Fotógrafa de casamentos há dez anos, Ana Paula Aguiar, de 35, desde a infância sofria com uma autoimagem distorcida. Ao se perceber fora dos padrões de beleza estabelecidos socialmente, era comum que reproduzisse práticas gordofóbicas e que recorresse a um humor autodepreciativo para falar de si mesma, disfarçando de bom humor a baixa autoestima. “Nunca havia pensado na possibilidade de ser gorda e ser feliz. Minha única certeza é que tinha que emagrecer. Eu simplesmente não me aceitava com o corpo que tinha, ria das piadinhas e tentava justificativas, como dizer que estava doente e por isso não estava magra”, confessa. O trabalho registrando enlaces amorosos reforçava a sensação de exclusão: “Da minha experiência profissional, era tão incomum fotografar alguma noiva gorda que passava a impressão de que gorda não se casa”.
Sabendo que é vista, entre outros adjetivos pouco lisonjeiros, como alguém com um corpo doente – já que a obesidade é considerada uma doença crônica e classificada, desde o ano 2000, como uma epidemia global pela Organização Mundial da Saúde (OMS) –, Ana Paula considera ser irônico que a magreza tenha sido o sintoma do período em que ela esteve mais doente. “Em toda a minha vida, só não fui gorda por quatro anos, quando fui diagnosticada com anorexia e cheguei a vestir manequim 38. Hoje, visto 60 e até há pouco tempo ainda guardava as calças dessa época: mesmo sabendo que estava doente, era como se aquele fosse o corpo desejável”, revela.
A fotógrafa está longe de ser a única a manifestar esse mal-estar em relação ao próprio corpo, algo comum também entre pessoas magras, mas especialmente agravado em relação àquelas que são gordas. E é em oposição a um padrão de beleza – muitas vezes considerado inalcançável e que também é associado a uma ideia de forma física saudável – que cresce o coro de vozes dissonantes dos que acreditam que esse condicionamento está ligado mais ao adoecimento generalizado do que à saúde.
Na contramão da padronização dos corpos estão os adeptos dos movimentos do body positive e do corpo livre, com os quais Ana Paula hoje se identifica e que defendem que todos os seres humanos devem ter uma imagem corporal positiva e que desafiam as maneiras pelas quais a sociedade apresenta e vê o físico de cada um. E, desde a chegada da pandemia ao país, quando a população passou a ser orientada a, se puder, ficar em casa, ativistas pela liberdade de se ser quem é, independentemente do número que se veste, têm enfrentado dissabores próprios e feito descobertas particulares.
Autoestima demanda cuidado diário
Criador do Rolê de Peso, um coletivo pensado para levar a diversidade dos corpos para as ruas e que neste momento mantém sua atuação em encontros online, o publicitário Marcelo Gomes, de 29 anos, enfrentou altos e baixos na lida com sua autoestima neste período. “Por ficar em casa sem se arrumar tanto, a gente passou por momentos mais difíceis, de se sentir mais triste, mais feio. Mas, com o tempo, tentamos desconstruir isso e passamos a ressignificar algumas coisas”, explica, informando que mantém trocas diárias com outros integrantes do coletivo.
“Meu cabelo está muito grande, meio sem corte, o que incomodava. O que busquei entender foi que está assim por um bem muito maior. Acho que isso, no fim das contas, reforça nossa autoestima, a gente passa a olhar para esses detalhes por outro viés”, analisa.
Quando esbarra, nas redes sociais, com memes e reclamações daqueles que ganharam peso em razão de estarem em quarentena, Gomes não se abala, pelo contrário. “Vivendo o que estamos vivendo, e a maior preocupação de alguém vai ser ter engordado? Só fico triste por esse ser um sinal de que a pessoa está completamente alienada”, pondera. Uma piada com teor afim foi feita pelo empresário e youtuber Felipe Neto, que comparou seu físico antes e depois da quarentena. Questionado por seguidores, o influencer se mostrou disposto a melhor compreender o tema.
Galera, eu quero ler mais e estudar mais sobre gordofobia, quem vcs recomendam q eu acompanhe?
— Felipe Neto 🇧🇷🏴 (@felipeneto) July 1, 2020Gomes também demonstra a inconsistência do discurso de que corpos magros são sinônimo de saúde a partir das experiências observadas enquanto a pandemia alcançava a marca de mais de 65 mil vítimas no país, abertura de academias em diversas cidades, contrariando recomendações sanitárias. “Tivemos provas de que é algo que não se sustenta na prática ao ver pessoas que se dizem muito ligadas a uma ideia de vida saudável e que se expuseram em aglomerações…”, cita.
Ana Paula, por outro lado, diz que a maior dificuldade, não só para ela como também para pessoas do seu ciclo social, é a convivência forçada com a família. “Algumas seguidoras me enviaram mensagens falando de como as mães delas passavam o dia inteiro só falando dos corpos dessas meninas, até o ponto de que elas queriam apenas sair de casa, o que não poderiam fazer por agora”, lamenta.
Ela ainda localiza que o isolamento social já era uma realidade para pessoas gordas maiores. “Muitas de nós já deixaram de sair por não encontrar a roupa adequada e por falta de estrutura dos estabelecimentos. Eu mesma já deixei de frequentar lugares, de ir a bares em Belo Horizonte em que o banheiro, de tão pequeno, não me cabiam”, situa.
O processo de autoaceitação
Os problemas com a autoestima por muito tempo paralisaram Ana Paula. Os olhares na rua, as dificuldades de acessar serviços básicos de saúde ou de transporte são exemplos de uma pressão social que levou a fotógrafa a, mais uma vez, começar a uma dieta perigosa e nada saudável – especialmente para alguém que já havia manifestado um transtorno alimentar. Em pouco tempo, perdeu 20 kg e, animada, criou um perfil no Instagram para compartilhar a “evolução” daquele procedimento. Foi quando, a partir da rede social, começou a descobrir os movimentos de body positive e de corpos livres.
A partir de então, passo a passo, Ana Paula foi fazendo as pazes com o próprio corpo, e o perfil que havia criado na rede social foi deixando de ser sobre dietas milagrosas e nada saudáveis para se tornar um espaço que falava sobre autoestima.
“Não é um processo que tem um ponto final, não existe isso de chegar um dia em que dizemos: ‘Agora nada mais me afeta, estou completamente bem comigo mesma’. Hoje, posso dizer que me vejo feliz em ser quem sou, mas sempre que vem um hater… Óbvio que ler comentários ofensivos machuca, e a verdade é que não sei se tem um ponto em que vou chegar a ficar alheia. Encaro como um processo que acho que nunca termina”, sustenta.
Marcelo Gomes também não conseguia se imaginar feliz em um corpo gordo. “Achava que todos os problemas da minha vida estavam no meu corpo”, lembra. Na adolescência, ele chegou a passar por procedimentos de emagrecimento e, depois de um ano e meio, alcançou o tão desejado corpo ideal. Mas, então, percebeu que os problemas ainda eram os mesmos. “Não estava feliz, não estava realizado”, comenta.
Quando conseguiu virar a chave, notou que precisava exercitar seu corpo não por odiá-lo, mas sim por amor próprio. “A relação agora é muito mais positiva, o que reflete no meu humor e faz que eu seja mais positivo e otimista. Antes, era o contrário: era uma relação de ódio e de abominação, o que também refletia em meu estado de espírito”, examina.
Espaço de militância e representatividade
Tão logo se viram libertos de um olhar preconceituoso para corpos gordos, tanto Gomes quanto Ana Paula passaram a ocupar espaços de defesa da diversidade. Ele criou o citado Rolê de Peso, que permitiu uma conexão mais estreita entre esse grupo de pessoas, e ela, há dois meses, criou o perfil “Vai ter noiva gorda, sim!” (@vaiternoivagorda) no Instagram.
A inquietação de unir militância e trabalho profissional já vinha de tempos. “Cheguei a ficar mais de um ano sem fazer nenhum post na minha conta, sem alimentar portfólio, pois notava que só fotografava um mesmo público: mulheres, brancas, magras e heterossexuais. Eu queria trazer diversidade para a indústria do casamento, que é uma indústria profundamente gordofóbica”, pontua.
O estopim para que, finalmente, fosse criada a conta na rede social foi o relato de sua última cliente, que teve que adiar seu casamento e, então, recebeu um “checklist” de uma empresa recomendando que, já que teria um ano até o evento, “era a hora de buscar nutricionista, dentista, endocrinologista, dermatologista e até um cirurgião plástico, para que se casasse linda”. “Como se ela já não fosse linda como é!”, rebate Ana Paula.
Uma publicação compartilhada por Vai ter Noiva Gorda Sim! (@vaiternoivagorda) em 22 de Jun, 2020 às 9:13 PDT
“E é sempre assim! Um dos comentários que mais se ouve nesse ramo: ‘Vai casar? Então agora você emagrece’. Ou, quando a mulher vai experimentar o vestido e escuta: ‘Vem depois, quando tiver mais perto da data, quando já vai ter perdido uns quilinhos’. Por isso, desde que criei o perfil, recebi muitos relatos de agradecimento de noivas que diziam que não se viam como noivas por estarem gordas ao não se verem representadas pela indústria”, comenta a fotógrafa, que conquistou mais de 2.000 seguidores em menos de 60 dias.
Agora, toda quarta, ela usa o espaço para trazer histórias sobre o que mulheres gordas precisaram atravessar em seus próprios casamentos. “Tem desde a história daquelas que fizeram dietas malucas e passaram mal no dia até daquelas que simplesmente passaram a ignorar esses padrões”, detalha.
Pressão estética e gordofobia
Pesquisadora sobre gordofobia e sobre como se dá a militância por corpos livres dentro das plataformas digitais e da educação, Letícia de Assis situa que é preciso se deter às diferenças sobre como a normatividade operada por meio do imaginário do que são os padrões desejáveis de beleza (e de saúde) afeta diferentes corpos.
Por um lado, a pressão estética é uma sensação que, potencialmente, vai atravessar todas as pessoas – principalmente as mulheres, por terem um “corpo público”, como define a mestranda em educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). “É como se todas e todos tivessem que ter um cabelo ideal e um manequim específico, por exemplo. Isso faz que as meninas cresçam cheias de autoimposições e com uma autoimagem muito distorcida, que crescem sem uma noção de que ser mulher é responder a uma pressão estética de mercado”, sinaliza.
No caso da gordofobia, “a gente fala de questões mais profundas”, avisa a estudiosa. Ela lembra que, para além do fator estético, o peso torna-se fator de exclusão. “Passa a existir, para pessoas gordas, dificuldade de acesso à saúde e à nutrição – com macas que não suportam o peso dessas pessoas, por exemplo. Circular pelas cidades também torna-se difícil, porque as catracas e as poltronas em ônibus, metrôs e aviões podem ser estreitas demais, entre outros dificultadores. Além disso, o atendimento médico se torna complicado, dado que a obesidade é vista como doença, e, por isso, outras queixas acabam sendo negligenciadas nos atendimentos”, explica.
Letícia sublinha que há ainda outras questões intrínsecas à gordofobia, como o estigma social: “Pessoas gordas são relegadas a um recorte social que tem cara de preguiça, de desonestidade, de algo que deve ser combatido e eliminado”, expõe. Sem falar, claro, das implicações psicológicas.
Curiosamente, em 2016, a depressão passou a ser considerada uma doença associada à obesidade e constitui critério de indicação de procedimento bariátrico, conforme publicação feita, no dia 13 de janeiro de 2016, no portal do Conselho Federal de Medicina (CFM) referente à Resolução 2.131/15 do órgão. Por outro lado, e na contramão desse entendimento, um estudo canadense, feito entre 2006 e 2011 e publicado no “Journal of the American Medical Association” (“Jama”), apontou que pessoas que passam por uma cirurgia para redução de peso têm um risco 50% maior do que a média da população de tentar cometer suicídio após a operação.
A construção de um padrão
Letícia de Assis sustenta que os padrões de beleza estão historicamente ligados a uma ideia de poder. “É comum a gente ouvir que, no passado, corpos gordos não eram hostilizados, mas idealizados, representados como ideal de beleza em períodos como a Renascença (um momento histórico e um movimento cultural, intelectual e artístico surgido na Itália, entre os séculos XIV e XVII). O que precisamos entender é que aquelas mulheres eram consideradas bonitas por serem representantes de um estrato social privilegiado”, comenta.
Já o ideal de magreza torna-se mais universal a partir dos anos 60, quando a modelo britânica Lesley Hornby passa a ser considerada a expressão de beleza ideal para mulheres. Conhecida Twiggy (termo em inglês que vem da palavra para “graveto” ou “palito”), ela se tornou um ícone de massa e é vista hoje como a primeira top model.
A fixação pelos corpos magros, pontua Letícia, culmina em desfiles que se estendem entre os anos 90 e o início dos anos 2000 – “quando foram se tornando comuns os relatos de mulheres que desmaiavam nos bastidores, indicando o tratamento desumano por trás daquela indústria”. Uma tendência que foi criticada pela própria Twiggy em 2006, quando, em entrevista ao jornal “Daily Mail”, do Reino Unido, se disse “horrorizada” com o ideal de manequins “tamanho zero”.
“É a partir dos anos 70 que as associações de saúde começam a registrar a ocorrência cada vez mais comum de transtornos alimentares, como a anorexia e a bulimia”, comenta, ponderando que, claro, há outros elementos a se entrecruzar nessa equação – como o fato de que a urbanização desordenada levou a uma desregulação da alimentação, algo que foi acompanhado pela expansão das redes de fast-food.
O Brasil é cada vez mais plus size
Pesquisa de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção de Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), de 2018, indicou que 19,8% da população brasileira tem Índice de Massa Corporal (IMC) acima de 30 kg/m² e é, portanto, obesa. Já 55,7% entraria nas estatísticas do sobrepeso, com entre 25 e 30 kg/m².
Curiosamente, o mesmo levantamento registrou que a prática de atividades físicas no tempo livre cresceu 25,7%, entre 2009 e 2018, e houve queda de 53,4% no consumo de bebidas açucaradas, incluindo refrigerante, entre 2007 e 2018. Além disso, o consumo regular de frutas e hortaliças cresceu 15,5% em dez anos.