Thiago Garcia
Delegado da Polícia Civil de São Paulo
Professor, Palestrante E autor do livro “Tudo o que você precisa saber sobre Delegado de Polícia, Lei Maria da Penha e Princípio da Insignificância”

Por que é tão difícil falar de estupro? E mais ainda denunciar?

O estupro é um dos crimes mais graves e repugnantes previstos na legislação brasileira. Ele viola não só o corpo da vítima, mas também sua alma, deixando cicatrizes que jamais desaparecerão. Infelizmente, no Brasil, vivemos uma verdadeira inversão de valores. O certo virou errado, e o errado virou certo. Aqui tentam transformar a vítima em culpada, e o culpado em inocente. Alguns perguntam: por que ela estava de saia na rua? Isso é um absurdo! O culpado é o culpado e ponto final. Ainda que a mulher fique nua na rua, ninguém tem o direito de violentar o seu corpo. Precisamos unir forças contra o estupro. Em média, no Brasil, acontecem mais de 160 estupros por dia, um verdadeiro caos! Muitos casos não são denunciados em virtude do medo e da vergonha. A “cultura brasileira do estupro” serve de estímulo para os criminosos e inibe a ação (registro de boletim de ocorrência) das vítimas. O machismo, a misoginia, a cultura patriarcal e a ignorância são fatores que alimentam o estupro, pois reduzem ou anulam os direitos das mulheres.

Na prática, como costuma ser o comportamento das mulheres ao denunciar casos de estupro?

É difícil estabelecer um padrão nesse tipo de ocorrência, pois cada vítima tem as suas peculiaridades. Se o estupro é praticado por um desconhecido, por exemplo, em geral, a denúncia é rápida. Mas mesmo nesses casos há muitas vítimas que ficam com vergonha por causa da exposição gerada pelo crime. Isso impede o registro da ocorrência na delegacia de polícia, ou seja, há muitos estupros que não chegam até o conhecimento das autoridades. É necessário destacar que todos os estupros devem ser registrados. Só assim poderemos prender o culpado para que ele responda pelo que fez e não faça novas vítimas. Quando o estupro é praticado por algum conhecido da vítima (exemplo: pai, padrasto etc), porém, o caso pode demorar mais para chegar (quando chega) ao conhecimento das autoridades, em virtude do medo da vítima e do trauma gerado pelas circunstâncias. As vítimas menores de idade costumam ir até a delegacia com os seus responsáveis legais e as maiores costumam ir sozinhas. Quase sempre há temor da vítima em relação à vingança por parte do estuprador.

Você acredita que práticas que, por vezes são vistas como “inofensivas”, como as cantadas, por exemplo, podem legitimar outras violências, como estupro e feminicídio? 

Acredito que tudo gira em torno do respeito, do bom senso e do estabelecimento de limites. Um elogio educado, por exemplo, sem abuso, não pode ser visto como a porta de entrada para a prática de feminicídios e estupros. Por outro lado, se o homem age com excesso, se ele constrange a mulher, sem dúvida, tal comportamento, em geral, atua como antecedente de práticas mais graves, como as já citadas.

No caso mais recente envolvendo o jogador Neymar muito se questionou que a vítima teria inventado o estupro. Há muito mais mulheres escondendo estupros do que inventando que foram estupradas?

Sem dúvida, a maior parte dos boletins de ocorrência de estupro retratam ocorrências verdadeiras, sem contar os inúmeros casos verdadeiros que não são levados ao conhecimento das autoridades, em razão de vergonha e de medo. Evidentemente, em algumas situações (minoria), baseadas em mentiras, pessoas sem caráter podem usar a luta contra o estupro para buscar interesses pessoais (vingança, dinheiro etc.), desvirtuando essa causa tão nobre. Por isso é essencial agir com cautela, sem julgamento antecipado. Colocar o “rótulo” de estuprador em alguém é gravíssimo. Esse crime é tão cruel que nem os outros bandidos aceitam um estuprador no meio deles. É necessário colocar o estuprador em um local separado para ele não ser morto pelos colegas da prisão. Além do risco de morte, o acusado é alvo de rejeição social, perde seu emprego, sua honra fica manchada e sua família é atingida. Acusações injustas geram efeitos irreversíveis na vida do acusado.

Quando o agressor é famoso, rico, e próximo não denunciar é mais comum?

O fato de o homem ser rico e famoso não o impede de praticar crimes. Esses fatores não podem servir de motivos para tirar a credibilidade da vítima. A mulher, após ser vítima do estuprador, não pode ser vítima novamente, em virtude do descaso das autoridades e dos ataques de pessoas desconhecidas. Por outro lado, na investigação criminal, sem dúvida, a condição do suposto agressor deve ser levada em consideração, juntamente com as provas produzidas e as características da suposta ofendida, a fim de se verificar se a ocorrência contra ele não é forjada. Todas as hipóteses envolvendo os supostos autor e vítima devem ser analisadas. De qualquer forma, a condição do agressor pode sim dificultar a denúncia por parte da vítima. A vítima pode pensar que as pessoas não acreditarão nela por causa do status do homem, pode ter medo de vingança, enfim, cada caso é um caso.

Existe alguma regra em relação ao prazo para fazer a denúncia?

Antigamente, em geral, a vítima de estupro tinha o prazo de seis meses para buscar a responsabilização do autor do estupro. Esgotado esse prazo, o criminoso não podia ser punido no Direito Penal. Porém, hoje em dia, não existe mais esse prazo, ou seja, o registro do boletim de ocorrência pode ser feito no mesmo dia do estupro, daqui a um mês, após o trauma diminuir um pouco, enfim, não há prazo certo. O ideal é que o registro do boletim de ocorrência seja feito o mais rápido possível, para que a coleta e a preservação das provas sejam eficientes (por exemplo: guarda do sêmen do agressor). Além da necessidade de buscar justiça rapidamente, a mulher precisa passar por cuidados médicos, pois pode ter sido exposta a doenças sexualmente transmissíveis, sem contar o risco de gravidez.


Entre as acusações sobre o caso Neymar estão: “Se ela foi encontrar com ele, é porque ela queria”, “ela não foi estuprada porque ela mandou mensagem no dia seguinte”, “porque ela não denunciou no dia seguinte?”

Inicialmente, é importante deixar claro que as mensagens trocadas entre eles devem ser avaliadas juntamente com outros elementos probatórios. Essencial também deixar registrado que o pagamento de viagem, a vontade da mulher de fazer sexo, nada disso legitima o estupro. Se, no meio da relação sexual consentida, a vítima quiser parar e o homem continuar por meio de violência ou grave ameaça, está configurado o crime de estupro (art. 213 do Código Penal). Embora seja desconhecido por muitas pessoas, o fato é que o estupro pode ser praticado até mesmo dentro do casamento e do namoro. Se ficar comprovada a armação em relação ao jogador de futebol, as conversas e as imagens que ele apresentou da suposta vítima não caracterizarão crime (art. 218-C do Código Penal), mas sim exercício de legítima defesa (art. 25 do Código Penal). Nesse caso, a autora do registro contra ele deverá responder pelo crime de denunciação caluniosa (art. 339 do Código Penal), sem prejuízo do pagamento de indenização por danos morais e materiais. O importante é fazer prevalecer a justiça, de acordo com a investigação criminal e o devido processo legal, independentemente da parte beneficiada.

“Ainda que fique nua, ninguém tem o direito de violentar o seu corpo.”

“Quase sempre há temor da vítima em relação à vingança do estuprador.”

“O estupro pode ser praticado até mesmo dentro do casamento e do namoro.”