Manifestações

Black Blocs: relembre tática violenta que marcou as Jornadas de Junho em 2013

Ações de violência e depredação do patrimônio nas manifestações daquele ano culminaram em repulsa da sociedade, deram origem à lei anti-terrorismo e viraram objeto de estudo

Por Da Redação
Publicado em 11 de junho de 2023 | 08:00
 
 
Black Blocs foram muito atuantes durante protestos das jornadas de junho de 2013 Foto: Mariella Guimarães/O Tempo

Não é um grupo fechado e não há líder. Ninguém sabe como eles surgem exatamente, nem por que desaparecem. Ninguém sabe quem são. Caracterizar os adeptos da tática black bloc (do Inglês, bloco negro, em tradução livre) é tarefa difícil até para os pesquisadores da área. Com os primeiros atos registrados no final do século XX, o fenômeno se popularizou no Brasil após as Jornadas de Junho, em 2013 - manifestações que completam 10 anos neste mês.

Insatisfeitos com diversas questões no governo, jovens foram às ruas em 2013 pedir mudanças. As pautas eram plurais e traziam diversas bandeiras e questionamentos. As primeiras delas se iniciaram em São Paulo, após o aumento da passagem dos ônibus coletivos na capital. A insatisfação se juntou a outras demandas da sociedade e culminou em atos por todo o Brasil. E, dentro desses atos, lá estavam eles, considerados “infiltrados”. Vestidos de preto e com o rosto coberto, os black blocs, que aos poucos tomaram forma, traziam junto de suas bandeiras uma maneira controversa e questionável de se comunicar: usando a violência e a depredação do patrimônio público e privado.

Quebradeira

As primeiras lembranças na memória de quem estava nos atos em 2013 são os tapumes, protegendo as vidraças das agências bancárias e lojas em Belo Horizonte. Isso porque, no fim das caminhadas, que no geral se iniciavam pacíficas, acontecia a ação dos black blocs. Um dos momentos mais lembrados na capital mineira foi a caminhada, em 22 de junho, com cerca de 60.000 pessoas, que começou na região Central e terminaria nos arredores do estádio Mineirão, na região da Pampulha. Terminaria, pois não chegou. Ainda na avenida Antônio Carlos, a Polícia já aguardava os manifestantes.

Mariela Guimarães, fotógrafa e editora adjunta de fotografia de O TEMPO, estava lá, na época, trabalhando na cobertura da manifestação. “A primeira sensação que tive foi boa, apesar de estar trabalhando, me senti parte daquilo. Estava todo mundo feliz. Aí, a gente foi chegando perto do Mineirão e tinha muita polícia no caminho. Eles fizeram uma barricada, não deixaram os manifestantes passar, alguns passaram, e aí foi um caos, muita bala de borracha, muita bomba, todo mundo correndo. A partir desse momento a coisa desandou”, lembra. “Eu vi de tudo, vi pessoas quebrando bancos, quebrando concessionária, jogando pedra nas pessoas, violência não só policial como também violência entre os manifestantes”, relata.

Naquele dia, além das fachadas de vidro de concessionárias e agências bancárias, uma faculdade também foi atingida. O resultado da confusão foi um traço de destruição na avenida, muito spray de pimenta, gás lacrimogêneo e bala de borracha, 12 pessoas feridas e 22 presas. Nesse mesmo dia, um jovem, que ajudava pessoas no local, morreu após tentar pular de uma pista para outra no viaduto José Alencar e cair na avenida Antônio Carlos. Mariela também presenciou o momento: “ele não viu que tinha um vão, lembro das pessoas indo socorrê-lo”, conta.

João Godinho, também fotógrafo de O TEMPO, lembra de acompanhar um grupo de manifestantes que saiu do Mineirão sentido praça Sete. Ao chegar no centro, ele foi avisado por um policial militar que “a turma de bem foi embora, agora ficaram os do mal”. Percebendo que daria confusão, João deixou o equipamento no carro do jornal e tentou contato com outros membros da equipe, que aguardavam a manifestação e acabaram ficando presos em uma lanchonete, onde pessoas armadas com ferros tentavam arrombar. “Eu procurei a polícia para avisar o que estava acontecendo com meus colegas”, lembra. Felizmente, todos saíram bem.

Mas o que ninguém escapou foi da atmosfera impregnada de spray de pimenta e gás lacrimogêneo, resultado dos confrontos com a polícia. “A gente tinha táticas, saía de casa sempre com um vidrinho de vinagre (para molhar um pano e proteger boca e nariz do gás), um vidro de leite de magnésio para o olho, máscara, capacete. A gente fez curso com a polícia sobre como proceder em situações de risco em manifestações”, conta Mariela. Naquela ocasião, nas primeiras passeatas, as ações de violência ainda não eram nomeadas, mas os black blocs já estavam presentes. Aos poucos, e no decorrer de novas manifestações, começou-se a diferenciar o manifestante “de bem” daqueles que buscavam o caos.

A tática

A ação dos black blocs tomou as páginas dos principais jornais do país e chamou atenção da jornalista Raquel Dornelas. Sob o olhar de Raquel, os black blocs foram destrinchados e analisados a fundo numa dissertação de mestrado intitulada “Com ou sem vandalismo? Black bloc, acontecimento e disputa de sentido” e publicada em 2015. “Ao começar a pesquisa, a gente entende que não é um grupo, é uma tática. São pessoas que se apoderam, se apropriam de um mecanismo de protesto, e se utilizam de um instrumento e forma de expressão muito controversos”, explica a pesquisadora.

A primeira menção ao termo black bloc tem registro na década de 80, na Alemanha (Schwarzer Block, bloco negro em alemão), e era usado para identificar os grupos de militantes que vestiam preto e cobriam os rostos durante manifestações. Eles eram considerados anarquistas (autonomistas), lutavam contra a violência policial e contra a construção de usinas nucleares. Há registros de atuação de black blocs na década de 90, nos Estados Unidos, e até mesmo no Brasil, na mesma época. Mas somente em 2013, a tática se popularizou no país.

Embora existam características e ideais parecidos entre os adeptos, durante sua pesquisa, Raquel percebeu que era muito difícil traduzir os black blocs, assim como também era difícil encontrar alguém que assumisse ser do movimento. “Não existem ‘os’ black blocs, existem pessoas que utilizam essa tática, porque eles não se organizam em grupo, são sujeitos distintos, muitas vezes um nem conhece o outro”, define. “A gente tinha um momento com múltiplas insatisfações e os indivíduos que simpatizavam com a tática viram a oportunidade de manifestá-las. Às vezes, eram pessoas que nunca participaram de algo assim”, explica.

A jornalista explica ainda que eles têm uma raiz em comum, geralmente vinda de extremistas e do anarquismo, mas são plurais. “Existem pessoas que não têm nenhuma conotação política e fazem parte da tática, pessoas  extremistas, anarquistas, movimentos que pedem sociedade mais horizontal, os ancap, os contra globalização”, enumera. “Essas pessoas expressam suas manifestações atacando símbolos, principalmente do capitalismo, como foi o caso das agências bancárias e das concessionárias”, comenta.

Frágil e controverso

As ações, no entanto, não são (ou pelo menos não parecem ser) orquestradas. Como no black bloc não há grupo definido, também não há líder. “Como é uma manifestação livre, não tem um direcionamento, a ideologia encontra pouca materialização na prática, isso é uma fragilidade dessa tática”, critica Raquel. Segundo a pesquisadora, a mensagem que os adeptos da tática queriam passar era um ataque às violências veladas, que não são vistas a olho nu. Violências ligadas ao capitalismo e à desigualdade social. Os índices de fome no país, por exemplo, são vistos por muitos como uma forma violência do sistema capitalista.

Para o black bloc, conforme mensagens que eles mesmos passaram na época, a depredação de uma vidraça causaria um impacto muito menor do que a violência “invisível” contra grupos à margem da sociedade. Ou seja, utilizava-se de uma ação visível para chamar atenção de uma ação que não é perceptível ao olhar. Mas, para Raquel, essa mensagem não é lida pela sociedade. “É uma tática extremamente mal vista, ligada à depredação. A manifestação não foi entendida pela sociedade, eles usaram linguagens diferentes, e a sociedade entende aqueles atos como violência pura. A tática não conseguiu passar seu recado”, diz. 

Eles não sumiram após 2013

Em 2016, a tática black bloc tomou corpo novamente durante as manifestações contra o então presidente do Brasil Michel Temer. Mas não ganhou tanto espaço. A utilização da tática nessa época é objeto de estudo de Jhenifer Gonçalves, de 23 anos, aluna da faculdade de Comunicação Social da Universidade Federal de Uberlândia. O trabalho de conclusão de curso de Jhenifer analisa as reportagens sobre os black blocs na época, um momento em que a tática já não trazia tantos adeptos e tinha um volume muito menor que em 2013.

Mas ainda assim, “a gente percebe que em 2016 há uma continuidade do que começou em 2013”, afirma a estudante. A diferença entre esses anos, apontada em algumas análises sobre o assunto, estava não apenas no volume de pessoas, mas também na idade. Analistas do tema afirmam que, em 2016, a presença nas ruas era de pessoas muito mais jovens que em 2013.

Além das reportagens, Jhenifer usou também, como base para estudo, o livro “Mascarados: A verdadeira história dos adeptos da tática Black Bloc”, da doutora em Ciências Sociais Esther Solano, que foi às ruas durante os protestos, lá em 2013, para entender melhor sobre essas pessoas.

Com o material de Esther, Jhenifer identificou nos black blocs mais uma característica. “A maioria sabe onde isso vai dar, eles sabem que correm risco de serem presos, de apanhar, mas naquele momento encontram um propósito, é uma tática muito provocativa”, define. “Eles te provocam uma reação e acho que esse é o objetivo. Eles não se importam se o próprio corpo vai ser machucado naquele momento, eles não ligam”, conclui.

O que aconteceu depois?

Mais fracos e em menor quantidade, os adeptos da tática foram “sumindo”. Após as manifestações, diversas pessoas foram presas acusadas de serem black blocs. As manifestações em 2016 podem ter sido o registro mais recente de que se tem notícia dessas pessoas. Em janeiro deste ano, após a invasão do Congresso Nacional por manifestantes, falou-se sobre uma semelhança entre atos, mas a tática black bloc, com todas as características que carrega, não foi identificada.

Apesar do “sumiço” após 2013 e 2016, a tática provocou mudanças na sociedade. Consequência dos atos, foi publicada em março de 2016 a lei anti-terrorismo (Lei Nº 13.260/2016). No texto, a norma define como atos de terrotismo “usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos, químicos, nucleares ou outros meios capazes de causar danos ou promover destruição em massa”. Em 2013, diversas pessoas foram presas portando substâncias utilizadas para fabricação de coquetéis molotov, que têm potencial de explosão.

Ninguém sabe quando aparecerão novamente. Ninguém sabe qual circunstância será o estopim para que a tática ganhe força mais uma vez no Brasil. O que se sabe é que o rastro de destruição deixado ao fim de cada manifestação jamais será apagado da memória de quem viveu aqueles momentos. Com propósitos ou não, os adeptos ao black bloc deixaram uma marca nos manifestos.