Reviravoltas

Pagar a língua: um dia vai acontecer com você!

Expressão é usada quando alguém faz algo que criticava anteriormente. Situação pode acontecer com todas as pessoas e nos mais diversos contextos


Publicado em 23 de setembro de 2021 | 04:29
 
 
 
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Em uma live, nas redes sociais, em que interagia com seus seguidores, a modelo Yasmin Brunet resolveu dar mais detalhes sobre o relacionamento dela com o surfista Gabriel Medina. Na conversa, reconheceu que, no passado, costumava criticar casais que usam apelidos carinhosos e, agora, se vê “pagando língua”. “Vou falar a verdade. Nunca pensei em minha vida que teria isso de apelido. Sério, sempre julguei, e agora sou essa pessoa”, disse. Durante a transmissão, feita pelo Instagram, ela ainda inteirou que os fãs podiam, mas recomendou que não julgassem aquela atitude, “porque um dia vai acontecer com vocês!”.

O conselho de Yasmin é válido. Afinal, “pagar língua”, expressão usada quando alguém faz algo que criticava anteriormente, se mostra universal e pode acontecer com todas as pessoas e nos mais diversos contextos.

Já o medo de, um dia, ser pego fazendo algo que juramos que nunca faríamos, ou gostando de algo que garantíamos que nunca iríamos gostar, revela como, normalmente, somos condicionados a ver a rigidez como uma virtude. “É como se tivéssemos a necessidade de ser uma pessoa só o tempo todo, em qualquer circunstância e em qualquer momento da vida”, resume a psicóloga Isabel Camargos, salientando que essa crença é, na verdade, uma perigosa ilusão.

“Como já disse Raul Seixas sobre preferir ser uma ‘metamorfose ambulante’, podemos dizer que a mudança é um elemento constante em nossa história. Nós nos transformamos por uma série de fatores. Pode ser porque estamos vivendo uma situação específica que exige aquela postura pontual, pode ser porque, naquele momento, temos mais recursos ou nos faltam recursos, sejam intelectuais, emocionais ou financeiros, por exemplo”, sentencia.

“Portanto, quando tentamos ser sempre iguais e imutáveis, na verdade, estamos nos afastando de quem realmente somos e apenas perseguindo uma miragem de uma ideia que fazemos de nós mesmos. E essa atitude, potencialmente, vai levar ao adoecimento e à frustração, uma vez que mudar é inevitável”, conclui.

Logo, enquanto evitar as nossas próprias metamorfoses se revela uma atitude nociva ao nosso desenvolvimento, aceitar que estamos em constante processo de construção de nossa identidade confere mais leveza a esse temido ato de “pagar língua”.

“O problema desse termo é que ele sempre vai soar pejorativo e carregado de julgamento. Quando dizemos que alguém está ‘pagando língua’, é como se estivéssemos apontando para o que seria uma espécie de falha de caráter dela. De alguma maneira, é como se aquele indivíduo estivesse em dívida com os outros por não cumprir com as expectativas nele depositadas, como se não conseguisse sustentar uma afirmativa de tempos atrás”, pontua a psicóloga.

Origem do termo

Hoje, se convencionou utilizar a expressão “pagar a língua” para qualquer ocasião em que a pessoa faz algo que dizia que nunca faria. Mas, originalmente, o termo descreve um fenômeno mais complexo e que significava quase uma “vingança do destino”.

De acordo com a “Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira”, “‘pagar língua a palmo’ significa sofrer as consequências do que se disse inconsideradamente ou por acinte, recebendo-se por tal o justo castigo”. Ainda segundo a publicação, o verbete está associado a um contexto um tanto macabro: “Essa expressão surge por alusão ao fato de que a pessoa que sofre o castigo deita a língua de fora, por lhe lançarem a mão à garganta ou por ser enforcada”.

E essa noção punitiva, que atribui ao destino o papel de carrasco, ainda vigora. É o clássico caso daquela pessoa que sempre desaprovou a forma como os outros criam os filhos deles e que, de repente, ao tornar-se pai ou mãe, se vê naquela mesma situação que antes tanto criticou.

“Nesse sentido, o ‘pagar a língua’ aparece relacionado à tendência de pensar que a grama do vizinho será sempre mais verde, que a vida do outro é sempre mais fácil. Movidos por esse sentimento, vamos imaginar que soluções fáceis resolveriam os dilemas dos outros. Então, se o filho de alguém não come qualquer coisa, vamos pensar: ‘É só obrigá-lo’. Porém, quando nós mesmos vamos viver essa experiência, vamos descobrir que aquela situação é muito mais complexa, que precisaremos fazer concessões”, avalia Isabel Camargos.

A psicóloga opina que, ao protagonizar a nossa própria história, esse pagar a língua é uma fonte de aprendizado. “Podemos extrair dessas experiências uma capacidade de ser mais compassivo consigo mesmo e empático com o outro na medida em que entendemos que aquilo que tínhamos como ideal não funcionará em qualquer ocasião”, sugere.

Já aconteceu com você

Se a mudança é uma constante e se tendemos a julgar outras pessoas de uma perspectiva deturpada, atribuindo falsa simplicidade às experiências alheias, então é verdadeiro dizer que todos estamos potencialmente vulneráveis a “pagar a língua”.

Essa dinâmica só vai mudar quando deixarmos de nos pautar pela polarização do “nunca” ou “sempre”. “Quando nos entendemos de maneira mais fluida, trocando as convicções extremas pelo ‘às vezes’, pelo ‘de vez em quando’ e pelo ‘pode ser que’, vamos sair desse lugar de rigidez e, assim, estaremos menos expostos a essas contradições e, mesmo que elas aconteçam, estaremos em paz com isso”, sugere Isabel Camargos.

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