Ainda que, nas idas semanais ou quinzenais ao supermercado, o publicitário Fábio Faria, 22, arrisque um ou outro flerte “só com os olhinhos, sobre a máscara”, como ele mesmo admite, a verdade é que não está em seu radar qualquer tipo de relacionamento com pessoas desconhecidas mesmo quando pensa no pós-pandemia. Nas conversas que mantém, nas redes sociais, “só estou marcando encontros para depois (do relaxamento das medidas sanitárias de enfrentamento à pandemia) e só com pessoas que conheço e que sei que se cuidaram”, garante.

O relato é mais um a fornecer indícios de como a Covid-19 pode provocar uma reconfiguração das relações afetivas e sexuais mesmo depois que a crise mais aguda provocada pela doença tiver ficado no passado.

Hoje, o coronavírus causa apreensão e promove a adoção de uma série de hábitos e protocolos – como confirma uma pesquisa de comportamento do consumidor realizada pelo Instituto Qualibest e divulgada no início de maio, indicando que 94% dos brasileiros mudaram práticas de higiene. Cuidados que, na ausência de uma vacina, podem se manifestar nos relacionamentos.

“‘Quarentener’ fica com ‘quarentener’” – daria para resumir, de maneira um tanto superficial, uma insinuante tendência de comportamento. O neologismo, neste caso, não é restrito para designar pessoas que estão ficando em casa, mas identifica também os trabalhadores de serviços essenciais, que tiveram que ir às ruas, mas que demonstraram apoio às medidas sanitárias, adotando uma série de cuidados. De maneira geral, 67,3% da população brasileira se encaixa nesse perfil – conforme levantamento CTM/DMA, divulgado no dia 12 de maio e que questionou se os entrevistados concordavam com a adoção de medidas de isolamento social horizontal.

“Quando tudo isso passar, minhas relações vão ser com pessoas que se preocuparam em proteger a si e aos outros”, assegura a estudante de letras Camila Lopes, 25, que também assume: prefere não se relacionar com aqueles que desprezam as recomendações de autoridade de saúde. “Quando vejo pessoas furando quarentena para encontrar amigos e para ir a bares, por exemplo, passo a desconfiar que, em uma relação, elas colocariam seus prazeres em primeiro lugar”, analisa.

Novos protocolos

E mesmo entre pessoas que, pelo sexo, admitem “furar a quarentena”, há quem, para se sentir mais seguro, adote uma série de protocolos domésticos, como observa Victor Hugo de Souza Barreto, doutor em antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Desenvolvendo um estudo sobre práticas sexuais consideradas de risco e seus desafios para as políticas públicas de saúde, ele identificou que, entre os interlocutores de sua pesquisa, rotinas foram alteradas.

Em um grupo de WhatsApp monitorado por Barreto, um usuário comenta que não deixou de transar, mas que está “bem mais seletivo”. Ele diz que passou a se relacionar “só com amigos que conheço e tenho já alguma intimidade, mesmo porque existe todo um ritual para entrar aqui no meu apartamento: sapato na porta, direto pro banheiro tomar banho e a roupa da rua toda separada”, escreve, reconhecendo que, sim, “existe o risco (de contágio), claro que existe”. A postagem é censurada por outros membros do grupo. “Intimidade não quer dizer nada!”, alerta um deles. “Você fazer a sua parte não quer dizer que o outro também faça…”, critica outro.

O pesquisador conversou também com garotos de programa que não pararam com os encontros presenciais. “Um deles criou mecanismos de redução de danos: só atende clientes em isolamento há mais de 15 dias, sem idosos em casa, que não apresentaram sintomas da doença e que não utilizam transporte coletivo”, explica.

“Esses protocolos de minimização são as primeiras formas de vivenciar a sexualidade quando o risco será igual a todos”, avalia Barretos, lembrando que, mesmo com a vacina, pode haver uma mutabilidade do vírus e que, no pior dos mundos, "a gente não vai mais se livrar da doença”.

Ele compara o atual cenário com aquele vivido a partir dos anos 70. “No caso da Aids/HIV, a percepção que vigora até hoje é que é uma doença comum apenas entre homossexuais, sendo fato que heterossexuais usam menos camisinha. Já com a Covid-19 todos estão submetidos ao contágio, o que muda a percepção e a prática em relação à crise”, analisa.

Futuro incerto

“A pandemia já mudou as formas como os relacionamentos funcionam”, avalia a psicóloga e sexóloga Enylda Mota. De imediato, diz, há uma mudança em parte decorrente do foco na prevenção, que traz interferências nas práticas sociais, como a introdução de elementos que dificultam a aproximação – a exemplo das máscaras ou, em alguns casos, do banho antes do abraço ou das experiências sexuais e afetivas.

Os impactos futuros, completa Enylda, vão depender de como as pessoas estão lidando, atualmente com a ansiedade, o medo, a insegurança, a angústia, a solidão, o isolamento e as incertezas. “Como vivemos hoje pode refletir em como viveremos quando tudo passar”, argumenta.

Já Theo Lerner, sexólogo da divisão de clínicas ginecológicas do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (HC/USP), acredita que o futuro das relações será determinado pela forma como a pandemia vai se comportar. “Existe a possibilidade de o coronavírus deixar de ser algo terrível… Já vimos isso com a Aids, que era percebida como uma doença fatal e, agora, é entendida como uma doença crônica. Em um certo aspecto, ela foi normalizada, e essa normalização trouxe consigo alguns comportamentos de risco”, indica.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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Virtualização

A professora Bruna Dias, 34, já era usuária de aplicativos de relacionamento antes de a pandemia ser uma realidade. E, por isso, é testemunha de um sensível antes e depois: agora, essas plataformas andam mais movimentadas. Ela mesmo aproveitou para investir em paqueras com pessoas de outros países no período em que o Tinder liberou uma função que permitia “conexões internacionais”. “Foram flertes interessantes, mas breves, na maioria das vezes”, comenta.

“Uma das poucas certezas sobre as mutações da sexualidade nesses tempos é a virtualização dos desejos e das práticas. Não é como se a gente tivesse criando algo novo, mas há um crescimento exponencial no uso desses recursos”, avalia o antropólogo Victor Hugo de Souza Barreto, mencionando como exemplo a intensificação dos programas de prostituição feitos virtualmente, do sexting (troca de fotos íntimas de nudez e sexo, mensagens de textos insinuantes e eróticas por meio de redes sociais e aplicativos) e da “pornificação de si” (indo da exposição de práticas tidas como íntimas nas redes sociais até a monetização de um material mais explícito em plataformas virtuais pagas).

As razões, aponta ele no texto Pandemia, sexualidade e percepção do risco: algumas notas sobre quarentena e desejo, podem ser diversas: “maior tempo livre, tédio, estimular a comunicação em um momento de isolamento, dar conta de alguma forma da libido e, até mesmo, a complementação da renda”, enumera.

Em relação à mencionada monetização, o autor salienta que “o fenômeno de maior digitalização do mercado do sexo tem um recorte óbvio de classe e idade, já que a prostituição de pessoas mais velhas e de camadas mais pobres teve a sua situação de vulnerabilidade agravada pela epidemia”.

Tendência acelerada

Para Theo Lerner, a Covid-19 está acelerando esse processo de virtualização. “São tendências que já estavam se esboçando e que, em algum grau, vão ficar”, pondera.

Um levantamento da Happn reforça a tese. Realizado entre 4 e 11 de maio e ouvindo 1.117 usuários do aplicativo de diferentes regiões do país, o estudo demonstrou que 31% dos brasileiros inscritos na plataforma praticaram sexting durante a quarentena. Para cerca de metade (15%), a primeira vez foi justamente neste período.

Chegam notícias de um aumento na procura de ferramentas online de relacionamento. Mas até que ponto conhecer e se envolver somente virtualmente é algo duradouro, sem o toque da pele, o abraço, a convivência?”, pergunta Enylda Mota.

De fato, a questão está posta entre aqueles que utilizam esses canais. “Sei de amigos que estão procurando por meio dessas tecnologias um meio de encontrar alguém para se relacionar depois, eu também tentei. Mas percebi que não dá para manter muito contato virtual, porque acaba, de algum jeito, virando mais amizade, e os flertes, com o passar do tempo, vão perdendo o viço”, comenta a estudante Camila Lopes.

Se a quarentena turbinou o envio e consumo de material sensível, Barreto desconfia que a sensação de segurança pode funcionar como uma armadilha. “É algo que pode causar impactos, por exemplo, com mais pessoas sendo vítimas de vazamentos de conteúdo íntimo, o que pode levar a um debate sobre as questões legais”, sugere.

Preconceito agravado

Os impactos da emergência sanitária podem implicar, de maneira particular, modalidades românticas que fogem ao ideal monogâmico, que podem ser alvos de preconceito sob pretexto de atentarem contra a saúde. 

“O poliamor e as relações abertas nunca foram bem aceitas pela sociedade de modo geral. Algumas pessoas chegam a acreditar que a Aids, no passado, e, agora, a pandemia da Covid-19 se apresentaram ao mundo para frear comportamentos entendidos como libertinos”, critica a economista Rosana*, 46.

Sem se identificar socialmente como poliamorista por temer manifestações de discriminação, ela observa que “o distanciamento que estamos vivendo no momento enfraquece as múltiplas relações amorosas e cria um estigma negativo e medo de se relacionar com múltiplos indivíduos. Certamente relacionamentos abertos terão que se reinventar no momento pós-pandemia”, crava.

Rosana observa sinais de preocupação em comunidades virtuais que buscam romper tabus sobre o tema. “Algumas pessoas não sabem como irão ser relacionar, estão perdidas pois querem ser livres para terem os parceiros sexuais que quiserem. Outras irão fechar o relacionamento temporariamente. Essa foi a minha opção. Ser poliamorista não significa que não possamos ser  felizes sendo monogâmicos por um tempo”, diz.

A digitalização das relações é vista como uma possibilidade. “Afinal, nós somos capazes de nos conectarmos com diversas pessoas ao mesmo tempo e, em momentos de pandemia, as relações virtuais são o que nos é permitido”, reforça.

A vida imita a arte?

Enquanto especialistas e pessoas comuns ainda tateiam e especulam sobre como serão os relacionamentos pós-pandemia, no meio audiovisual já é dado como certo que, na ausência de uma vacina, haverá a necessidade de adoção de novas medidas de segurança..

Na prática, serão, possivelmente, mais raras cenas de abraços, de beijos e de sexo nas produções cinematográficas e televisivas feitas após o afrouxamento da quarentena.

*Nome fictício