A última conversa que a técnica de enfermagem Eliane Teodoro, 40, teve com o companheiro foi há um mês, minutos antes de ele ser intubado devido a complicações do novo coronavírus. “Ele me ligou e falou que estava muito cansado, que me amava muito, mas estava indo para a UTI. Pediu que eu ficasse calma, porque quando ele saísse a gente ia se casar. Ele perguntou também se eu levei o carro no mecânico, porque ele ia querer aprender a dirigir assim que tivesse alta. Acredita que ele mesmo internado encomendou uma aliança?”, conta. 

Bruno Henrique de Souza morreu nesta segunda-feira (17), após 37 dias internado. O técnico de enfermagem tinha apenas 35 anos, deixou uma filha de 4 anos, um enteado de 14 e vários planos. “Como ter uma vida normal depois que a pessoa com quem eu planejava ter mais filhos saiu um dia e não voltou? E o sonho dele de conhecer a praia que eu não pude realizar com ele? Ele tinha dois empregos, porque não queria nos deixar desamparado”, relata, emocionada. 

A dor da técnica de enfermagem se junta à de inúmeras outras famílias ao redor do mundo, que têm sido forçadas a realizar velórios e enterros sem abraços. No Brasil, pelo menos 108 mil pessoas já morreram por conta da Covid-19. São mais de 100 mil vidas a menos, que refletem no vazio da mesa durante o almoço de domingo ou na falta de um telefonema para contar como foi o dia. 

Segundo especialistas, com o avanço da pandemia e com a impossibilidade de dizer adeus, é possível que iremos viver grandes mudanças sociais ao longo dos próximos anos. Psicólogos, psicanalistas e médicos concordam que ainda é cedo para dizer as consequências de um luto invisível, mas todos são unânimes em dizer que é preciso prestar atenção a uma sociedade que viverá com o constante receio da morte. O medo, nesses casos, pode ser transformar em apatia ou desespero.

Acostumada a atender sobreviventes e familiares de vítimas de tragédias, como da Boate Kiss e de Brumadinho, além de ter atuado no desastre aéreo que matou os jogadores da Chapecoense, a psicóloga especialista em emergências e desastres, Melissa Couto, diz que é possível que a incerteza se transforme em um luto coletivo. “Não sabemos quanto tempo isso vai durar. Nas grandes tragédias, eu sabia quantas pessoas tinham morrido, de quantas famílias enlutadas estávamos falando, a gente sabia a causa e a consequência das mortes. Já para o coronavírus a gente não sabe o rescaldo disso”, ressalta.

“O luto não é um processo linear de início, meio e fim, ele nunca acaba, a gente que vai ressignificando. Por isso, o momento em que estamos vivendo é fundamental para compreendermos a importância da saúde mental e o que ela pode provocar quando não bem tratada”, completa.

Novos significados
Para muitos é só durante o luto que o significado da fragilidade e da finitude da vida vem à tona. Exemplo disso é que para mais de 76% dos brasileiros falar sobre morte ainda é um tabu. Segundo uma pesquisa realizada pelo Sindicato dos Cemitérios e Crematórios Particulares do Brasil (Sincep), os brasileiros costumam associar a morte a sentimentos ruins, como tristeza (63%), dor (55%), saudade (55%), sofrimento (51%) e medo (44%). 

Mas a morte, segundo a especialista em luto e cuidados paliativos Luciana Carvalho Rocha, tem o poder de mudar o mundo em que vivemos. “Quando a gente fala sobre morte, estamos falando sobre vida, porque, ao negar ou não falar sobre isso, a gente está negando o presente, adiando projetos e sonhos por achar que ainda vai ter muito tempo. Entender uma perda é entender também que é necessário viver o agora e dar valor a isso”, avalia a psicóloga. 

“A morte deveria ser um assunto tão natural que poderia até ser conversado em um jantar”, sugere a especialista. Apesar de causar certa estranheza, a iniciativa existe, se chama Vamos Jantar e Falar sobre Morte?, está presente em mais 30 países e já teve mais de 150 mil edições ao redor do mundo. A responsável pelos trabalhos em Belo Horizonte é a psicóloga. Antes da pandemia do novo coronavírus, as vagas para os quatro jantares realizados na capital haviam se esgotado.

“É um bate-papo em que conversamos sobre a morte enquanto comemos e bebemos. A medida em que aceitamos a finitude da vida, podemos nos preparar para a nossa própria morte e para a partida de nossos entes queridos com mais tranquilidade”, explica a especialista. 

A ‘morte’ dos rituais
A pandemia da Covid-19 trouxe mais dificuldades a um momento que nunca foi fácil. O luto que estávamos acostumados até então a viver com uma série de rituais, como velório, enterro, ou evento religioso, como as missas ou os cultos, já não existem mais – não dá forma como conhecíamos. Apesar da impossibilidade da despedida, não lembrar das coisas boas que a pessoa fez em vida, das histórias e dos abraços – tudo isso faz muita falta, segundo os especialistas. É preciso encarar e viver o luto. 

Para amenizar essa dor, o projeto Santinho, liderado pelas psicanalistas Marília Velano e Erica Azambuja, tem proposto a criação de um memorial virtual para lembrar as vítimas do novo coronavírus. “A pessoa pode escolher uma foto, um objeto, e nós a ajudamos a escrever um texto. A ideia é funcionar como um santinho virtual mesmo, e as pessoas compartilham nas redes sociais. É um trabalho voluntário, sem nenhum custo, mas tem um valor de direito inestimável, que é a memória”, explica Marília. 

Segundo a psicanalista, também é oferecida a oportunidade ao parente de organizar uma reunião virtual com parentes e amigos, via aplicativos como o Zoom. “Despedir-se é um remédio para a alma ante a limitação da vida. Começamos com esse projeto em abril, mas ele se estende para além das vítimas de Covid, é para todos. A gente acredita muito no potencial desses ritos”. 

A mestre em neurociência e professora do Departamento de Psicologia da PUC Minas, Amanda Margarida de Oliveira, concorda. “Estamos em uma sociedade que demoniza a vivência emocional, então falar de morte e se colocar ante a vulnerabilidade é aprender que não temos controles e respostas para tudo. Ninguém quer sofrer, mas é preciso viver essa dor do luto de forma respeitosa até para encarar essa realidade. Não viver isso é não elaborar essa ausência”, pontua.