Combate a Aids

Pandemia pode acarretar aumento dos índices de HIV/Aids e agravamento de casos

Dia Mundial de Luta Contra a Aids: atendimento, diagnóstico e tratamento se tornam mais deficientes, e população fica mais exposta, diz pesquisadora


Publicado em 01 de dezembro de 2020 | 03:13
 
 
 
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Foi no final de 1996. Heliana Moura, então com 27 anos, soube que um ex-namorado era soropositivo e buscou fazer um teste, em um laboratório da rede particular, para verificar se também havia sido infectada pelo vírus da imunodeficiência humana, o HIV, que é causador da Aids. À época, ela nem sequer sabia diferenciar o microrganismo infeccioso da doença por ele provocada e, antes mesmo de ter mais informações seguras sobre o assunto, precisou lidar com o estigma: o médico anotou que o motivo, no pedido de exame, era promiscuidade. Com a confirmação sorológica, Heliana chegou a se transferir para Brasília, buscando se refugiar do preconceito que sofria, fundamentalmente de pessoas próximas. Anos mais tarde, ela passou por outro atendimento clínico pautado pelo tabu: após engravidar numa situação em que houve o rompimento de preservativo durante o ato sexual, a assistente social recorda ter sido tratada como uma “transmissora quase intencional da doença” nas primeiras consultas obstétricas.

Hoje, cabe a Heliana entregar o resultado de exames para HIV/Aids àqueles que buscam assistência em um dos Centros de Testagem e Aconselhamento de Belo Horizonte. Inspirada pela própria história, a assistente social tem o compromisso de prestar assistência de qualidade, buscando orientar – e não condenar – pessoas soropositivas. “Ainda temos que enfrentar a discriminação no dia a dia. É algo tão grave que, muitas vezes, devido ao estigma, as pessoas não fazem testes, não têm adesão ao tratamento e negam o diagnóstico. Ainda precisamos falar muito de HIV/Aids, diferença entre um e outro, saúde sexual, formas de contágio, importância da testagem e de iniciar logo o tratamento, cuidado integral e sobre outras Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs)”, avalia, concluindo que “a informação cura o preconceito”.

Agora, Heliana, como outros profissionais da saúde, tem se mostrado apreensiva quanto à redução de testagens observada neste ano em razão da pandemia da Covid-19. Em 2019, Minas Gerais havia registrado 5.037 novos casos de HIV/Aids, o menor volume desde 2015, quando houve 5.029 ocorrências, conforme dados da Secretaria de Estado de Saúde (SES-MG). Em BH, os 1.070 casos verificados no ano passado também indicavam uma tendência de queda, sendo o menor volume desde 2014, quando 992 novos registros foram feitos, segundo a Secretaria Municipal de Saúde (SMSA).

Em 2020, considerando-se dados até o mês de novembro, foram 2.801 diagnósticos de HIV/Aids no Estado e 137 na capital – os menores índices de toda a série histórica. Mas, o que parece uma boa notícia, na verdade, faz soar um sinal de alerta. Para a assistente social, essa possível queda do número de diagnósticos pode até mesmo comprometer a estabilidade que vinha se desenhando ao longo dos últimos cinco anos.

“Se o atendimento, diagnóstico e tratamento se tornam mais deficientes, a população fica mais exposta”

“A pandemia do novo coronavírus vem afetando diretamente a assistência e o cuidado às pessoas com HIV. Houve redução no número de consultas, exames e primeiras consultas”, pontua Heliana Moura. Um dos desdobramentos percebidos por ela está relacionado a uma maior ansiedade nesses pacientes. “A saúde mental vem sendo a mais prejudicada neste momento, tanto pela pandemia quanto pelo assistência precarizada. Aqui, em BH, o Hospital Eduardo de Menezes, referência do Estado no tratamento do HIV, esteve fechado para consultas e exames, pois o local foi utilizado como referência para o tratamento da Covid-19. E, agora, o retorno está sendo gradativo, com casos urgentes, como abandono de tratamento, sendo priorizados”, salienta.

Professora na Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisadora da área de saúde coletiva, Vânia de Souza concorda com as análises da assistente social. Ela sinaliza que há um receio de que as limitações ao tratamento impostos pela pandemia possam contribuir para um aumento da exposição ao vírus. 

Vânia, que é especialista em doenças sexualmente transmissíveis e sexualidade, cita que pessoas soropositivas que têm carga viral indetectável não transmitem o HIV. Nesse sentido, alerta que a suspensão do tratamento desses pacientes pode resultar no aumento de concentração do microrganismo infeccioso, o que pode levar à manifestação da doença e gerar um risco de contaminação maior para a população. Já em relação à possível redução da busca por realização de testes, a estudiosa teme que ISTs alcancem um número maior de pessoas, pois seus portadores não estão cientes de sua condição. “Se o atendimento, diagnóstico e tratamento se tornam mais deficientes, a população fica mais exposta”, reforça.

Na última década, Minas e BH tiveram aumento do número de casos de HIV/Aids

Embora os dados sobre HIV/Aids registrados no ano passado indicassem uma tendência de estabilização, agora ameaçada pela pandemia, fato é que, na última década, houve um aumento de incidência de infecções pelo vírus. Para se ter ideia, de acordo com dados do Sistema Único de Saúde (SUS) fornecidos pela Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES-MG), os casos de HIV/Aids saltaram de 2.805, em 2010, para 5.037, em 2019, um aumento de 79,57%. Na capital, conforme informações da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte (SMSA), o total de ocorrências quase dobrou em uma década, indo de 552, em 2009, para 1.070, em 2019. A reportagem, à luz dos indícios de subnotificação em 2020, ignorou os dados comparativos deste ano.

Uma série de fatores tem contribuído para esse fenômeno, sustenta a pesquisadora em saúde coletiva Vânia de Souza, lembrando que a realidade mineira reflete uma tendência nacional. Enquanto em toda a América Latina houve aumento de 7% em novas infecções por HIV entre 2010 e 2018, no Brasil a escalada foi de 21% considerando o mesmo período, informa um estudo da Unaids, entidade da Organização das Nações Unidas (ONU) criada em 1994. 

“O Programa Brasileiro de combate ao HIV/Aids foi destaque por muitos anos por incorporar estratégias de prevenção, testagem, tratamento, aconselhamento e práticas educativas e interventivas. Nos últimos anos, essa política tem perdido força com a redução de investimentos não somente nessa área, como na saúde em geral, impactando, por consequência, novos casos de HIV”, critica. 

Também contribui para o aumento do número de casos o fato de a população não mais perceber o vírus da imunodeficiência humana como algo grave. “A efetividade do tratamento trouxe um entendimento equivocado de parte da população de que a infecção está sob controle, causando um relaxamento em termos de prevenção. Nesse sentido, não podemos deixar de chamar atenção para as mulheres, que muitas vezes não se entendem como grupo vulnerável ao HIV, revelando um histórico de menor procura pela testagem e pelas profilaxias preventivas como a PEP e a PrEP”, alerta a professora da Escola de Enfermagem da UFMG.

Ainda considerando o recorte de gênero, Vânia menciona que as mulheres comumente relatam dificuldades na negociação pelo uso do preservativo e até mesmo para ter esse insumo disponível para uso. “Não são raros os relatos de mulheres que têm receio de serem discriminadas por terem  o preservativo ‘em mãos’. Tais dificuldades têm contribuído para o aumento do número de casos especialmente entre mulheres jovens/adolescentes. Esse aumento tem também ocorrido na população mais jovem, de modo geral e também entre idosos, assinalando que o HIV/Aids permanece como uma de nossas prioridades em termos de política pública”, determina.

Individualizar responsabilidade agrava problema de saúde pública

“A primeira medida necessária para o combate à Aids é fazer com que o tema sexualidade seja tratado de forma mais aberta, menos punitiva e construir uma visão que não foque a responsabilização individual”, defende Vânia de Souza, assinalando ser rotineiro o sentimento de culpa quando o assunto se refere ao sexo e à sexualidade, o que se converte em dificuldades em relação à prevenção das ISTs e do HIV/Aids. 

A professora universitária sublinha que a prevenção não pode ser tratada como uma norma a ser seguida plenamente por todos sem se considerarem as especificidades de grupos, pessoas e coletividade. Para ela, ações preventivas devem englobar diversas frentes de ação, com estratégias que tenham afinidade com as demandas e necessidades de diferentes segmentos populacionais, sendo crucial o acesso fácil e gratuito à informação, aos insumos de prevenção, aos serviços de saúde e visando a um diagnóstico facilitado e ágil. “As políticas públicas de prevenção incluem uma série de estratégias que não se resumem ao uso do preservativo, e, até que se descubra uma vacina para o HIV, temos o desafio de tornar as medidas de prevenção mais conhecidas e disponíveis para toda a população”, defende. 

Hoje, diz a estudiosa, existem métodos de prevenção combinada, que têm obtido bons resultados, mas que ainda são desconhecidas pela maioria. “Os serviços de saúde de testagem e aconselhamento disponibilizam exames diagnósticos, tratamento, aconselhamento e acompanhamento. Tem também a disponibilização de um esquema de antirretroviral para pessoas que tiveram ou consideram ter um potencial risco de exposição sexual ao vírus HIV, por ter tido uma relação sexual desprotegida ou por falha ou não uso do preservativo”, diz. Então, “os principais desafios para o combate ao HIV/Aids passam por pensar em políticas públicas com foco na garantia de acesso aos serviços de saúde para diagnóstico e tratamento, em maior investimento em pesquisa e em todos os tipos de prevenção. É também fundamental o incremento nas práticas de educação para que o sexo e a sexualidade passem a ser considerados com naturalidade e parte de nossas necessidades”, conclui.

Brasil deu resposta qualificada e exemplar à crise provocada pela Aids

Quando a crise da Aids se tornava uma emergência global, a resposta brasileira foi se qualificando até tornar-se uma referência, sendo aplaudida pela Organização das Nações Unidas (ONU). Fator decisivo no enfrentamento da doença no país foi a mobilização da sociedade civil LGBT, que, por  meio de organizações não governamentais e movimentos sociais, desenvolveu um conjunto de ações de cuidado fundamentais, baseadas nos pilares da solidariedade, do acolhimento e da escuta das condições específicas de cada um.

É o que lembra o coordenador do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da federal mineira (NUH/UFMG), Marco Aurélio Prado, completando que essa ação levou a um movimento de descolonização médica do HIV, passando a considerar determinante sociais, para além dos biológicos. “Esse aprendizado não estamos trazendo para agora (para o enfrentamento da Covid-19), e é urgente que a política de enfrentamento de hoje aprenda com o passado”, afiança.

Prado defende “uma ética do cuidado solidário que não se baseie na noção de grupo de risco, mas sim na noção de vulnerabilidade, e uma ética da escuta da diferença que se baseie na participação social, no acolhimento e nas redes de cuidado solidário de enfrentamento da pandemia”. Obviamente, reforça, tudo isso deve ser pensado à luz do presente, do contexto de uma pandemia, que exige várias mudanças em nossa vida social e individuais para o seu enfrentamento.

Sobre as campanhas de enfrentamento do HIV/Aids, a assistente social Heliana Moura é enfática: “Houve um tempo em que éramos referência no tratamento e na prevenção do HIV, pois nossa política de saúde era pautada pelos direitos humanos e tinha interlocução com o movimento de luta contra a Aids. Hoje, vejo o movimento pulverizado, com poucos tentando se articular e provocar discussões, e o governo ignorando esses atores essenciais para a elaboração de políticas efetivas. As campanhas não alcançam a população, principalmente os jovens. Atualmente, não se fala mais em sexualidade nem em saúde sexual. Estamos retrocedendo nas conquistas tão arduamente conquistadas. É preciso falar mais de HIV e ISTs. E não somente no Carnaval e no 1º de dezembro”, alerta.

Há paralelos entre as respostas para a crise da Aids, nos anos 80 e 90, e aquelas para a Covid-19

A reportagem de O TEMPO já apontou como a atual pandemia da Covid-19 encontra paralelos com a epidemia da Aids nos anos de 1980 e 1990. Entre os pontos comuns, as estratégias de enfrentamento de agora não trazem, em alguns aspectos, grandes novidades em relação ao que se viu naquele momento histórico. Victor Hugo de Souza Barreto, doutor em antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), cita que as políticas de saúde adotadas agora, no caso do novo coronavírus, e aquelas a que se recorreu para frear a disseminação do HIV têm verniz individualista e são classificadas por alguns autores como de matiz neoliberal. 

“Essas ansiedades, discursos e reações que tanto se assemelham mostram os regimes de moralidades que estão por trás das respostas às epidemias. Trata-se também de ‘doenças morais’, portanto, já que a não contaminação e a eficácia do tratamento são atreladas a uma responsabilidade individual de prevenção”, anota ele no texto “Pandemia, sexualidade e percepção do risco: algumas notas sobre quarentena e desejo”. “Cabe a você se proteger, tomar os cuidados necessários, e aqueles que são irresponsáveis, ou seja, que faltaram com o cuidado e que se expõem ao perigo, não devem ser responsabilidade do Estado. O Estado (e o restante da sociedade) não pode pagar pelos que não sabem governar a si mesmos”, completa o autor.

A culpabilização da pessoa enferma é motivo de sofrimento tanto para portadores do HIV quanto para aqueles com diagnóstico positivo para o coronavírus. Uma matriz de pensamento que, aliás, desresponsabiliza o poder público. “É, acima de tudo, uma estupidez dizer que é simples assim, que só é infectado quem quer ser”, criticou Unaí Tupinambás, professor do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFMG, em entrevista feita em junho deste ano.

Para ele, trata-se de uma lógica que reforça a falta de empatia e de civilidade. “Lógico que o autocuidado e a adesão a medidas preventivas são fundamentais e estão no campo do individual. Mas, para isso, é preciso um esforço das autoridades a fim de garantir o acesso à informação, à saúde e à educação, de forma que cada pessoa tenha autonomia para fazer suas escolhas”, pontua ele, que é membro do comitê municipal de enfrentamento da Covid-19 de Belo Horizonte. “Pensar que é cada um por si é o suprassumo da individualidade”, conclui.

Editor do americano “The Body”, que desde 1995 publica informações, notícias, suporte e perspectivas pessoais relacionadas ao HIV, Mathew Rodriguez põe em questão a efetividade, enquanto política de enfrentamento da pandemia, das estratégias vexatórias que buscam, prioritariamente, expor aqueles que descumprem as preconizadas medidas sanitárias. Ante as incisivas cobranças em relação a comportamentos individuais, é urgente cobrar respostas de políticos e questionar estruturas sociais que inibem a habilidade pessoal de responder efetivamente ao vírus, pondera Rodriguez no artigo “Covid-19 e HIV não são iguais. Mas são semelhantes de muitas e importantes maneiras”.

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