"Na porta já sentimos um cheiro de alguma coisa em estado de decomposição. Horrível, horrível". Assim a advogada Andrezza Araújo, que defende Katia Cristina, de 30 anos, mãe das crianças resgatadas desnutridas e trancadas em um apartamento o bairro Lagoinha, na região Noroeste de Belo Horizonte, descreve o odor sentido na tarde da última segunda-feira (27 de fevereiro) em frente ao lote onde a família teria sido mantida a força em São Joaquim de Bicas, na região metropolitana da capital.
"Os vizinhos falaram que não sabem o que fazer, já acionaram a polícia e não adiantou. Eles não conseguem comer, não conseguem dormir com aquele cheiro de carniça. Nós inclusive voltamos à delegacia e falamos do cheiro", detalha a advogada.
Além de alertar pessoalmente ao delegado responsável pela investigação para o problema, Andrezza e o advogado Greg Andrade, que também atua no caso, entraram com uma petição na Delegacia pedindo que sejam realizadas buscas no local.
"Tendo em vista que é um lugar que já aconteceu vários crimes, acho que já deveria ter sido averiguado. Não é uma casa comum, é uma casa onde já aconteceu um homicídio, sem falar nos relatos de uma pessoa que está desaparecida", disse Andrezza lembrando do filho de 4 anos de Katia, que morreu vítima de agressões, e do marido da mulher e pai das crianças, Wellington Camelo Gomes, de 31 anos, que é procurado pela família há 2 anos.
Na segunda, O TEMPO adiantou, com exclusividade, que a verdadeira avó das crianças foi localizada em Valparaíso do Goiás. A mulher, que não quis ser identificada por medo, garantiu que o filho e a nora "nunca fariam mal" às crianças. Ela também enviou fotos que mostram a família saudável e feliz antes de vir para Minas Gerais.
Diante das informações, a reportagem de O TEMPO entrou em contato com a Polícia Civil para saber se buscas serão realizadas no local. A instituição policial informou, por nota, que só se manifestará após a conclusão do inquérito "considerando a natureza sigilosa" da investigação.
Petição também pede oitivas de outras pessoas
A reportagem teve acesso à petição protocolada pelos advogados de Katia. No documento, a defesa da mãe das crianças pedem que sejam colhidos os depoimentos de diversas pessoas, como: vizinhos da casa onde a família "vivia"; a mãe de Wellington, que mora em Goiás; de vizinhas que resgataram as crianças; filhas da "falsa avó" que abandonou os garotos no apartamento; e a oitiva especializada das crianças, entre outras coisas.
Os advogados também requisitaram que seja feita uma acareação entre Katia e o homem que foi apontado como "namorado" dela e que também estaria preso desde o início do mês pela morte do garoto de 4 anos. A advogada que representou o "casal" inicialmente também aparece entre as pessoas que os advogados pedem que a Polícia Civil ouça.
Além disso, na petição a defesa da mãe das crianças pede ainda que ela passe por exame de corpo de delito e conta que a mulher afirma ter sido atendida na UPA de São Joaquim de Bicas outras vezes. "A defesa pede que seja requisitado o prontuário médico da mesma, e de todos os filhos, bem como as filmagens do circuito interno de TV da unidade de saúde", diz a petição.
Entenda o caso
O resgate
As crianças, de seis e nove anos, foram resgatadas na terça-feira, 21 de fevereiro, trancadas em um apartamento do bairro Lagoinha, na região Noroeste de Belo Horizonte. Segundo a Polícia Militar, elas estavam com sintomas de desnutrição e febre. Elas ficaram trancadas por três dias, sem alimentação.
Conforme informado pela polícia, as vítimas estavam magras, usavam roupas sujas e o ambiente onde elas estavam era escuro e encardido. Após o resgate, as crianças foram encaminhadas para o hospital Odilon Behrens, no bairro São Cristóvão.
A denúncia
A denúncia foi feita por uma vizinha, a vendedora Poliana Pereira dos Santos, de 37 anos. Ela acionou a polícia depois que percebeu que elas estavam sozinhas no apartamento e sem o auxílio de familiares. Ela tentou alimentar as crianças por um buraco na parede do apartamento. A porta da residência onde elas estavam foi trancada com um cadeado e correntes.
O local em que as crianças estavam
Conforme a denunciante, no local em que as crianças estavam, havia uma vasilha de comida com bicho. Em entrevista ao TEMPO, ela descreveu o cenário. "Encontramos muita sujeira, o cheiro era tão forte que, quando os policiais abriram a porta, nem eles aguentaram. A gente se emocionou muito quando vimos os dois, com os bracinhos fininhos, um deles sem conseguir nem falar. Aí começamos a chorar. Aqui tudo sujo, tudo podre, vasilha com bichos, colchão no chão", relatou.
Menino sentiu cheiro de churrasco e pediu comida
Uma das crianças resgatadas pediu um pouco de comida para a vizinha depois que sentiu o cheiro do churrasco que era feito por ela. "Meu sobrinho estava andando de bicicleta aqui e, pelo buraquinho, ele viu e pediu um pouco de comida. Meu sobrinho, que tem mais ou menos a idade dele, veio até mim e contou. Fui até a porta e vi os dois, um deles disse que estava com fome e pediu churrasco para ele e o irmão. Pedi para ele abrir a porta, e ele falou que podia ser por ali mesmo. Falei que a vasilha não cabia no buraco. Ele, então, sugeriu que eu colocasse em uma sacolinha e disse 'eu estou com muita fome, me dá churrasco'", detalhou a vendedora Poliana dos Santos, de 37 anos, responsável por fazer a denúncia para a polícia.
A criança disse para a vendedora que elas estavam acompanhadas da avó. No entanto, o menino voltou a pedir comida durante a noite daquele dia, o que intrigou a vizinha e indicou de que elas estariam sozinhas.
Os responsáveis pelas crianças
A investigação apontou que as crianças são filhas de uma mulher, de 30 anos, que foi presa por maus-tratos a outro filho, morto no último dia 6 de fevereiro. O caso foi registrado em São Joaquim de Bicas, na região metropolitana da capital. De acordo com o boletim de ocorrência, no início do mês, a mulher levou o filho de 4 anos ao médico, mas a criança já estava morta. O menino chegou com lesões no olho, inchaço no pé e queimaduras no tornozelo.
O pai biológico das crianças, segundo a apuração do caso, teria morrido de Covid-19, em 2020. Em depoimento à polícia, uma das vítimas resgatadas no apartamento, na última terça-feira (21), informou que elas haviam vindo de São Joaquim de Bicas, na semana anterior ao resgate, e que a avó teria passado a noite de sábado (18) com elas, mas não retornou.
Em uma carta escrita de dentro do presídio de Vespasiano, Kátia Cristina, de 30 anos, mãe dos dois meninos de 6 e 9 anos que foram resgatados trancados em um apartamento no bairro Lagoinha, na região Noroeste de Belo Horizonte, pediu que o seu irmão, que está na capital mineira, "proteja" os seus filhos. Além dos dois garotos, ela ainda tem duas meninas, de 1 e 2 anos, que estão em um abrigo em São Joaquim de Bicas, na região metropolitana da capital mineira.
No texto, que O TEMPO teve acesso com exclusividade nesta sexta-feira (24), a mulher começa pedindo perdão ao irmão. "Me perdoa por tudo que está acontecendo", escreveu. "Proteja os meninos por favor, se você pode cuidar deles, pois não sei quando sairei daqui", continua Kátia.
O irmão dela está, desde quinta-feira (23), acompanhando os dois garotos no Hospital Odilon Behrens. Eles estão internados no local após serem resgatados com sinais de desnutrição no apartamento, que estava trancado com uma corrente. Os garotos foram localizados após sentirem cheiro de churrasco que era feito na casa vizinha e pedirem um pouco de comida.
Em seguida, Kátia ainda afirma que, se o irmão quiser a guarda dos filhos, "pode pedir que eu assino". A mulher está presa desde o dia 6 de fevereiro, quando levou o filho de 4 anos para uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) já sem vida. Ela estava acompanhada, na ocasião, de um homem de 31 anos que, no dia seguinte, acabou preso sob suspeita de envolvimento no crime.
Advogados acreditam que ela foi vítima de escravidão
Apesar da suspeita de maus-tratos contra o filho de 4 anos que recai sobre Kátia, os advogados acreditam que ela e a família tenham sido vítimas de uma quadrilha que alicia pessoas e as força ao trabalho análogo à escravidão. O garotinho morreu.
Atualizada às 10h44