Saúde

Perdoar faz bem ao coração, sugere estudo

Questionário aplicado a grupo de pessoas que sofreram infarto agudo do miocárdio flagrou tendência de seus integrantes a não desculpar a si próprios ou a quem lhes provocou mágoas


Publicado em 30 de junho de 2019 | 03:00
 
 
 
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Originária do latim “perdonare”, a palavra “perdão” aparece com frequência em letras de música e orações – neste último caso, independentemente do credo. Colocá-la em prática, porém, pode por vezes se revelar uma tarefa hercúlea. Mas um estudo apresentado no recente 40º Congresso da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp) aponta que vale a pena tentar. E muito. Decorrente de uma pesquisa desenvolvida pela psicanalista Suzana Avezum, o estudo relaciona a dificuldade de perdoar à ocorrência de Infarto Agudo do Miocárdio (IAM).

Contabilizando quase quatro décadas de atendimento psicanalítico, Suzana sempre ficava instigada com narrativas que associavam dores físicas localizadas na região do peito a episódios traumáticos que geraram mágoas. Entre dezembro de 2016 e dezembro de 2018, ela foi a campo aferir uma suspeita que se delineava em sua mente: o entrelaçamento real desses fatores. 
Assim, aplicou dois questionários a 130 pacientes divididos em dois grupos: um de pessoas que haviam sofrido um IAM e o outro com aqueles que não tinham tido essa ocorrência. Um dos questionários tinha como propósito aferir a inclinação dos entrevistados ao ato de perdoar. E o resultado foi revelador: os integrantes do grupo dos que haviam sofrido infarto apresentava uma tendência maior a não perdoar quem lhes havia provocado mágoas no curso da vida. Nesse ponto, é preciso abrir um parêntese: o ato de perdoar, no caso, pode se aplicar tanto a outra pessoa quanto a si próprio, ou seja, o autoperdão. 

Já o segundo questionário aplicado pela psicanalista tinha como foco a dicotomia entre espiritualidade e religiosidade organizacional. No caso, o resultado apontou que o grupo com IAM apresentava uma maior religiosidade organizacional em contraponto a uma menor espiritualidade. 

A religiosidade organizacional pode ser traduzida como uma participação mais efetiva em igrejas ou em outros templos religiosos. A espiritualidade, por sua vez, no entendimento de Suzana, relaciona-se à forma como a pessoa procura o sentido e o propósito da vida, bem como “o modo com que experimenta sua conectividade com o presente, com a natureza, consigo mesmo, com o próximo e com o que é sagrado”. Ou seja, ultrapassa os dogmas da religião. As pessoas ouvidas que se alinhavam mais à espiritualidade que à religiosidade organizacional, diz ela, eram mais propensas ao perdão.

Ao grupo analisado foi garantido anonimato, motivo pelo qual Suzana Avezum optou por não compartilhar o contato de nenhum 65 entrevistados que sofreram um infarto. No entanto, embora a relação entre a postura de não perdoar (como dito, a si próprio ou a alguém que lhe provocou uma mágoa) e a ocorrência de um problema cardíaco da magnitude de um IAM não possa ser assim tão facilmente fechada, posto que envolve também aspectos não tangíveis, relativos à psiquê, a boa repercussão do estudo vem surpreendendo a própria Suzana. “Eu já havia apresentado uma parte do estudo em uma palestra, mas direcionada ao departamento de psicologia. O tema foi bem recebido, e, a partir daí, vi aumentar o interesse de forma que nem imaginava, seja por parte de médicos ou da população em geral. Acredito que as pessoas estejam buscando respostas para explicar aquilo que, na verdade, já intuíam”. 

Espiral. Por volta dos 25 anos, Caroline Apple começou a ter várias palpitações. “Em alguns episódios, acompanhadas de um mal-estar gigante”, lembra. Mais de uma vez, a publicitária foi parar no hospital. Na primeira, detectaram uma disritmia. “Fizeram vários exames, até para saber se era um infarto. Após uma madrugada inteira lá, tendo feito todos os exames possíveis, viram que era um quadro ligado ao emocional e me aconselharam a buscar uma terapia ou algo alternativo”. 

A história foi se repetindo. “Eu até já intuía (que não era um infarto), mas, na hora, não há alternativa, era ir para o hospital. Ao fim, acabava sempre com um tanto de exames nas mãos e o mesmo diagnóstico: emocional”. Carolina reconhece: “Eu era agitada, explosiva, e isso me arrumava muito problema, contaminava quem convivia comigo. Em 2017, cheguei ao limite: vi que não estava vivendo, só sobrevivendo”, admite ela. “E, a seguir assim, estava fadada a passar os próximos 50 anos da mesma forma”, completa. 

Ao entrar em um processo de autoconhecimento, ela conseguiu detectar o ponto nevrálgico de todo o processo que culminava em um descompasso do coração, percebendo que precisava conceder um perdão a si mesma. “Quando entrei nessa jornada, o corpo começou a responder – e há dois anos não tenho mais problemas cardíacos, arritmias. E isso é muito significativo pra mim: saí da adolescência e, até a vida adulta, não havia pulado um ano (sem episódios que a levassem a um hospital). O processo de perdão foi parte dessa vitória’. 

O círculo vicioso gerado pela culpa 
Em 2017, ao se dar conta do círculo vicioso no qual estava inserida, a publicitária Carolina Apple, 34, sentiu uma chamada interna. “Percebi que era muito nova para viver assim e comecei a me interessar pela meditação – o que era algo difícil pra mim, eu era muito inquieta. Mas insisti e, em agosto daquele ano, aceitei ir atrás do tal silêncio que todo mundo dizia que eu não tinha: eu era extremamente barulhenta, por dentro e por fora. E essa ‘reforma’ começa pela meditação. Buscando esse lugar, entro numa jornada de autoconhecimento rumo ao meu interior. E hoje, depois de estudos intensos, de uma imersão no assunto, veja só o salto: sou instrutora de meditação”, comemora ela.

Para o citado autoperdão, foi necessária uma autoanálise. “Entendi que carregava uma culpa sobre a qual nem conseguia falar. Tinha vergonha e sentia que as pessoas não entenderiam”, observa. A história: a mãe de Carolina engravidou dela aos 14 anos. “Sempre soube que foi uma gravidez difícil de levar adiante, imagino o quanto sofreu, o quanto teve medo – então, tenho consciência de que não vim ao mundo de uma forma, digamos assim, ‘amigável’. E me sentia culpada de ter gerado sofrimento a uma das pessoas que mais amo na vida. Mas, se falasse para alguém de vir ao mundo como vim, provavelmente ouviria: ‘Não é sua culpa’. Eu também sei que não, só que dentro de mim eu sentia essa culpa, ela estava lá, e negá-la estava me levando a lugares muito ruins, pois o que você nega, te consome. E, com as ferramentas do autoconhecimento, percebi que a culpa precisava ser integrada à minha história – ou à minha interpretação dessa história”. Porque a maneira como veio ao mundo, reconhece Carolina, nunca vai mudar. “É o jeito que eu vim, e acabou. Mas é entrar no processo de aceitação da minha jornada e lembrar que a minha interpretação da história é só uma visão dela. E foi aí que comecei o meu processo de autoperdão”, reflete.

Para Carolina, aliás, perdão e autoperdão são parte intrínseca da existência do homem. “Esse processo não finda. Mas, quando você consegue integrar a história (que gerou um trauma), da maneira que sentiu, e processá-la, ela para de agir sobre você. Claro, é preciso estar atento a gatilhos, mas é verdade também que eles passam a não ter tanta força como antes”, diz. 

Hoje, ela entende que aquele que consegue perdoar consegue seguir sua vida. “Porque a verdade é que o outro sempre vai seguir. O perdão, entendo, é uma ação que beneficia principalmente quem o pratica. É você entender todo o processo que viveu, os efeitos de tudo isso, e tentar não repetir. O aprendizado está aí”. 
 

Desculpar não significa esquecer, diz psicanalista
Autora do estudo, a psicanalista Suzana Avezum esclarece que a ação de perdoar não significa abafar o mal que uma pessoa provocou a outra, voluntariamente ou não. “Se alguém agiu mal com você, se te ofendeu, te chateou, você tem todo o direito de estar com raiva. O perdão é você decidir que não quer mais carregar aquela cruz. Não é esquecer! Você vai lembrar, mas não vai sofrer mais. E, vale dizer, muitas vezes o perdão não significa uma reconciliação (com a pessoa que te magoou). É você não nutrir mais sentimentos negativos em relação a essa pessoa, por isso é factível, como se fosse uma escolha”, explica ela, que pretende dar sequência ao estudo, inclusive abarcando outras partes do corpo.

Presidente da Sociedade de Cardiologia de São Paulo, que promoveu o congresso no qual o estudo de Suzana foi apresentado, o médico José Francisco Kerr Saraiva lembra que várias pesquisas já se debruçam sobre o impacto de certos sentimentos e comportamentos no organismo. “Em alguns casos, é uma conta que se fecha com certa facilidade. O sujeito que dá murro, que logo parte para a briga, por exemplo. Há uma descarga de adrenalina nessas explosões, e todo esse estresse pode se refletir no coração. Nesse novo estudo, o que é investigado é a relação do perdão com a doença cardiovascular. Obviamente, é necessário progredir nas investigações. De qualquer maneira, associar o individuo que não esquece, que não perdoa, que alimenta a raiva e outros traduores, como o rancor, a esse tipo de problema é uma linha bem interessante”, estabelece.

Para a psicóloga Jennifer de França Oliveira Nogueira, o trabalho apresentado pela psicanalista é importante por trazer, por meio do universo pesquisado, mais dados à luz, endossando percepções que a psicologia já afere no dia a dia. “No geral, fico muito feliz pela contribuição da ciência psicológica para a população”, diz. Mas Jennifer salienta que a dificuldade em conceder perdão, assim como qualquer outro fator de risco cardiovascular, não impacta a saúde de uma hora para outra. “Vai se acumulando com o tempo, sobrecarregando o coração com a elevação de taxas de glicose, cortisol e colesterol, por exemplo. Aliado a outros fatores de risco, leva a um quadro propício ao adoecimento”, pontua. 

E acrescenta que, mesmo se a mágoa, a raiva e o rancor geram um quadro que deixa o processo de perdão intrincado, não o inviabilizam de todo. “O perdão acontece com amor e compaixão”, frisa. 

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