É três vezes mais provável que uma criança da China, dos Estados Unidos ou do Reino Unido queira ser uma youtuber do que uma astronauta, como indicou um estudo realizado em 2019 pela empresa de pesquisa e análise de mercado Harris Poll em parceria com a marca de brinquedos Lego. Levantamento que confirma como o sonho de ser um influenciador digital tem ocupado cada vez mais espaço no imaginário coletivo. Não por acaso, muitos consideram que o ofício é a “profissão do futuro”. Há quem discorde, afinal, mais do que “do futuro”, o trabalho dos influencers já é uma realidade concreta no presente.
A popularização do sonho de seguir uma carreira digital não surpreende o publicitário e infoprodutor Luiz Lana. “Vejo como um fenômeno absolutamente natural e até esperado, considerando a forma como a sociedade se organiza”, opina, lembrando que novas carreiras sempre surgiram ao longo da história. “Hoje, vivemos o paradigma digital, com grande evolução de tecnologias e maior acesso da população à web. Então, logicamente, profissões digitais vão começar a aparecer mais e mais”, avalia.
“Alguns ofícios têm maior apelo cultural, enquanto outros nem tanto. Um bom exemplo disso é o sonho de ser jogador de futebol. Seja pela midiatização desses atletas ou pelo fato de muitas pessoas jogarem bola desde a infância, sabemos que é um desejo muito comum. Apesar disso, por uma série de razões, poucos se profissionalizam e se tornam jogadores profissionais”, comenta o publicitário, que parte para uma analogia: “Percebo que, no caso dos influenciadores, a lógica é parecida. Como se tornou fácil produzir conteúdo digital, já que basta ter acesso à internet para criar um perfil ou um canal, se tornou também mais comum o sonho em ser um player nesse meio. Contudo, da mesma forma, poucos vão de fato se profissionalizar”, avalia.
Mais um componente que leva diversas pessoas a buscarem se projetar como referência nas mídias sociais é a romantização dessa profissão. É o que aponta o também publicitário Bruno Gimenes, que atua como diretor comercial e de novos negócios da Camelo Digital, agência com foco no mercado digital. “Sem dúvida, há uma certa inocência. Muita gente acha que vai ser fácil, muita gente não se dá conta de que estamos falando de um trabalho, que, portanto, exige dedicação e compromisso”, analisa.
Mercado aquecido. Gimenes indica que o mercado de influencers está aquecido e deve crescer ainda mais nos próximos anos. “Um dos efeitos da pandemia foi a maior virtualização do dia a dia. Mais pessoas foram para as redes para tudo. Compras, trabalho, interações… Com isso, cresceu o alcance de quem já produzia conteúdo ao mesmo tempo que um número maior de usuários passaram a também se dedicar a esse tipo de criação”, comenta, dizendo acreditar que, além de uma consolidação, o segmento não deve parar de crescer.
Frustração. Lana inteira que, apesar do crescimento, a frustração continuará a ser um componente da trajetória de quem persegue o sonho de se tornar um influenciador. “Mais uma vez recorrendo ao exemplo do futebol, temos crianças e adolescentes que vão tentar essa carreira e não vão conseguir, seja por não serem tão bons de bola, porque tiveram barreiras que impediram de dar continuidade a esse projeto ou mesmo porque tiveram azar”, comenta, dizendo que realidade análoga se aplica aos que querem se tornar personalidades virtuais.
Sob pressão
Com 1,8 milhão de seguidores no TikTok, 1,7 milhão no Instagram e mais de 300 mil inscritos em seu canal no YouTube, a influenciadora Ana Luiza de Andrade, a Fu, lembra que a profissão dela é, ao mesmo tempo, gratificante e exaustiva. “Claro que há muitos momentos em que me sinto recompensada pela trajetória que construí, pelo carinho que recebo de tantas pessoas. Mas seria desonesto dizer que não há dificuldades”, sugere.
“Para começar, nós que produzimos conteúdo digital precisamos entender como o algoritmo está funcionando, saber se nossas criações vão funcionar ou não. E há pouca garantia nesse meio. As regras de distribuição de publicações podem mudar do dia para a noite, de forma que não temos muita garantia”, comenta.
“Além disso, há muita expectativa e cobrança sobre o nosso trabalho, seja vinda de nós mesmos – que sabemos que nossa palavra tem peso e que precisamos ser responsáveis com o que comunicamos –, seja vinda de nossos fãs ou das próprias empresas de tecnologia – que, cada vez mais, partem da lógica do ‘quem não é visto não é lembrado’, exigindo uma produção contínua de conteúdo original. De repente, nos vemos em uma corda bamba entre produzir algo relevante, com nossa identidade e transmitindo nossos valores, e entrar nas modinhas da internet, que é o que todo mundo está fazendo, mas que gera engajamento e atrai audiência”, admite.
Para dar conta do quase incontrolável apetite por novos conteúdos do público e das plataformas de mídia, Fu, que tem uma empresa de comunicação que agencia influenciadores, reconhece que já precisou negligenciar questões de ordem pessoal.
“O tempo todo estamos tentando inovar e sobressair, e isso é muito desgastante, causando, sim, muita ansiedade”, diz, emendando que os primeiros minutos após uma publicação chegam a ser aflitivos. “Esse é o momento decisivo, quando sabemos se vamos alcançar o público desejado ou não”, pontua. Ela ainda lembra que, a cada dia, há uma nova rede social, o que implica em um aumento da necessidade de produção de conteúdo. “Hoje, muito se fala sobre a necessidade de sermos multiplataformas. O resultado é uma cobrança fora do comum”, reconhece.
Adoecimento
As ponderações de Ana Luiza de Andrade, a Fu, reforçam como – além de ser uma nova oportunidade ou mesmo a profissão dos sonhos de muitos – há percalços e desafios específicos e que, apesar de serem muitas vezes invisíveis, são capazes de tirar o sono e ameaçar a saúde daqueles que desejam ser ou já se tornaram influenciadores digitais. É o que confirma uma investigação realizada pela plataforma CriadoresID, que ouviu 300 youtubers e constatou que 16,9% deles sofriam de ansiedade e 4,3% enfrentavam depressão. Além disso, 28% diziam não realizar atividades físicas e 53,8% dependiam totalmente da plataforma de vídeo do Google para obter renda.
Os dados chamaram atenção de estudantes e pesquisadoras do curso de medicina da Universidade Estácio de Sá – Campus Cittá, no Rio de Janeiro. Atentas à recorrência com que casos de personalidades virtuais manifestavam sofrer com transtornos mentais e emocionais, docentes e discentes da instituição publicaram na revista científica “Brazilian Journal of Health Review”, no ano passado, o artigo “Paradoxo do mundo digital: desafios para pensar a saúde mental dos influenciadores digitais”, em que constatam haver “nexo causal entre os resultados da economia criativa e os agravos de saúde mental apresentados pelos profissionais”.
Vale dizer, embora não existam pesquisas que falem especificamente da realidade de produtores de conteúdo que representam grupos minorizados, é possível que essas pessoas fiquem ainda mais vulneráveis ao sofrimento mental e emocional – este, afinal, é um padrão que se verifica no dia a dia.
No texto, as estudiosas citam uma reportagem do jornal britânico “The Guardian”, de 2018, em que o autor assinala que muitos dos seus entrevistados, todos Youtubers, relataram que, no começo, o trabalho parecia o mais divertido que poderiam imaginar, mas, logo, “transformou-se em algo profundamente sombrio e solitário”. Elas também lembram que a Youpix, uma consultoria de negócios para economia de influência e comunicação digital, citava que o influenciador digital já havia se tornado, no final da década passada, um emprego sonhado pelas novas gerações – o que só vem provocando maior competitividade no segmento.
“Para manter-se no mercado, se faz presente a necessidade da economia criativa, na qual o influenciador precisa estar sempre criando novos conteúdos e novas ideias para manter a sua gama de seguidores. Ao mesmo tempo em que há a necessidade de suprir as exigências do mercado, há também a insegurança de não conseguir prever o que terá ou não sucesso. Por conseguinte, esses profissionais começam a estender a sua jornada de trabalho e aumentam o sentimento de competitividade, piorando as relações de trabalho e afetando com o passar do tempo a sua qualidade de vida”, descrevem.
“Nesse cenário, é comum o deterioramento da saúde mental, gerando doenças como ansiedade, depressão e síndrome de Burnout, podendo ser considerado, inclusive, uma questão de saúde pública”, asseveram os estudiosos, que listam outras situações que podem levar ao adoecimento mental e emocional, como excessos de interação na internet – tanto em relação aos fãs, que exigem criação contínua de novos conteúdos, quanto em relação aos haters, que são críticos ao trabalho realizado ou ainda produtores de ofensas pessoais.
Por fim, outro fator estressor listado no artigo são as repentinas mudanças nos algoritmos das plataformas digitais, implicando em dificuldade de distribuição de conteúdo e de monetização. Por isso, os influenciadores passam a ser mais dependentes do engajamento dos fãs – “o que faz que trabalhem cada vez mais para produzir mais material original, levando ao esgotamento físico e psicológico”.
Silenciamento. As autoras do estudo “Paradoxo do mundo digital: desafios para pensar a saúde mental dos influenciadores digitais” ainda citam que o tabu em se falar sobre saúde mental deixa tudo ainda mais complicado. “Muitos relatam sentirem-se culpados de abordar tal assunto, uma vez que demonstram ter uma vida perfeita (nas redes sociais)”, destacam no texto.
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Transtornos. Para elas, devido às longas jornadas de trabalho e à exposição ao ciberbullying, os influenciadores tornam-se mais suscetíveis ao desenvolvimento de transtornos mentais. “Ademais, as condições de trabalho estressantes aumentam o risco de efeitos adversos à saúde e contribuem para a adoção de mudanças de comportamento, como tabagismo e consumo de álcool”, acrescentam, salientando que o trabalho com mídias digitais é classificado como informal – “não dispondo de direitos trabalhistas como, por exemplo, auxílio-doença, aposentadoria, Previdência Social, entre outros”.
Prevenção. “Dessa forma, medidas como acompanhamento com psicólogo, implementação de atividade física e a divisão melhor do tempo entre trabalho e descanso podem ajudar a melhorar ou proteger a saúde mental de influenciadores digitais. Além disso, um melhor esclarecimento sobre seus direitos trabalhistas ou até mesmo sobre a falta deles pode ajudar o trabalhador a traçar uma melhor estratégia a fim de assegurá-lo quando necessário”, concluem as pesquisadoras.