Entrevista

Reconstrução facial 3D ganha espaço no resgate da história

Cícero Moraes já participou de mais de 60 reconstruções faciais envolvendo importantes figuras


Publicado em 12 de setembro de 2018 | 03:00
 
 
 
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Cícero Moraes

Designer 3D

Especialista em reconstruções faciais

Natural de Chapecó, Santa Catarina, formado em marketing e morador de Sinop, em Mato Grosso, o designer já participou de mais de 60 reconstruções faciais envolvendo importantes figuras religiosas e da história, como D. Pedro I e o Homem de Lagoa Santa.

No ano passado, você recriou a aparência do fóssil que pertenceu a um indivíduo chamado Homem de Lagoa Santa – povo ancestral que habitou a região. Além dele, já reconstruiu rostos de D. Pedro I e de Santa Paulina. Hoje você trabalha ligado a algum órgão?

Sou um pesquisador independente e autodidata que, na maioria das vezes, trabalha junto a instituições de ensino superior, ministérios e afins. Por um lado ofereço o meu know-how, obtido a partir de uma linha de estudo bastante específica e, muitas vezes, exclusiva, e, por outro, me adequo ao formalismo acadêmico absorvendo o amplo conhecimento gerado pelas instituições.

Um dos seus trabalhos mais expressivos foi a reconstituição de São Valentim, por meio de computação gráfica, a partir de sua ossada. Como foi esse trabalho?

Tenho um parceiro de pesquisas, o Dr. José Luís Lira, que é hagiólogo (especialista na vida dos santos). Quando ele soube que eu havia trabalhado na reconstrução facial de Santo Antônio, entrou em contato comigo e, a partir de então, reconstruímos a face de várias figuras católicas. Em 2016, quando ele viajou para a Itália, foi até a Basílica de Santa Maria em Cosmedin, onde sabia haver um crânio atribuído ao padroeiro dos namorados. Como bom articulador, fechou parceria com o padre responsável e, no começo de 2017, apresentamos a face de São Valentim.

Explique um pouco sobre as etapas do trabalho usando a tecnologia de fotogrametria — digitalização 3D a partir de fotos.

Uma curiosidade desse trabalho é que o próprio Dr. Lira fez as fotos do crânio, que serviram como base para a digitalização 3D a partir do processo de fotogrametria. Uma vez que o crânio estava “virtualizado”, eu o enviei para o perito legista Marcos Paulo Salles Machado, do Instituto Médico Legal (IML) do Rio de Janeiro, que analisou a peça sem saber de quem se tratava. Ele aferiu que era um homem de mais de 50 anos de ancestralidade europeia. Com esses dados, pude iniciar a reconstrução, inicialmente distribuindo os marcadores de espessura de tecido mole, que são as “alturas” da pele em determinadas partes do crânio, além de modelar os músculos. Depois, colocamos uma espécie de massinha digital que é moldada seguindo as referências dos marcadores de tecido, dos músculos e das projeções do nariz. Ao final, pigmentei a face, coloquei os pelos, cabelos e indumentária compatível com a época e o cargo.

Essa tecnologia vem sendo usada há quanto tempo? Em média, leva quanto tempo?

O artigo científico mais antigo que se tem registro foi publicado em 1895 pelo Dr. Wiss, acerca da reconstrução facial do compositor Johann Sebastian Bach. De lá pra cá, a técnica evoluiu consideravelmente, principalmente pelo advento das novas tecnologias. O tempo médio para a reconstrução de uma face é de uma semana.

Você acredita que o crânio de Luzia, que se acredita ser o fóssil humano mais antigo já encontrado nas Américas –, e outras peças do Museu Nacional do Rio poderão ser recuperadas?

Sim, e de fato já o fizeram. O crânio foi escaneado por tomografia e também por fotogrametria, além de ser possível efetuá-lo por meio da triangulação de fotos.

A utilização dessa tecnologia é uma tendência para a preservação do patrimônio?

Sim. Acredito que a técnica de documentação baseada em computação gráfica (fotogrametria, modelagem, ortofotografia) pode ajudar e muito o mantenimento de bens culturais e históricos.

Você já fez 14 reconstituições de figuras religiosas – nove santos e dois beatos. Como se dá essa demanda?

Depois de reconstruir a face de Santo Antônio, fui procurado por várias instituições que solicitaram o trabalho de aproximação facial. Geralmente não cobro por tal, e as imagens e vídeos finais são doadas à Wikimédia Commons (Wikipédia), por meio de um projeto que tenho com a Wiki Educação Brasil.

Te chamaram para ajudar em algum trabalho no Museu Nacional após o incêndio?

Eu tenho uma parceria com o Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro (não o que pegou fogo). O último trabalho foi o busto de D. Pedro I. A versão digital foi apresentada em abril e, desde o dia 5 de setembro, ele está em exposição permanente. A gente está fechando outras parcerias para a documentação de patrimônio. Essa também é uma parceria junto ao Wikipédia e, esse foi o primeiro do que espero ser uma sequência de projetos relacionados ao mantenimento do acervo através da documentação 3D e também da apresentação das reconstruções faciais. 

Como você se tornou especialista em reconstrução facial 3D?

Sou formado em marketing, mas a minha história com a reconstrução facial é diversa da formação. Em 2011 sofri um assalto e reagi a dois ladrões armados para defender minha família. Os dois acabaram fugindo, mas, antes, dispararam um tiro que pegou de raspão na minha cabeça. Fiquei deprimido por conta do episódio. Para lutar contra esse quadro, fiz o que sempre faço, estudar alguma coisa. Naquele momento escolhi a reconstrução facial forense. Felizmente superei a depressão e tive a honra de fazer parte da própria história do campo de conhecimento. Já se vão 60 reconstruções que remontam desde os ancestrais da evolução humana até santos católicos e figuras históricas.

Qual é a taxa de sucesso e fidelidade dessas reconstruções 3D?

Se levarmos em consideração o aspecto volumétrico e a margem de erro permitida, pode chegar a 92% de fidelidade, mas uma face é uma face. Mesmo que, do ponto de vista acadêmico, o trabalho seja impecável, sempre será uma aproximação que lembra o rosto. Faces totalmente fiéis aos indivíduos só ocorrem em filmes e séries.

Para a sociedade em geral, qual a importância desse trabalho?

A aproximação facial humaniza um crânio. É uma forma de dar um rosto a uma história, de trazer as pessoas para um primeiro contato. Geralmente a reconstrução facial é uma parte pequena de um trabalho hercúleo efetuado por pesquisadores, e estes merecem todo respeito e admiração.

Qual trabalho você está desenvolvendo atualmente?

Eu estou fazendo um trabalho que é de reconstrução facial de uma rainha da República Tcheca, a Judite da Turingia. Eu vou apresentar os trabalhos amanhã no Castelo de Praga onde é a residência oficial da República Tcheca. Além da rainha, eu fiz outros dois trabalhos: um é um vampiro, que na verdade era um excluído social, mas, pela forma como ele foi enterrado, durante muitos anos as pessoas achavam que era um vampiro. Depois eu reconstruí a Santa Zdislava de Lemberk, que viveu há mais de sete séculos, e cujo trabalho foi reconhecido até pelo Vaticano. Eu vou ficar quatro dias em Praga, e por esses trabalhos de reconstrução facial eu vou receber uma honraria. Eu já tive a honra de receber vários prêmios: a Medalha Inca Garcilaso de La Vega (Peru), a Comenda Colonizador Ênio Pipino (MT), o Título de Cidadão Mato-Grossense e entre outros.

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