“Não está sendo fácil para ninguém”. Esta é uma expressão que, no contexto de um mundo assombrado pela pandemia da Covid-19, vem sendo repetida à exaustão e que, de maneira geral, traz em si algo de verdade, mas que pode ser completada por outra: “Estamos sob a mesma tempestade, mas em barcos diferentes”. Afinal, algumas pessoas, por razões de saúde ou por motivos socioeconômicos e culturais, encontram dificuldades específicas para lidar com essa tal nova normalidade. Sem dúvida, é o caso de crianças diagnosticadas com o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). Trata-se de um grupo que possui demandas próprias e que tem mais dificuldade na lida com um conjunto de elementos muito presentes neste período, como em relação ao manejo da ansiedade e do estresse e à adoção de novos hábitos e de protocolos rígidos.

Um distúrbio que afeta até 5% das crianças em idade escolar, segundo dados da Associação Brasileira de Déficit de Atenção (ABDA), “o TDAH é uma alteração do neurodesenvolvimento que culmina no tripé de sintomas: desatenção, impulsividade e hiperatividade”, indica Rodrigo D’Angelis, psiquiatra geral e da infância e adolescência, lembrando que nem todo comportamento inquieto e nem toda desatenção levam ao diagnóstico desse transtorno. O profissional explica ser comum a esses pacientes um comportamento impulsivo, com excesso de pensamentos, desmotivação e distração, de forma que tarefas longas não são mantidas e compromissos ficam prejudicados. 

As mudanças de rotina, o rigor dos novos protocolos – como as constantes medidas de higiene para evitar contaminação – e as novas dinâmicas domésticas que trazem em seu bojo mudanças no convívio familiar são fatores que, dentro das particularidades do TDAH, podem afetar aspectos relacionados ao comportamento, ao convívio e ao bem-estar, assinala D’Angelis. E o fato de não considerar essas particularidades pode implicar em um agravamento da saúde mental dessas pessoas, alerta.

O transtorno, vale dizer, pode contribuir para baixa autoestima, relacionamentos problemáticos e dificuldade na escola ou no trabalho. “É uma fase em que todos estão precisando de uma readaptação, e particularidades no convívio, com ou sem o diagnóstico do TDAH, precisam ser considerados”, pondera.

Mudanças no convívio devem ser instrumento para o exercício da empatia

Diante de um quadro em que a reclusão domiciliar ainda se mostra a melhor ferramenta para frear a velocidade de proliferação do novo coronavírus, muitas famílias se viram, de uma hora para outra, forçadas a uma convivência mais contínua. “E, se há um maior convívio, é natural que pontos de desconforto e de desprazer fiquem mais aguçados”, avalia Rodrigo D’Angelis. Para ele, conhecer esses aspectos mais desafiantes da dinâmica familiar é importante para a construção da relação de convívio. “Se há pontos que são afetados por componentes do comportamento de uma pessoa com TDAH, devemos estar atentos a essas especificidades”, aconselha. 

O psiquiatra reforça que a convivência pode ser vista como oportunidade para lapidar sentimentos empáticos. “Devemos reconhecer o momento em que estamos cansados ou desgastados, alegres ou irritados e os momentos em que o outro está assim. Dessa maneira vamos desenvolver nossa habilidade de empatia e de acolhimento e aprender a oferecer cuidado, seja em relação ao outro, seja em relação a nós mesmos”, pontua. 

É a partir desse exercício que será possível oferecer um cuidado específico às crianças com TDAH. “Nas atitudes, no convívio, é fundamental que as pessoas estejam conscientes de seus sentimentos de forma que, ao lidarem com isso, consigam evitar lançar adjetivos pejorativos, julgamentos e condenações para pessoas com TDAH para que isso não venha a afetar a autoimagem dela”, aponta.

A cozinheira Janaína*, 38, ratifica as observações de D’Angelis. Mãe de um menino de 11 anos que tem diagnóstico de TDAH desde os 2 anos, ela relata que, no início, sofreu muito. “Eu sempre era chamada nas escolinhas dele, nas creches… Sempre queixas por causa do comportamento. Perdi as contas de quantas vezes tive que correr do meu trabalho para ir resolver alguma coisa”, comenta. É comum, a exemplo de seu desabafo, que crianças com o transtorno sejam rotuladas como problemáticas, rebeldes e desinteressadas.

A rotina em família, recorda, também era pautada pelo estresse. “Eu cheguei ao ponto de quase abandonar o serviço, achava que não iria dar conta, me sentia sobrecarregada”, cita. E, efeito disso, faltava paciência para lidar com a criança. Ocorre que, quanto mais gritos, menos resultados. “Já tivemos tempos ruins, mas, agora, aprendemos”, celebra, completando que não considera que seu filho tenha uma doença. Hoje, mesmo em quarentena, as coisas estão mais tranquilas no lar de Janaína.

Tarefas serão mais satisfatórias se forem fragmentadas e se incluírem estímulos

Existem mecanismos que podem tornar mais fácil o cumprimento de tarefas cotidianas e a adaptação aos novos protocolos, situa Rodrigo D’Angelis.

“A motivação pode ser influenciada, por exemplo, construindo uma rotina com alternância de atividades, intercalando momentos de atividade recreativa e de lazer junto à família e delimitando espaços e momentos dedicados à atividade escolar ou profissional, sempre deixando claro quando começa e termina uma atividade e outra”, diz.

Outro instrumento eficaz é a fragmentação das atividades e tarefas em partes que, ao serem cumpridas, possam ser convertidas em fatores de estímulo – “o que pode promover maior envolvimento e maior satisfação na execução, facilitando a rotina”, propõe D’Angelis. A recompensa, que pode vir por meio de mensagens motivacionais, também é bem-vinda. Para reforçar os cuidados de higiene, valem até bilhetes espalhados pela casa e que lembrem, de forma afetuosa, sobre a importância de lavar bem as mãos.

Síndrome. Embora o TDAH não tenha cura, é possível, com mínimos esforços, conviver bem com ele – o que depende de o transtorno ser bem manejado a partir do tratamento e do acompanhamento de profissionais como neuropediatras e/ou psiquiatras.