Encomendada pela revista “GQ Brasil”, uma pesquisa de dimensão nacional realizada por telefone pelo Instituto Ideia mapeou como pensa o homem brasileiro médio em relação a temas diversos. Entre as várias descobertas, algumas surpreendentes, gerou polêmica nas redes sociais o fato de nove de cada dez homens se considerarem bonitos (47%) ou ao menos medianos (44%), enquanto apenas 3% se consideram feios. O dado rapidamente virou motivo de galhofa na web e deixou muita gente impactada com essa “autoestima de milhões” – e, em alguns casos, “modéstia de centavos”. Detalhe: essa valorização de si mesmo não está restrita a traços estéticos. Do ponto de vista intelectual, 65% dos respondentes se consideram dentro da média e 28% se acham mais inteligentes. Uma conta que não fecha, afinal, o índice é quatro vezes maior que o dos que se acham menos inteligentes do que os outros (7%). E a cereja do bolo são os 7% que se autointitulam o “homem mais admirado” por eles próprios. Sim, esse grupo respondeu espontaneamente “eu mesmo” quando questionado sobre qual seria o seu ídolo máximo.
Os achados do levantamento contrastam com dados de outro estudo, cujo público-alvo eram as mulheres. De acordo com a Kantar, empresa especializada em análise de dados, insights e consultoria, a autoestima das brasileiras, considerando todas as faixas etárias, caiu 7 pontos percentuais na comparação entre 2019 e 2021, indo de 28% para 21% a taxa daquelas que se sentiam bem consigo mesmas. Essa queda foi mais acentuada considerando o público de 30 a 44 anos. Nesse caso, as que tinham autoestima elevada passaram de 31% para 16%. Por outro lado, em outros dois grupos etários, a tendência foi a inversa. Considerando mulheres de 18 a 29 anos, o índice de respondentes que demonstravam autovalorizar-se subiu de 22% para 25%. Entre aquelas com mais de 45 anos, foi de 33% para 46%.
Deve-se ponderar que as percepções de valor da própria aparência e de habilidades intelectuais – itens auferidos pela pesquisa do Instituto Ideia – são elementos que compõem a autoestima, que, por sua vez, é um conceito não limitado a esses fatores. No caso da apuração da Kantar, aspectos como autonomia sexual e corporal, liberdade de pensamento e expressão, autonomia financeira, conexões sociais e representatividade e visibilidade foram considerados para a composição da autoestima. Dessa maneira, é importante ressalvar que a comparação entre os dados coletados nos dois levantamentos não é tão óbvia e sugere apenas indícios de uma potencial discrepância em relação à percepção do autovalor de homens e de mulheres.
Na boca do povo
Nas ruas da capital mineira, essa diferenciação parece óbvia para alguns, mas, para outros, nem tanto. Para a aposentada Elizabeth Maria de Jesus, 61, por exemplo, as pesquisas apontam uma realidade evidente. Ela avalia que as elas costumam ser mais cobradas que eles, por exemplo, em relação a cuidados estéticos – e sustenta que essa pressão por se adequar a um padrão de beleza seria um dos elementos a deteriorar a autoestima feminina.
A cozinheira Claudiene Patrocínio, 34, concorda em parte. “Tem muita mulher que tem autoestima muito elevada. E eu falo por mim, porque sou desse jeito”, pondera. “Mas tem também muito homem que se acha muito, muito mesmo. Que se acha a última bolacha do pacote, e não é isso tudo não”, crava. Informada de que só 3% dos brasileiros se consideram feios, ela reage em um misto de incredulidade e compreensão. “Não acho que (o dado) corresponde à realidade, mas, se eles próprios não se acharem bonitos, quem vai achar?”, questiona.
Por outro lado, o barman Fernando de Oliveira Franco, 42, tem para si uma crença que contraria as estatísticas. “Nos dias de hoje, acho que as mulheres estão com mais autoestima”, sustenta, argumentando que, na paquera, elas estariam mais “com o nariz empinado”. Já o advogado Márcio Grossi, 44, não vê o menor sentido em se fazer essa diferenciação. “Eu acho que não se pode afirmar que a mulher ou o homem, naturalmente, tenha mais autoestima”, opina.
Pressão estética
De fato, do ponto de vista fisiológico, não há nada que explique a diferença em relação a autopercepção masculina e feminina. Por trás desse fenômeno, portanto, estão fatores socioculturais, como a pressão estética, que atinge a todos, mas que afeta fundamentalmente as mulheres, como avalia a psicóloga Eliza Carla Sirino Nunes, especializada em educação e saúde. “A sociedade cobra que a mulher se esforce na busca por se encaixar em padrões de beleza construídos culturalmente, ao longo da história, e que, muitas vezes, são irreais”, pontua.
São efeitos imediatos desse problema a insatisfação em relação ao próprio corpo, que repercute em baixa autoestima e insegurança, questões que levam ao desenvolvimento de transtornos diversos, principalmente aqueles relacionados a uma lida conflituosa com a alimentação e com a autoimagem, como a compulsão alimentar, a anorexia, a bulimia e a busca desenfreada e pouco cuidadosa por cirurgias plásticas. Há também repercussões relacionais e profissionais, uma vez que há consequente deterioração da autoconfiança, favorecendo o ingresso em relações abusivas. Não por acaso, as mulheres são as mais afetadas por cada um desses problemas.
A especialista em desenvolvimento humano e mindfulness Vivian Wolff faz considerações semelhantes. “Ao longo do amadurecimento da mulher, principalmente na juventude, durante a transformação da menina para a mulher, as cobranças sobre o que se é exigido em termos de aparência e comportamento, tanto da sociedade onde está inserida como da própria família, podem ir moldando – e dinamitando – a autoestima das mulheres”, avalia. “São desdobramentos dessa cobrança o medo do julgamento e a dúvida sobre o nosso próprio valor em função de nossas características físicas e de nossa personalidade”, observa. “Por outro lado, o mesmo não acontece com o homem, atuante em uma sociedade machista com os olhares julgadores muito em cima das mulheres, que recebem de certa forma um aval para exercitar sua autenticidade”, compara.
Ernani Gomes, especializado em terapia cognitivo-comportamental e professor na Universidade Estácio, concorda. Contudo, ele cita estudos que indicam que cada vez mais homens têm sido assombrados pela pressão estética. “Há pesquisas, inclusive relacionadas a questões sexuais, indicando que mais homens têm se sentido inseguros sexualmente por não se sentirem bonitos. Há também um aumento do volume de casos de homens se privando de comer ou treinando excessivamente na tentativa de se enquadrar em um padrão de beleza entendido socialmente como desejável”, sinaliza, destacando que, embora haja grande desigualdade em relação ao tema, é notável a tendência de problemas advindos de distorções da autoimagem se tornarem mais comuns também na população masculina.
Falta modéstia? Vivian Wolff sustenta que a autoconfiança excessivamente alta também é fonte de problemas. “Se alguém tem níveis excessivos de autoestima, provavelmente se avalia positivamente ao extremo. Pode se elogiar demais mesmo quando não é merecido, não valorizar os feedbacks que recebe e esperar que os outros também vejam nele o mesmo que vê em si”, pontua. “Aqui estamos falando de alguém que atua de forma superautoconfiante e superestima suas habilidades e atributos, nutrindo uma opinião sobre si mesmo que se revela exagerada e irreal”, comenta, sinalizando que esse comportamento pode levar à exposição desnecessária a riscos – um sujeito que se julgue um exímio motorista pode, por exemplo, se recusar a usar cinto de segurança e pode dirigir de forma mais temerária; por essa mesma lógica, alguém que se acha muito forte tende a deixar de fazer consultas médicas regulares.
‘Tá tudo bem?’ Embora revele certo narcisismo estético e intelectual, a pesquisa realizada pelo Instituto Ideia evidencia sinais de uma crise no mundo masculino. O levantamento mostra que 70% dos homens estão endividados, 60% consideram que estão abaixo de suas próprias expectativas profissionais, 83% estão estressados, e 74%, ansiosos. Boa parte deles admite sofrer com sintomas graves de saúde mental, como depressão (34%) e pânico (26%). “Paradoxalmente, é um homem que cuida pouco da própria saúde, seja ela física (44% não praticam exercícios) e principalmente a saúde mental, com apenas 16% dizendo que já fizeram terapia”, informa a revista “GQ Brasil”.