Comportamento

Os desafios da proteção da infância e adolescência no ambiente virtual

Exposição excessiva da imagem de crianças na internet, conhecida como 'sharenting', pode gerar consequências nocivas


Publicado em 29 de novembro de 2022 | 03:00
 
 
 
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Com smartphones dotados de câmeras cada vez mais potentes e sempre ao alcance da mão, pode parecer difícil ceder à tentação de agir como um paparazzi da infância, capturando, desde o nascimento, cada novo passo, gracinha, conquista ou até birra de uma criança. Afinal, tudo, aos olhos dos adultos mais próximos – sejam eles pais, avós ou tios, por exemplo –, soa fofo demais para não ser devidamente registrado. E, já com a imagem feita, surge o implícito convite de, com um simples clique, compartilhá-la – até porque, nas redes sociais e aplicativos de conversa, muitas são as pessoas, conhecidas e desconhecidas, que se mostram ávidas por acompanhar o crescimento dos pequenos, o que garante aquela chuva de likes e de comentários, tão comuns a esse tipo de publicação. 

É nesse contexto que proliferam na web cenas, das mais cômicas às mais fofas, envolvendo crianças. Um fenômeno tão comum que, agora, há um termo que designar essa prática. Trata-se do “sharenting”, expressão em língua inglesa que junta as palavras “share”, que significa “compartilhar”, e “parenting”, que se relaciona à criação de filhos. O problema é que esse comportamento, de tão automático, nem sempre vai considerar os perigos inerentes. Afinal, assim como a exposição imoderada dos pequenos a telas, a exposição excessiva da imagem deles nas redes também pode ser prejudicial e provocar disfunções parentais e familiares. 

“Alguns riscos são mais óbvios e concretos. Se as fotos compartilhadas nas redes trazem muitas informações sobre o cotidiano daquela criança, por exemplo, há o risco da ação de pedófilos e de sequestradores”, comenta Sandra Cavalcante, doutora em saúde pública, advogada e cientista da computação, que pesquisa tecnologia e direito. Mas estes não são os únicos perigos associados à prática do sharenting. 

“Todos nós já ouvimos histórias sobre situações que vivemos em nossa infância e que, de alguma maneira, nos expõem, nos constrangem. Imagine que esses episódios estivessem nas redes, para todo mundo ver?”, reflete a estudiosa, que é autora de um dos artigos reunidos no livro “Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): Entre a Efetividade dos Direitos e o Impacto das Novas Tecnologias”, lançamento da Editora Almedina e que reflete sobre os desafios do ECA frente à vulnerabilidade de crianças e adolescentes no ambiente virtual. 

Perigos 

A psicóloga e pesquisadora Renata Borja lembra que, mesmo na melhor das intenções, ao colocar nas redes postagens que podem fazer de meninos e meninas vítimas de bullying, os tutores podem acabar prejudicando aqueles que, na verdade, deveriam proteger. “Nenhum pai ou mãe tem o controle de como os filhos enfrentarão esse tipo de exposição”, reflete ela em entrevista a O TEMPO quando falou sobre os riscos do excesso de telas na infância.  

“Além disso, essas publicações podem desencadear brigas e problemas no relacionamento no seio familiar à medida que a criança começa a ter noção de que a imagem dela está sendo exposta ou que foi exposta de uma forma que ela não concorda e desaprova”, acrescenta. Esses conflitos tendem a se acentuar a depender das dimensões da repercussão do conteúdo. “No caso daquelas crianças que se tornam famosas com essas postagens, poderão surgir problemas associados à fama que ela não escolheu para si”, situa Renata. “E mesmo as que demonstram gostar da fama podem acabar se iludindo com esse sucesso virtual, tornando-se – e tornando os seus pais também – escravos dessa condição, o que pode trazer grandes frustrações, conflitos e sofrimento, além de problemas aditivos”, sugere. 

Sandra faz avaliação semelhante. Ela adverte que, ao se tornarem “influenciadores mirins”, é comum que essas crianças tenham que lidar com grande pressão sem ter sequer repertório e maturidade para isso. “Para começar, precisamos nos lembrar de que esses sujeitos estão em processo de formação e são profundamente influenciáveis. Nesse contexto, uma das questões é que, ao estar nesse meio, elas acabam vivenciando um ambiente extremamente consumista. Além disso, precisam responder a fãs, que fazem muitas demandas, sem contar os ‘haters’, que não medem palavras e podem ser muito agressivos, mesmo na interação com crianças”, lembra. 

Conscientização 

A doutora em saúde pública aponta que o ECA, embora tenha 32 anos, permanece um instrumento fundamental e atual para o enfrentamento da exposição da imagem de crianças e adolescentes na web. “Tanto é que estamos falando de uma lei que é elogiada no mundo inteiro”, diz. “A grande dificuldade diz respeito à aplicação do que está instituído. Para tanto, precisamos regulamentar limites, sobretudo quando estamos falando de uma realidade em que a presença nas redes se torna uma fonte de renda”, detalha, citando que o mercado de artistas mirins é uma exceção à regra, pois o trabalho infantil é vetado no país, e, por isso, só é autorizado mediante expedição de alvará concedido pelo poder judiciário. 

“Portanto, se a criança ou adolescente faz shows, apresenta programas ou é remunerada de alguma maneira, mesmo que indiretamente, é importante que os pais e agências regularizem essa situação”, pontua. Ela ainda menciona que, por falta de regulamentação, os limites desse trabalho deverão ser estabelecidos em juízo. Entre os critérios a serem observados estão, por exemplo, o tempo de dedicação, que não pode concorrer com a educação, e a exposição a situações de perigo, o que não pode ocorrer. Sandra ainda lembra que a publicidade disfarçada é proibida no Brasil. “Então essa remuneração indireta, por meio de presentes enviados para influencers mirins que fazem unboxing, é irregular”, adverte. 

Há 15 anos estudando o mercado de artistas mirins, Sandra admite que, devido à grande pulverização desse tipo de conteúdo, a fiscalização na internet se torna mais difícil. Ao mesmo tempo, ela defende que haja maior divulgação de informações necessárias para balizar o trabalho de influencers com menos de 18 anos. “Muita gente não cumpre essas normas por desconhecê-las”, argumenta.  

Educação. No mesmo sentido, a estudiosa indica ser urgente um amplo trabalho de divulgação dos riscos e formação crítica visando a um melhor uso das plataformas virtuais. “Os adultos, hoje, não conseguem orientar pessoas na infância e adolescência porque nem eles mesmos sabem bem como se portar em segurança nesses ambientes”, sinaliza. Pensando nisso, ao lado da professora titular da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (FO/USP) Ana Estela Haddad, Sandra vem desenhando um curso de atualização para professores da educação básica, a ser ministrado no Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP. 

“Entendemos ser necessária uma alfabetização digital crítica que chegue a todos. Um dos caminhos para isso é, por meio das crianças – que vão replicar o conhecimento em suas casas, a exemplo do que já vimos acontecer em relação à conscientização ambiental –, chegar aos adultos”, explica. 

Dicas 

Gerente de advocacy da Childhood Brasil, entidade que defende os direitos da infância, Itamar Gonçalves aponta que a estratégia de saber da criança se ela autoriza que sua imagem seja compartilhada é um filtro interessante a ser adotado pelos pais.

“Se for uma criança que já consegue interagir, é importante escutar essa criança para saber se ela se sente confortável. E ela pode demonstrar isso de várias formas, como quando fica inquieta e pede para não ser fotografada”, disse em entrevista sobre os riscos associados à superexposição de crianças e adolescentes a telas. Ele ainda lembra que imagens com teor de nudez devem ser evitadas a todo custo. “Essas fotos podem estar alimentando uma rede criminosa de comércio de conteúdos de pedofilia”, alerta.

Ele também orienta que os pais e outros adultos próximos se policiem sobre o que postam e sobre o uso que eles próprios fazem da internet. “Quem usa indiscriminadamente as redes sociais pode estimular seu filho a fazer um uso também indiscriminado delas”, relata. “Além disso, é seguro dizer que os usos que fazemos da internet afetam diretamente o processo de educação infantil. Por exemplo, vai soar contraditório, para a criança, escutar de seus pais que há partes do corpo que são privadas, que não devem ser tocadas por outras pessoas ou expostas, se, ao mesmo tempo, ela sabe que seus pais estão postando ou já postaram publicamente fotos dela nua em suas mídias”, reflete. 

A psicóloga Renata Borja lembra ser importante evitar imagens que identifiquem o local onde a criança estuda, clube que frequenta, bairro em que mora. “Evite vídeos e fotos que exponham a criança com pouca roupa ou que podem ter conteúdo que possa ser vexatório para ela. Criança fazendo algo errado, lambuzada, falando errado ou atuando de forma que possa parecer engraçado para adultos pode trazer consequências negativas no futuro”, aconselha.

Assista

Privacidade Hackeada (2019). Dirigido por Karim Amer e Jehane Noujaim, o filme repassa o escândalo da empresa de consultoria Cambridge Analytica e do Facebook através da história de um professor nos Estados Unidos. Ao descobrir que, junto com 240 milhões de pessoas, suas informações pessoais foram hackeadas para criar perfis políticos e influenciar as eleições americanas de 2016, ele embarca em uma jornada para levar o caso à corte, já que a lei americana não protege suas informações digitais mas a lei britânica sim. Disponível na Netflix.

O Dilema das Redes (2020). Elencando diversos problemas intrínsecos à lógica de mercado de ferramentas como o Facebook, o Instagram e o YouTube, o filme dirigido por Jeff Orlowski desenha um cenário apocalíptico que previa um colapso social. Segundo a tese, o radicalismo, alimentado pelos algoritmos, se tornaria regra e, portanto, o diálogo seria cada vez menos efetivo. É como se, no lugar da sonhada “aldeia global”, a internet favorecesse um comportamento tribal. Como remédio, a produção chega a cogitar a extinção das redes sociais tal qual existem hoje. Disponível na Netflix.

Annette (2022). O filme musical e drama psicológico de Leos Carax narra a história de um comediante de stand-up que, com a carreira declinante após escandalos sexuais, passa a explorar os talentos da filha recém-nascida, que é logo alçada à condição de estrela mundial enquanto tem sua imagem explorada comercialmente pelo próprio tutor. Disponível no Mubi.

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