Por que lidamos tão mal com a finitude, sendo que é a única certeza? Você já respondeu. Porque é uma certeza. Porque é inevitável. Isso nos incomoda, nos assusta e nos aterroriza. Se a morte fosse uma incerteza, não precisaríamos nos preocupar com ela, apenas ignorá-la. E é o que, de certo modo, acontece. Temos a possibilidade de morte apenas depois dos 60, 70 anos de vida. Até mais. Então, até lá, vamos viver. Só que a pandemia eliminou essa distância. A morte, na pandemia, se deu ao luxo de entrar por qualquer porta. Aí, sim, a finitude passou para outro patamar de preocupação: o de angústia. É só ver o comportamento das pessoas diante da possibilidade real de morte (o vírus é real) e como a vacina desceu do céu como um “deus ex machina”. Nós somos impermanentes e temos extrema dificuldade de aceitar isso.
Como o senhor trabalhou o luto em seu romance? Apenas como uma manifestação de amor, já que entendo que não há luto sem amor. E o desdobramento desse luto, que é o desejo de morte (pulsão), apenas vem reforçar o dilema (conflito) entre viver (sem a amada) e morrer (pela amada). Esse conflito impulsiona a narrativa e me dá a oportunidade de falar sobre tudo, inclusive na crença do protagonista no amor eterno. Ora, se ele acredita na vida eterna (espiritualidade), se existe a vida eterna, então existe o amor eterno! Só que, para essa crença se consumar, é necessário que ele morra. Em suma, mesmo que eu não tenha tido consciência, a pulsão de morte acompanha, sim, a narrativa. E é plausível também dizer que o desejo de viver (do personagem) é mais forte. E que esse jogo de ir ao encontro da morte, simbolizando ir ao encontro da amada, é apenas uma forma de o protagonista lidar com as dores que atravessam sua alma e com as dores universais geradas pela pandemia, que entram em sua casa por meio dos noticiários de televisão.
O livro se alicerça na ideia de que o amor é o único bem que nos sustenta. Há vários tipos de amor. Falo, no primeiro plano, do amor de um casal. Falo do companheirismo, falo da espiritualidade que alimenta esse amor, falo do que é construir uma relação saudável, na medida do possível. Afinal, amar é fácil, no sentido de que todos nós temos essa possibilidade. É um sentimento disponível, como tantos outros, e podemos amar independentemente do que somos, altos ou baixos, egoístas ou altruístas, tímidos ou expansivos. Mas, do que eu falo mesmo, e aqui eu estendo esse amor para outras esferas, é da capacidade de amar. Portanto, amar é a forma mais segura de não sermos enganados, por nós mesmos, pelos outros e por ideias passageiras. Após a destruição, o amor nos possibilitará o recomeço.
Como psicólogo e dramaturgo, Deus e a espiritualidade têm lugar em sua visão de mundo? E que peso eles têm? Tudo o que escrevo começa no ser humano e nele termina. Tanto meu teatro quanto minhas narrativas em prosa são realistas. Trabalho ações e reações humanas. E o ser humano é uma entidade essencialmente espiritual. E nessa espiritualidade está uma divindade (Deus) gerada por uma individualidade espiritual que vai se tornando coletiva. É assim que nascem as religiões. Vejo Deus não como uma entidade tratada socialmente, que é quando princípios, crenças, valores e filosofias são condensados em uma divindade que representa os anseios espirituais de uma multidão. Acredito mais no Deus individual, assentado numa espiritualidade pessoal em desenvolvimento. Mas entendo que essa possibilidade é mínima e rara. E até egoísta. A ideia de Deus e a fé na sua existência consagram o crente gregário. Portanto, a espiritualidade é a forma mais saudável de unir as pessoas. A partir do encontro, Deus vai existir em intensidades diferentes, respeitando a intensidade de cada um.
Que mensagem o senhor quis deixar com esse livro? A sociedade é bombardeada, a todo momento, por pequenos e grandes cataclismos sociais ou naturais. É só analisar a história da humanidade. Guerras, genocídios, crises financeiras, ideologias nocivas, e por aí vai. Tudo é construído, destruído e reconstruído. O que permanece? Os princípios. Aquilo que é inerente ao homem. Aquilo que é necessário para sua sobrevivência emocional. Para sua segurança espiritual. E é tão inerente ao humano, que até a cultura, que é um fator de formação de pensamentos e costumes, tem pouca relevância na manutenção da essência humana. Falo da origem do homem como um ser acabado, já construído, portanto, após o desaparecimento da última catástrofe (pandemias, ideologias, inundações, terremotos), restará tão somente ele, o homem. Tudo aquilo que momentaneamente o ameaçou, o quis destruir, desfigurar e violentar, desaparece. Em suma, esta é a mensagem. O único escudo que nos protege é o amor, imagem da nossa essência. É ele que nos levará ilesos para a outra margem.
O senhor acredita que o distanciamento social gerou que tipo de sentimentos nas pessoas? A solidão é o efeito mais positivo ou o mais negativo da pandemia. O maior efeito poderia ser o medo da morte, mas o medo da morte já é inerente a nós, é um sentimento que nos habita e que foi apenas exacerbado com a possibilidade da infecção pela Covid-19. Quanto à solidão, ela trouxe os mais variados tipos de sentimentos. E nos fez acreditar o quanto somos impotentes. Entendo que os efeitos do isolamento foram os mais variados possíveis. Há pessoas que adoraram ficar a sós. Pararam, se reorganizaram, apenas ninguém esperava que a pandemia fosse durar tanto tempo. Aí veio a impaciência. Portanto, entendo que foi uma vantagem para alguns, para os que adoram ler, por exemplo, para os que já são naturalmente solitários, e uma desvantagem para os inquietos e os aventureiros, ou simplesmente os que não suportam a si mesmos. Entendo que o fator mais devastador no isolamento foram as relações humanas. Aproximou casais, pais e filhos, ou gerou o contato insuportável. Não podemos esquecer que em plena pandemia já existia outro fator de desagregação, que é a polarização política. Inclusive, cuido de tratar dessa questão pelas ações do protagonista, quando ele diz que, após a destruição, o que nos restará é tão somente o amor. Entendo que a palavra “amor” aplicada aqui é ampla, trata-se da civilidade, de atitudes empáticas e compassivas que estruturam as boas relações, as relações cordiais e duradouras. Nesse sentido, a pandemia deixará pequenas sequelas (sentimentos), mas nada que, tanto do ponto de vista positivo quanto do negativo, vá alterar o trem de vida das pessoas daqui para diante. Somos seres humanos milenares, vindo das cavernas, já passamos por muitas e muitas hecatombes, a pandemia é apenas mais uma, e acredito que nem sequer arranhará a índole (má ou boa) e a essência humana. Tudo continuará como antes.
A morte passou a rondar nosso cotidiano. Tivemos que lidar com o luto coletivo e a possibilidade de uma morte anunciada, mas não desejada. Em seu livro, o protagonista tem pulsão de morte. Qual sua percepção sobre isso? Tudo parece acontecer ao mesmo tempo quando se trata de processo criativo. Se estamos rodeados de notícias que falam de morte, incertezas e medos, e eu também tenho que falar disso, então tenho que inserir, como enredo, uma história que esteja em sintonia com o momento que nos cerca, principalmente quando pensamos nos primeiros meses de pandemia, quando nem sequer tínhamos uma garantia de vida, que é o que temos hoje, a vacina. Eu me inspirei nos meus avós maternos. Minha avó morreu de repente, em 25 de outubro de 1965, e tenho a imagem marcante do meu avô sentado à beira da cama, chorando. Chorava todos os dias. Três meses depois (12 de fevereiro de 1966), ele morreu. De repente, de infarto. Eis uma história real para ser encaixada na pandemia. Só que eu trago o amor como contraponto às tristezas e às dores causadas pelas mortes. Utilizei a estratégia de inserir esse amor dentro do luto. Digo que, no processo criativo, não cheguei a pensar no desejo de morte (do protagonista) como uma pulsão. Entendo que há momentos em nossas vidas que pensamos na morte como uma possibilidade. Diria que a pulsão de vida e a pulsão de morte nascem com a gente. O luto apenas fez com que o personagem passasse a alimentar, com mais intensidade, esse desejo (de morte) que faz parte de nós. Nesse sentido, acredito que podemos falar, sim, de pulsão. No entanto, entendo que o personagem não é destrutivo nem autodestrutivo, nem do ponto de vista sexual.
Lançamento
“O Voo da Pipa”
Roberto Gerin
Editora Um livro
230 páginas
R$ 38,90