Comportamento

Papel de trouxa? Saiba como identificar se você está em uma relação abusiva

Qualquer um pode se ver na posição de se doar mais do que o outro na relação, mas situação acende sinal de alerta, pois a dinâmica pode evoluir para algo mais grave


Publicado em 30 de março de 2021 | 03:00
 
 
 
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Eliminada do “Big Brother Brasil” no último dia 23, Carla Diaz participou, nesse domingo, do programa “Domingão do Faustão”. Entre outros temas, a atriz falou brevemente do relacionamento que manteve com Arthur Picoli no reality, preferindo eximir o crossfiteiro de qualquer responsabilidade quanto a eventuais erros dela no jogo. “Eu sou uma mulher de 30 anos e não gosto de botar a culpa nos outros”, disse, completando que não se arrepende de nada do que fez na casa. O tom do discurso de agora destoa daquele adotado no dia seguinte à eliminação, quando participou do matinal “Mais Você”. Em conversa com a apresentadora Ana Maria Braga, a artista se mostrou impaciente ao ver gravações em que o ex-affair, em conversa com outros participantes, fazia críticas a ela. “Eu estou muito chocada com tudo que estou vendo. Não esperava que fosse dessa forma. Mas a questão é que mulher nenhuma merece passar por isso, e eu estou aqui sendo julgada por algo que não vi. Sempre a culpa é da mulher”, criticou. 

Aparentemente conflitantes e paradoxais, essas perspectivas sublinhadas por Carla, ao falar sobre a história que construiu com Arthur no “BBB”, expõe como é difícil nomear adequadamente relações que se mostram disfuncionais e tóxicas, mas que podem não chegar a ser abusivas. Durante um programa, ela própria, mais de uma vez, chegou a imaginar que seria julgada por ter se entregado ao romance, mesmo que os sinais emitidos pelo companheiro de confinamento e de edredon fossem em sentido contrário, indicando que havia pouca reciprocidade naquela parceria.

Na véspera do Paredão que culminou no fim do jogo para a atriz, ela chegou a dizer ao atleta: “Posso sair amanhã. O público pode estar me odiando... E dizendo: ‘Olha lá a trouxa que se ajoelhou para o cara que depois nem olhou para a cara dela’”, ponderou, em uma análise certeira sobre a percepção de boa parte do público sobre a relação deles. Tanto que, nas redes sociais, eram comuns os comentários que revelavam um grande descontentamento em ver a atriz vivenciando situações em que precisava cobrar por alguma boa vontade do brother em relação ao namoro deles. 

E se o enlace foi alvo de críticas entre os espectadores, que acusavam Carla de fazer “papel de trouxa”, vale dizer que ninguém está isento de passar por episódios parecidos – claro que com a óbvia diferença de não se estar em uma casa com mais de 60 câmeras e transmissão em tempo real para uma imensa audiência televisiva. “Qualquer pessoa pode, em algum momento, estar nessa posição de se doar mais do que o outro se doou na relação e de conviver com essa falta de reciprocidade”, observa o psicólogo Matheus Alves, acrescentando que o fenômeno é bastante comum e não é necessariamente patológico ou extremamente preocupante. “Uma não correspondência afetiva, ou uma correspondência que é manifestada de um jeito que a gente não espera, não configura um abuso”, conclui. 

“Mas essa situação acende um sinal de alerta, pois a dinâmica da relação pode evoluir para algo mais grave”, alerta o especialista em atendimento a vítimas de violência. Ocorre que a parte do casal que está mais indiferente pode se utilizar da disposição de entrega para fazer cobranças desproporcionais, minar a rede de contatos e manipular sua parceria. Em outras palavras, o relacionamento pode, mais do que ter características tóxicas, se tornar abusivo. Cabe lembrar que, no “BBB”, Carla pode ter conseguido evitar que o namoro se tornasse mais problemático ao recusar-se a se afastar de amigos e aliados no jogo, algo que foi demandado por Arthur, que se via como alvo dessas pessoas. 

As diferenças entre o tóxico e o abusivo 

Matheus Alves acredita que um viés de intencionalidade diferencia um relacionamento tóxico de um efetivamente abusivo. No caso do primeiro, há ocorrência de violência psicológica, sendo que o autor muitas vezes está reproduzindo padrões de comportamento do meio cultural ou que são parte de sua história de vida. Em geral, as vítimas são fragilizadas e sofrem prejuízo principalmente em relação à autoimagem. Já no caso do último, a violência é mais disseminada em toda a relação, aparecendo em dimensões físicas, psicológicas e patrimoniais, por exemplo. Nessas situações, o abusador tem a intenção de, por meio desse comportamento, deteriorar a autonomia do outro. 

Outra diferenciação, Alves aponta que as pessoas podem se perceber atravessando momentos de toxicidade e desejar trabalhar e superar essas adversidades, o que é mais difícil se houver um viés abusivo na relação. “No consultório, consigo atender alguns casais que estão com comportamento tóxico, mas, se estamos falando de abuso, essa violência pode já estar tão bem construída que pode ser usada para sabotar toda a terapia”, diz. 

A psicóloga Adriana Roque lembra que, curiosamente, embora causem mais danos, pessoas abusivas costumam ser mais ardilosas, criando situações em que o outro se torna tão vulnerável que nem sequer consegue entender que está vivendo uma relação de violência. E, se entendem, muitas vezes não conseguem pedir ajuda, seja por medo ou por vergonha. Já episódios de toxicidade relacional podem ser mais facilmente identificados, pois neles não há o marcador da manipulação. 

Iludido. Adriana Roque, que é coach de mulheres, é crítica do uso da expressão “papel de trouxa”. “Isso definitivamente não existe, as pessoas interagem em seus ambientes com a bagagem de vida que elas possuem e outros fatores”, argumenta, complementando que essa definição é usada para responsabilizar a vítima pela situação que ela viveu ou que está vivendo. “Porém, o que acontece é que, muitas vezes, quem está dentro da relação tem muita dificuldade de compreender a dinâmica do que está vivendo. Por isso, se faz primordial a terapia com psicólogo. Com métodos científicos, o paciente consegue tomar certa distância afetiva dos fatos da relação e compreender o que de fato tem experimentado”, sinaliza.  

Contudo, a psicóloga assinala que, ao sentir-se “trouxa”, o sujeito deve buscar observar o que está por trás dessa sensação. Mas ele deve ter em mente que não poderá evitar a toxicidade e o abuso do outro – nem sequer é responsável por esses comportamentos que lhe causam sofrimento. “Se a relação não está sendo legal para o indivíduo, duas únicas coisas podem ser feitas: conversar e, se houver melhora do outro, ficar na relação ou terminar e se afastar daquela pessoa”, estabelece, ressaltando que nem sempre esta é uma decisão fácil e óbvia. “No caso do abuso, pode haver uma distorção da realidade, implicando mais dificuldades para a vítima superar aquela situação”, adverte.

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