Por vários minutos Lourenço Mutarelli achou que estava sendo raptado. Escritor, ator, dramaturgo e quadrinista, ele contou recentemente, durante participação no podcast Rádio Novelo, que recebeu de “presente”, quando completava 24 anos, uma brincadeira que marcou a sua vida para sempre, da pior maneira possível. Amigos se passaram por sequestradores e o “torturaram” psicologicamente: fizeram ameaças, aproximaram um revólver da sua têmpora e brincaram de roleta-russa. Depois, a venda foi retirada e ele visualizou figuras familiares que cantaram “parabéns para você!”.

Mesmo sendo uma “brincadeira”, vinda de pessoas que não lhe queriam mal, o episódio deixou marcas: depressão, crises de ansiedade e pânico passaram a acompanhar a vida do quadrinista.

Não há dúvidas de que se trata de uma ação de mau gosto. No entanto, muita gente naturaliza esse tipo de atitude, justificando como zoação “inocente” ações que nem sempre podem acabar bem. Ainda assim seguem acontecendo. 

É que pregar peças ou sacanear aqueles de quem gostamos fez e ainda faz parte do cotidiano de várias pessoas. Quando somos crianças, em muitos momentos, assustamos ou somos assustados. Quando alguém faz aniversário, há quem quebre ovos e jogue farinha em sua cabeça. A ida para a faculdade pode incluir um corte de cabelo nada favorável.

“Toda interação social tem o objetivo de criar vínculos, mesmo interações sociais como brincadeiras e trotes. Muitas culturas têm esses rituais que podem envolver algum ponto de humilhação, que parece ter a ver com a ideia de equilibrar alguma conquista que a pessoa está tendo com uma dose de humilhação”, pontua o psiquiatra e psicólogo Rodrigo Almeida. Segundo o especialista, é como se, ao mesmo tempo que o homenageado é celebrado, ele também é lembrado de que tem pontos fracos. 

Rodrigo explica ainda que brincar com essas fraquezas é, além de uma forma de estreitar vínculos, uma maneira de cultivar uma nova relação com os nossos medos e vulnerabilidades. “Elas não vão ser só uma coisa que nós escondemos, mas também algo que outras pessoas podem saber, e vamos usar isso para criar conexão”, explica. 

Esse tipo de atitude, que envolve enganar alguém ou fazer um pequeno mal, também pode ser uma forma de inserir a pessoa em um grupo ou demonstrar que ela é próxima e querida. “Só fazemos esse tipo de coisa com quem consideramos, com quem gostamos e com quem sabemos que não vai levar aquilo a sério e vai entender”, diz. 

Brincadeiras do gênero são tão naturais que fazem parte do comportamento dos animais. “Cachorros e gatos brincam atacando um ao outro, como se estivessem caçando ou brigando. Até os próprios pais fazem isso com os filhos. É uma forma de demonstrar proximidade”, observa Rodrigo. 

Quando diz respeito aos seres humanos, porém, esse tipo de atitude fica mais complexa, principalmente porque envolve também a linguagem. Mas, ainda assim, ele segue sendo um comportamento que visa à criação de vínculos, que busca diminuir a arrogância e também torna as pessoas melhores no jogo social. “É uma coisa muito humana essa possibilidade de uma pista de socialização ser interpretada de vários jeitos. Sempre tem alguma ambiguidade, e ela é bem explícita”, observa. 

É claro que nem tudo são flores. Existem momentos, contextos e brincadeiras que podem exceder aquilo que é tido como aceitável.

“Algumas pessoas podem não ter o objetivo de demonstrar que gostam de alguém, pode haver um desejo de fazer o mal de forma velada. Nesse caso, é preciso que esse comportamento seja ajustado. A regra de ouro para quem pratica é que aja dessa forma com os seus iguais. Se estamos fazendo brincadeiras com alguém hierarquicamente inferior à nossa posição, ao nosso status social, mais vulnerável física ou mentalmente, isso se torna algo mais próximo ao sadismo”. 

Situação é mais complicada no ambiente escolar

Especialista socioemocional de família e escola, a pedagoga Renata Fialho vê esse tipo de atitude com outro olhar, principalmente porque é comum que haja uma desvirtuação daquilo que é compreendido como uma brincadeira, principalmente no contexto escolar. “Hoje em dia, as pessoas acabam usando o termo para justificar atitudes ou atos negativos. Se você invade o espaço do outro e ele não gosta, dizem que foi só uma brincadeira. Mas fazer algo que vai desestabilizar emocionalmente alguém não é uma brincadeira”.

Segundo ela, esse tipo de argumento, que por vezes vem dos próprios pais, é utilizado como desculpa para que as crianças ou adolescentes não sofram consequências dos atos que cometeram. “É preciso ter muito cuidado com isso, porque pode ser um aprendizado que a criança levará por toda a vida”, reforça. 

Para evitar que esse tipo de situação se perpetue e seja naturalizada – algo que pode culminar, inclusive, com o bullying nas escolas –, o diálogo entre pais e filhos é fundamental. “É uma questão que precisa ser levada para dentro de casa e conversada, porque os pais são a referência para os filhos, a voz dos responsáveis tem um peso muito grande”, afirma. 

Renata pontua ainda que é importante que as brincadeiras sejam compreendidas como tais. “Brincar é uma atividade que contribui prazerosamente para a formação e a socialização do ser humano. Mas, quando ela passa a envolver outra pessoa, é preciso que se compreendam os limites. Esse é um aprendizado que o ser humano vai carregar para toda a vida. Brincar com o outro envolve convivência, aprendizagem e troca. Enquanto isso está sendo feito respeitando o espaço, o corpo, os sentimentos e as emoções do outro, continua sendo uma brincadeira, mas, a partir do momento que esse limite é ultrapassado, o comportamento não pode ser compreendido dessa maneira”, conclui.