Não é propriamente uma novidade que notícias trágicas, às vezes com um quê de sensacionalismo na narrativa, costumam ter grande audiência – ou engajamento, como se diz nos tempos atuais. Não por outro motivo, ainda hoje elas são base do modelo de negócios de muitos tabloides e de programas de rádio e de televisão. Com o advento das redes sociais, ficou ainda mais fácil esbarrar com histórias catastróficas, já que costumam ser bastante compartilhadas. Basta uma rápida espiada para se deparar – e se chocar – com detalhes sobre casos de feminicídios, cenas de guerras, demonstrações de intolerância religiosa, racismo, acidentes de trânsito, assaltos à mão armada, desastres naturais e pancadarias, inclusive na arena política.

Curiosamente, por mais que a exposição a tanta tragédia gere desconforto e mal-estar, muitos não só não conseguem parar de acessar esse tipo de conteúdo, como ainda procuram ativamente por ele no espaço de busca. O fenômeno vem tendo tamanho impulso que até um termo em inglês para designar o comportamento passou a ser incorporado por aqui: o “doomscrolling”, verbete definido pelo dicionário Merriam-Webster como “tendência a continuar navegando ou percorrendo notícias ruins, mesmo que elas sejam tristes, desanimadoras ou deprimentes”.

Mas como explicar uma atitude que, em um primeiro momento, chega a parecer paradoxal, já que essas histórias geram angústia? Na avaliação da psicóloga Adriane Pedrosa, da Cetus Oncologia, o interesse pelo trágico pode ter sido herdado de nossos ancestrais. “É uma inquietação que remete aos nossos antepassados, já que, para sobreviver às adversidades, era preciso ficar constantemente sobressaltado e atento a possíveis predadores. Por mais que o contexto atual seja muito diferente, ainda carregamos essa herança de valorização daquilo que pode soar como um alerta de perigo”, argumenta.

A psicanalista Cinthia Demaria adiciona outras hipóteses. “Um tema que tenho estudado bastante é a clínica dos excessos na contemporaneidade, fenômeno derivado do discurso capitalista que oferta o excesso como forma de lidar com nossas faltas. Nessa sociedade marcada especialmente pelas imagens, podemos tratar a busca por esses conteúdos como objetos que participam dessa dinâmica”, examina.

Ela cita a noção de sublimação formulada pelo “pai da psicanálise” Sigmund Freud, segundo a qual buscamos sublimar os nossos desejos quando não podemos realizá-los. “Nesse caso, aquela pulsão pela agressividade vai ser aliviada por meio da sublimação. Ou seja, não posso praticar o ato, então, vou atrás de materiais que, de certa maneira, me ajudam a conviver com isso”, explana. 

A psicanalista acrescenta que, nas práticas contemporâneas, “não damos um tratamento para esse gozo a partir da pulsão de morte porque a pessoa pode simplesmente ter prazer com o próprio sintoma, nesse caso, com as imagens de tragédias – e isso parece mais fácil do que se ver com o problema (real)”.
 
Cinthia estabelece um paralelo entre esse comportamento e outros quadros relativamente comuns, caso da pessoa que compra exageradamente sempre que precisa lidar com alguma frustração, com alguma tristeza. “Assim como aquela pessoa que come desmesuradamente sempre que está em sofrimento, quem tem o hábito de ler e ver tragédias sistematicamente tem a ilusão de que essa prática é uma válvula de escape, que essa atitude de obter prazer por meio de uma compulsão vai tamponar uma falta sem que seja necessário se ver (no sentido de enfrentamento) com ela”, sinaliza.

A especialista enfatiza que o “doomscrolling” não deve ser interpretado como uma simples e inofensiva forma de se informar, e tampouco, de se entreter. “Precisamos nos lembrar que o gozo pelo excesso caminha invariavelmente em direção ao mal-estar”, alerta Cinthia Demaria. Significa dizer, prossegue, que a pessoa pode até consumir conteúdos desse tipo para mascarar uma falta, mas a lacuna permanecerá lá. “E, na prática, por mais que pareça tudo bem, a verdade é que ela (pessoa) ainda terá que se ver com os outros e com suas perdas”, adverte.

Consequências 

Para Adriane Pedrosa, o consumo desenfreado de conteúdos trágicos, que comunicam sentimentos de tristeza, angústia e revolta, tende a desencadear uma série de distúrbios, sejam eles de ordem emocional, física ou mesmo social. “Para começar, podemos pensar em como essa situação pode disparar a ansiedade e o estresse, que, por sua vez, vão gerar uma série de sintomas, como irritabilidade, insônia, dores de cabeça e problemas gastrointestinais”, cita.

Além disso, ela comenta que o contato constante com notícias de tragédias e violências pode levar a uma mitigação da sensibilidade. “A pessoa começa a se familiarizar com tais situações e, então, deixa de perceber quando ela própria age agressivamente, por exemplo. Com isso, pode acabar sendo evitada nos círculos sociais ou mesmo entrar em uma espiral de radicalização”, avalia.

Outro dano é associado ao aumento da sensação de insegurança. “Com o tempo, o indivíduo passa a agir como se estivesse na iminência do perigo, evitando vivenciar qualquer tipo de situação que o remeta a algum tipo de ameaça, mesmo que seja algo distante dele”, diz, complementando que, por isso, é provável que laços sociais, afetivos e de trabalho fiquem prejudicados, uma vez que existe a tendência de a pessoa simplesmente evitar sair de casa por medo de situações imaginárias.

Tratamento. Tanto Cinthia Demaria quanto Adriane Pedrosa indicam que, diante da constatação de estar reproduzindo o doomscrolling, é importante empreender um esforço para não ceder à compulsão, tentando mudar de foco. Se a tarefa parece muito complicada, é aconselhável buscar ajuda profissional.