Em “Estação Atocha”, romance de estreia de Ben Lerner, apontado como promessa na literatura americana, o jovem poeta Adam Gordon ganha uma bolsa de estudos e muda-se para Madri, na Espanha. Recluso, instável e narcisista, ele é frequentemente tomado por um sentimento de alienação de si mesmo e dos outros, sendo incapaz de sentir empatia pelas vítimas de um atentado terrorista. Encarando as relações sociais com distanciamento, como em um jogo, o protagonista da trama busca manipular pessoas próximas dele – muitas vezes apoiando-se em atitudes antiéticas e imorais, como inventar a morte da própria mãe. A história, em um primeiro momento, parece longe de lembrar outro romance americano: o best-seller “Precisamos Falar sobre Kevin”, de Lionel Shriver. No livro, o passado de um adolescente, autor de um massacre escolar, é esmiuçado por sua mãe, que tenta encontrar indícios e explicações para o comportamento assassino do próprio filho.
Ocorre que, em uma análise mais retida e valendo-se da psiquiatria como uma lupa que permita um olhar mais aproximado para esses personagens, é notável um ponto de confluência: tanto Adam, que não apresenta desejos homicidas, quanto Kevin, que cede à pulsão assassina, demonstram, em maior ou menor grau, um comportamento que denuncia traços do que conhecemos, vulgarmente, como psicopatia. Sim, pode até causar algum estranhamento – afinal, não é isso o que nos faz crer os folclóricos personagens da vida real, da literatura ou do cinema que estão muito associados ao que, no imaginário popular, se entende como um psicopata –, mas, para especialistas, é coerente apontar em um personagem com imaculada ficha criminal aspectos de comportamento elementares da personalidade sociopata. Fazendo alusão ao título de um livro da psiquiatra e escritora brasileira Ana Beatriz Barbosa Silva, pode-se dizer: o psicopata talvez more ao lado.
“Trabalho com o entendimento de que a psicopatia seria uma manifestação mais aguçada e exuberante do transtorno de personalidade antissocial, que atinge entre 1% e 3% da população mundial”, explica o psiquiatra Rodrigo D’Angelis, mestre em saúde coletiva. Ele prossegue expondo que é característica dessa patologia a falta de empatia, de vínculo com normas e regras, de sentimento de culpa ou de sensações de remorsos. “São indivíduos que adotam uma postura muito egocêntrica, pensando sempre em si mesmos e que apresentam, em diferentes contextos, inclusive se frustrados, atitudes impulsivas”, assinala.
Assim, buscando alcançar seus objetivos, esses indivíduos manipulam outras pessoas e, mesmo cientes que existem normas morais, éticas e legais, não se apegam a elas. Por tudo isso, completa o psiquiatra, tendem a causar prejuízos para si próprios, a seu círculo de convívio social e profissional e, muitas vezes, cometem crimes – não apenas contra a vida, mas também outros tipos de infrações, afinal, as regras da vida em sociedade, embora conhecidas, não parecem fazer sentido para essas pessoas.
Pesquisa polonesa identificou traços do comportamento naqueles descumprem medidas de enfrentamento ao coronavírus
Esses traços de comportamento foram identificados, por meio de estudos conduzidos recentemente na Polônia, em pessoas daquele país que têm dificuldades em cumprir as orientações necessárias ao enfrentamento da pandemia da Covid-19, como em relação ao uso de máscara e ao distanciamento social. As pesquisas, divulgadas na revista científica Personality and Individual Differences, foram conduzidas por estudiosos das Universidade de Varsóvia e da Universidade SWPS de Ciências Sociais e Humanas em Poznan.
A publicação detalha que esses indivíduos tendem a se preocupar mais com os prejuízos pessoais, que essas práticas poderiam causar a eles próprios, do que com os danos coletivos, que o descumprimento de regras sanitárias poderiam ocasionar. Além disso, eles não acreditam que as medidas sejam eficazes. Todavia, a presença de caracteríticas de narcisismo, psicopatia e maquiavelismo na personalidade dos entrevistados não significa um diagnóstico para tais distúrbios.
Rodrigo D’Angelis, aliás, alerta que, como em qualquer outra situação em que se fale de transtornos mentais, não se deve reduzir uma característica presente no diagnóstico ao diagnóstico em si. Isto é, esses traços de comportamento devem estar presentes na vida da pessoa de forma disseminada e ao longo da vida. Sem essa diferenciação, corre-se o risco de entender que qualquer pessoa, ao demonstrar, por exemplo, um caráter egoísta, seja rotulada como uma psicopata: “Não é assim! É preciso existir um conjunto de fatores e uma recorrência. É preciso cuidado para não banalizar o termo”, explica.
Não há consenso na psiquiatria sobre o conceito
O tema, no entanto, está longe de ser tratado de forma consensual e ainda mobiliza extenso debate. O psiquiatra forense Paulo Repsold, por exemplo, acredita que o transtorno de personalidade antissocial pode levar a um tipo de psicopatia. Mas ele faz a associação com uma condicionante porque “nem toda pessoa diagnosticadas com esse distúrbio chega às raias da psicopatia” e, além do mais, “nem todo psicopata padece do transtorno”, assegura.
Repsold, vale frisar, prefere usar a expressão “sociopatia”, que se refere de forma mais precisa a uma doença que afeta a sociedade. Para o perito do Sistema Prisional do Estado de Minas Gerais, “sociopata seria aquela pessoa que tem algum distúrbio mental e, em decorrência dele, passa a ter comportamentos imorais ou criminosos de forma contínua e recorrente”, define.
O especialista avalia que, além do transtorno de personalidade antissocial, outras desordens mentais podem resultar em manifestações sociopatas. “Indivíduos com outras doenças podem desenvolver quadros de sociopatia”, indica o psiquiatra, que recorre a um exemplo hipotético para ilustrar a análise por ele proposta: “Um sujeito pode desenvolver quadro de paranoia e, no delírio dele, começar a acreditar que tem o dever que fazer uma limpeza na sociedade exterminando um certo grupo social – o que faria dele, até mesmo, um serial killer”, aponta, ressaltando que, obviamente, nem toda paranoia vai desencadear um comportamento sociopata.
Fatores biológicos e psicossociais estão atrelados a manifestação do distúrbio
Ponto comum nas análises de Rodrigo D’Angelis e de Paulo Repsold, a manifestação de comportamentos psicopáticos depende de um conjunto difuso de fatores. “Os transtornos de personalidade estão ligados não apenas a componentes biológicos como também a construções psicossociais”, aponta o primeiro, lembrando que há maior incidência do distúrbio entre a população julgada criminalmente. “Um comportamento sociopata vai ser resultado de uma predisposição genética acrescida de um desenvolvimento psicológico perturbado. Portanto, há uma associação e uma interação entre determinantes biológicos, psicológicos, sociais e culturais”, examina o último.
Os dois estudiosos também concordam que o distúrbio pode ser tratado. “É um tratamento que tem como base a psicoterapia e que pode ser também medicamentoso”, explica D’Angelis, observando que os remédios não vão atuar diretamente sobre o complexo da personalidade, mas sim sobre os sintomas de comportamento, atuando sobre a impulsividade e a instabilidade emocional, por exemplo. O psiquiatra lembra, no entanto, que o acompanhamento desses pacientes tende a ser difícil. “Em geral, eles chegam ao consultório por demanda familiar ou por ordem judicial. Por isso, é necessário trabalhar o tempo todo com elementos que possam conduzir a pessoa a se sentir motivada para seguir o tratamento, que, inicialmente, não é uma demanda dela, mas de quem a cerca”, comenta.
Repsold ratifica que, no que diz respeito a um adulto que já manifesta a sociopatia, o tratamento será mais difícil, e os resultados, possivelmente, serão mais pobres. O psiquiatra acredita que tendem a reduzir danos a adoção de medidas preventivas – “como a atuação da família, se estruturada e com valores sólidos” – e terapêuticas – “buscando ajuda ao identificar traços de comportamento problemáticos, que costumam ser manifestados no final da infância e início da adolescência”. “Idealmente, as duas coisas devem ocorrer juntas: a prevenção, do ponto de vista social, vai estar relacionada a uma sociedade mais saudável, e o tratamento terapêutico terá melhores resultados se o diagnóstico e o tratamento forem precoces”, diz. Caso contrário, “pequenas distúrbios psiquiátricos, se ignorados e combinados com outros fatores psicossociais, podem levar a manifestações da sociopatia”, assevera.