportuno que, na ocasião do centenário da Semana de 22, quando mais atenção vem sendo devotada a este momento histórico, ocorresse um esforço de redescoberta desses autores.
Já o pesquisador Ivan Marques destaca na obra desses autores uma das características que considera essencial para a compreensão do modernismo brasileiro: um olhar crítico para o processo de modernização das cidades. “O poema ‘Infância’, de Drummond, produz um registro nesse sentido. O João Alphonsus também faz esse movimento e aponta criticamente, por exemplo, para a forma como o crescimento de Belo Horizonte, pensando em um plano urbano tão racional, se mostra também excludente. O conto ‘Galinha Cega’ é um bom exemplar, já que tematiza a cidade a partir da periferia, focalizando um outro tipo de história”, analisa.
“Esse é o ponto central para compreender o modernismo, inclusive o que se fazia em BH. Ou seja, esses autores sofrem a influência da cidade moderna e reagem a ela criticamente. Em suas obras, eles não estão só fazendo eco ao mundo da máquina e da velocidade”, reforça o pesquisador.
Legado político
Sergio Miceli, que lançou em janeiro o livro “Lira Mensageira: Drummond e o grupo modernista mineiro”, acredita que, para além dos legados artísticos, o grupo de Minas contribuiu para a constituição da principal política patrimonial brasileira. Foi afinal por influência de atores do modernismo que, em 1937, Getúlio Vargas instituiu o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), hoje, o Iphan.
É especialmente curioso que, embora rechaçassem a produção artística anterior ao movimento por considerá-la muito alinhada a escolas europeias e, portanto, desprovidas de uma brasilidade genuína, desde muito cedo, os modernistas reconheceram no barroco mineiro setentista traços do ideal de uma arte autenticamente brasileira que eles tanto perseguiam.
Registros dessa compreensão podem ser encontrados, por exemplo, em “Arte religiosa do Brasil em Minas Gerais”, em que Mário de Andrade - que já tinha estado em cidades como Mariana e Ouro Preto em 1919 e volta ao Estado na famosa caravana de modernistas de 1924 com a intenção de conhecer melhor as cidades históricas mineiras - chega a argumentar que, por desconhecer as igrejas construídas em estilo português, muito presentes no Rio de Janeiro e em Salvador, Antônio Francisco Lisboa, popularmente conhecido como Aleijadinho, criou obras que “tomaram um caráter bem mais determinado e, poderíamos dizer, muito mais nacional”.
Não surpreende, portanto, que Ouro Preto tenha sido, em 1938, uma das primeiras cidades reconhecidas como um patrimônio histórico e cultural brasileiro.
Centralidade da Semana de 22 e invisibilização
Embora reconhecessem a qualidade e autenticidade da produção artística de figuras como o escultor, entalhador e arquiteto Antônio Francisco Lisboa, filho de uma mulher africana escravizada, os modernistas, em vez de promoverem a valorização da autoria de artistas negros e indígenas, geraram o apagamento da identidade desses criadores. É o que argumenta os professores artistas Wagner Leite Viana e Janaina Barros Silva Viana, da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Para eles, aliás, o protagonismo emprestado à Semana de 22 em relação ao modernismo brasileiro gera a invisibilização de artistas anteriores ao evento ou que não participaram dele.
“Por uma série de razões, falando em artes visuais, não consideramos a Semana de Arte Moderna como um marco da produção modernista no Brasil. Antes dela, tivemos artistas, inclusive artistas negros, alguns oriundos da Escola Imperial de Belas Artes, que já traziam essa proposta de maneira muito latente, como os irmãos Arthur e João Timotheo que, de forma pioneira, já trazia elementos modernos para seus trabalhos”, avalia Wagner Viana.
“Além disso, podemos pensar em outros marcadores que já indicavam para a inserção do modernismo no cenário artístico brasileiro fora do contexto paulista. É o que vai apontar o trabalho do crítico Antônio Bento, que dá notícia de como esse movimento vai se iniciar antes da Semana de 22 e em outros centros urbanos”, complementa, fazendo menção ao jornalista e escritor que nasceu em Araruna, na Paraíba, em 1902 e viveu sua infância e adolescência no Engenho Bom Jardim, no município de Goianinha, Rio Grande do Norte. Antes de ir para o Rio de Janeiro, ele viveu, em 1920, no Recife a fim de iniciar um curso de Direito. Só em 1930 ele foi reconhecido como um interlocutor na crítica de arte.
Janaina acrescenta que o modernismo, tal qual ditado pelo grupo paulista, direcionou um olhar negligente para a produção artística de origem negra e indígena. “Quando os primeiros modernistas vão se opor ao modelo de desenho proposto pela Academia de Belas Artes, eles buscam outros referenciais no que chamaram de primitivismo ou de arte popular. Nesse processo, contudo, notamos que há um processo de apagamento de autoria, de forma que tudo se torna uma coisa só. Então, a arte feita por mãos negras ou por mãos indígenas passa a ser chamada de forma genérica de arte popular ou primitiva, como se aquelas formas de produção não tivessem suas matrizes e particularidades”, critica.
Estereótipos. Ainda sobre o tratamento de questões raciais pelos modernistas, ambos os docentes concordam com apontamentos de Luiz Henrique Silva de Oliveira no ensaio “Manifestações do negrismo no modernismo brasileiro: poesia e romance”. No texot, o autor argumenta que o modernismo brasileiro pouco alterou a imagem do negro no campo das letras uma vez que “a literatura brasileira do início do século XX apenas troca o racismo do século XIX por uma ‘simpatia diluída’ que tendia a acumular o ‘pai João’, com os estereótipos e epítetos da simplicidade, da bondade e da alegria naturais”.