Foi ao ler uma crônica de Arnaldo Jabor, publicada em 2002, que Rita Lee compôs aquele que se tornou o seu último sucesso radiofônico. Uma das frases lapidares da canção, no entanto, não constava no texto original que inspirou “Amor e Sexo”, lançado no disco “Balacobaco”, e nasceu da criatividade da ruiva mais debochada do rock nacional: “Amor é bossa nova/ sexo é Carnaval!”.
Originário da expressão em latim que significa “afastar-se da carne”, o Carnaval é conhecido, desde a Antiguidade, como “um período em que todos os excessos são permitidos para que, na Quaresma, se inicie uma rígida abstinência dos prazeres”, como lembra a psicóloga e sexóloga especialista em relacionamentos Bruna Coelho.
“O Carnaval é uma festividade que marca a subversão da ordem, uma forma de canalizar os impulsos carnais em apenas uma data, para depois impor uma fase de restrição e jejum. Esse acordo social permitiu que as pessoas desfrutassem de tudo que era proibido socialmente. Considerando que o sexo sempre foi um comportamento reprimido e o casamento foi o único lugar possível para usufruto dessa experiência, o Carnaval marca o momento em que esse passe livre é concedido”, completa a especialista.
Tanto é verdade que as palavras “orgia” e “bacanal” designavam Carnaval, como explicita a peça “As Bacantes”, escrita por Eurípedes em 405 a.C., e que teve uma montagem de êxito no Brasil com o Teatro Oficina, de Zé Celso Martinez Corrêa.
Libertação
A relação entre sexo e Carnaval já foi abordada mais de uma vez também pelo cinema brasileiro, como é o caso de “A Lira do Delírio”, filme de Walter Lima Jr., de 1978, eleito pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema como um dos cem melhores de todos os tempos. Na história, as personagens vividas por Anecy Rocha, Cláudio Marzo, Paulo César Pereio, Nara Leão e Tonico Pereira entregam-se à esbórnia, misturando ficção e realidade no cenário de um cabaré da Lapa e de blocos de rua do Rio de Janeiro. Numa das cenas mais icônicas da trama, Nara e Anecy protagonizam um tórrido beijo perpassado por muitos amassos no meio da folia.
Bruna considera que “o fato de as pessoas se sentirem mais livres e se vestirem com menos roupas” contribui para o clima de azaração que o Carnaval propicia. “As pessoas podem demonstrar seus desejos reprimidos e ter um comportamento sexual mais explícito. Exibir o corpo, se apresentar de forma atraente é, sim, um tipo de estímulo sexual, digamos, o mais potente de todos, que é o visual”, opina a psicóloga, para quem, “diante de tanto estímulo e liberdade, é notória a procura por encontros sexuais nesta época do ano”.
Fantasias
Outro aspecto que não pode ser desprezado na equação entre sexo e folia são as fantasias, que, de acordo com Bruna, representam “uma forma de as pessoas explorarem seus instintos mais primitivos e acessarem desejos, assumindo um personagem”.
Segundo registros históricos, o uso de adereços carnavalescos começou com um item bem mais específico, mas pra lá de simbólico: as máscaras, que cobriam apenas parte do rosto, mais especificamente os olhos, e, nos bailes promovidos em salões luxuosos da cidade italiana de Veneza, cercada de água por todos os lados, se tornaram uma verdadeira mania do século XV em diante.
“Ao redor do mundo, o uso de fantasias marca a subversão da ordem e dos papéis em caráter temporário, sem sofrer as consequências dessa atitude”, destaca Bruna. Para a psicóloga, essa permissividade pode ser um belo incentivo para as pessoas superarem comportamentos opressivos.
“Poder ousar, trazer o lúdico, trocar de papéis, ora ser mais dominante, ora mais passivo são dimensões muito importantes para serem exploradas na sexualidade. O Carnaval remete à liberdade, à criatividade, ao fato de a pessoa poder se expressar sem medo, sem se preocupar com o julgamento alheio, em um caráter hedonista, e de se permitir todos os prazeres que quiser. Este é um aspecto muito interessante e positivo que deveria ser levado em conta na nossa vivência sexual”, incentiva.
Liberdade carnavalesca não pode ser confundida com assédio
Em dezembro do ano passado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou o projeto de lei da deputada federal Maria do Rosário (PT) que cria o protocolo “Não É Não”, cujo objetivo é prevenir o constrangimento e a violência contra a mulher em eventos com venda de bebida alcoólica. Em 2018, com o mesmo nome que batizou o projeto, uma campanha feita por um coletivo feminista distribuiu adesivos em formato de tatuagem para evitar o assédio às mulheres no Carnaval, e logo se espalhou pelo Brasil.
“No decorrer da história, as mulheres foram colocadas em um lugar subserviente e vulnerável, tendo o corpo objetificado e extremamente sexualizado, como a serviço da satisfação do outro. Em festas e outras situações em que as pessoas bebem e ficam mais propensas a comportamentos impulsivos, era justificável culpabilizar a mulher pelo assédio sofrido. É de extrema importância publicizar esse movimento, para que as pessoas internalizem que, apesar da festa, apesar da brincadeira, limites e regras sociais precisam ser cumpridos. Respeitar os limites do outro é fundamental”, ressalta a psicóloga e sexóloga Bruna Coelho, especialista em relacionamentos.
Riscos
Ela também alerta para o fato de que, no Carnaval, “é comum as pessoas se envolverem em sexo casual”, o que tende a aumentar a exposição às Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), justamente pela falta de proteção que os “excessos no consumo de álcool e drogas, com a premissa de viver aquele instante sem racionalizar as consequências”, ocasionam. Para evitar esse comportamento de risco, a dica é antiga e ainda funciona: uso de preservativo e cuidados com o próprio corpo.
Outro ponto de atenção é para as desilusões emocionais que “o tal amor de verão, amor de Carnaval” tem potencial de gerar. “Relacionamento casual pode ser prazeroso e agradável, desde que as duas pessoas tenham ciência do que se trata e que os objetivos estejam alinhados. Leveza, liberdade e menos obrigações são algumas vantagens. Mas o fato de ser casual não impede que você se envolva emocionalmente e nutra sentimentos por aquela pessoa. Alguns se sentem inseguros com a indefinição. Sugiro manter a conversa em dia, pois o cenário pode mudar. Se as pessoas respeitam a si e aos limites do outro, sexo casual pode ser bem agradável e possível”, observa Bruna.
Avanços e processos
Nos últimos anos, o mundo se viu diante de algo que era inimaginável até outro dia. A pandemia de Covid-19 obrigou as pessoas a ficarem em casa e alterou o modo de se relacionar com o outro, com o uso de máscaras e a corrida por uma vacina que detivesse a expansão do vírus. A sexóloga e psicóloga Bruna Coelho, especialista em relacionamentos, traça um paralelo entre esse fato histórico e as guerras para analisar a relação das pessoas sob uma perspectiva sexual.
“Estamos em meio a um momento único de revolução sexual. A dinâmica das relações está sendo questionada, as pessoas estão com mais acesso à informação e mais abertas para inserir novos elementos em suas relações. O pós-pandemia, assim como o pós-guerra, tende a ser marcado por um ‘boom’ sexual, que representa a externalização do prazer”, sublinha.
No entanto, apesar de uma “maior abertura para falar sobre sexualidade”, Bruna pondera que “isso não significa necessariamente um avanço, pois aspectos básicos de autoconhecimento sobre o corpo, autocuidado e saúde sexual ainda são desconhecidos”. “Mais informação disponível não significa conhecimento absorvido. Precisamos avançar muito sobre educação sexual nas escolas, planejamento familiar e oficinas instrutivas para que as pessoas iniciem sua vida sexual conscientes e façam escolhas que levem em conta sua dignidade pessoal, seus limites, para que a jornada da sexualidade seja permeada por escolhas autênticas, e não por imperativos sociais”, finaliza.