Trata-se de um homem comum que, depois de uma consulta com um famoso psicanalista, se vê envolto em bizarros acontecimentos. Imobilizado por um potente sentimento de culpa, ele se ressente e não consegue perdoar nem a si próprio, nem à sua irmã, com quem divide um tumultuado passado que por anos tentou esquecer. Cada vez mais fragilizado, uma chaga se abre em seu peito, mas dela não escorre sangue e, sim, um lodaçal.

Publicado no livro “O Convidado”, o conto “O Lodo”, cuja sinopse é apresentada no parágrafo que abre esta reportagem, é permeado por características do universo fantástico do escritor Murilo Rubião (1916–1991). O texto, aliás, arrebatou o diretor mineiro Helvécio Ratton, que levou a trama para as telonas em um filme homônimo ao conto, lançado em janeiro deste ano, durante a 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes.

A história, na literatura ou no cinema, é também alegórica sobre como a inabilidade de exercer o perdão pode ser um fator a desencadear uma série de transtornos. “Há um lodo que acaba extravasando pelos mamilos e que é quase metafórico, algo que está dentro e emerge”, disse o cineasta formado em psicologia – embora nunca tenha exercido a profissão –, à época da estreia.

O fato de o lodaçal ser expelido do peito é algo especialmente simbólico: há estudos que relacionam o guardar rancor a um maior risco cardiovascular. Caso de uma pesquisa apresentada no ano passado durante o 40º Congresso da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp) e que foi desenvolvida pela psicanalista Suzana Avezum, ligando a dificuldade de perdoar à ocorrência de Infarto Agudo do Miocárdio (IAM).

Ato traz mais qualidade de vida

Os benefícios atrelados ao ato de perdoar são discutidos há milênios. O tema é presente na filosofia e é recorrente nas mais diversas religiões. A partir dos anos 80, com o advento da chamada psicologia positiva, a prática começou a ser estudada também do ponto de vista da saúde integrativa. “Trata-se de uma condição fundamental para que se tenha qualidade de vida”, ratifica a psicóloga e psicanalista Maraísa Abrahão.

Remoer situações do passado ou se acabar em remorso é o equivalente a “jogar a âncora e ficar parado naquele episódio que originou algum sofrimento”, compara. Para escapar dessa paralisia, vale o esforço do desapego: ela avalia que a incapacidade de perdoar vem de uma idealização do outro e de si próprio, de forma que um tipo de perfeição passa a ser exigido. “Precisamos entender que somos todos seres humanos, que somos falíveis”, pontua.

“O perdão é uma escolha minha sobre o que está diante de mim”, aponta a psicóloga clínica Leni de Oliveira. O atual cenário, aliás, é importante para o exercício dessa habilidade. “Na quarentena, quando os conflitos podem aparecer mais recorrentemente devido à inesperada proximidade, esse é um exercício básico”, recomenda.

Maraísa defende que, para desculpar alguém, é importante tomar distância dos acontecimentos. “Assim, conseguimos equacionar melhor o episódio e os sentimentos que foram despertados por ele”, pontua. E ela mesma alerta que, não, a remissão da culpa não é um sinônimo de apagamento daquela história da memória. “Esquecer é amnésia. Perdoar já é lembrar, sim, mas não sofrer. É você colocar essa equação no lugar, entender que todo mundo erra. Levantar-se e fazer o melhor, sem ter que ser perfeito e sem ter que exigir do outro a perfeição”, conclui.

O perdão como uma prática cotidiana

Tanto Maraísa quanto Leni acreditam que é possível exercitar essa habilidade. “É algo que começa olhando para dentro, e não olhando para o outro, não tentando enxergar se o outro merece ou não: o perdão tem a ver consigo mesmo”, diz. Perguntas-chave para desmontar os mecanismos mais ligados ao rancor são: “Por que não peço perdão? Tenho medo de não ser desculpado? Por que não perdoo? Acho que seria preciso esquecer?”, aponta a primeira. “O primeiro passo para o perdão é a aceitação da realidade, de que os humanos são falhos. O segundo é sobre decidir perdoar. A terceira fase é de elaboração dos acontecimentos que causaram mágoa. Por fim, é importante pensar sobre o significado daquele momento, uma oportunidade para aprender com aquela história”, completa a última.

A escritora e life coach Carol Rache tem entendimento semelhante. Para ela, é um erro que, ao pensar no perdão, as pessoas se coloquem “na posição de definir se o outro é merecedor do direito de falhar ou não”. “Além disso, quando entendemos que precisamos perdoar alguém, estamos assumindo que, de alguma forma, fomos vítimas dessa pessoa”, examina. 

Carol acredita tratar-se de uma lógica perigosa, “pois nos distrai da nossa responsabilidade diante do contexto em questão”. “Ao nos fixarmos somente no ponto em que a outra pessoa falhou, reduzimos a nossa participação nas construções de que deram origem ao evento que nos machucou. E, enquanto nos sentimos vítimas, não vamos conseguir atuar como protagonistas da nossa própria história”, diz.

“Talvez seja necessário mais do que perdoar aos outros, mas perdoar a nós mesmos. Nossas sombras nos traem, nossos medos nos levam a fazer escolhas sem calcular riscos e preços. É a nossa condição humana – e, portanto, falha – que nos leva a viver situações que nos machucam e a dar significados puramente negativos ao que nos acontece”, reforça a coach.

Pesquisa relacionou guardar mágoa a risco cardíaco

O estudo conduzido pela psicanalista Suzana Avezum, que relacionou o ressentimento gerado por episódios do passado à ocorrência de Infarto Agudo do Miocárdio (IAM), contou com duas fases.

Em uma delas, a estudiosa aplicou um questionário que versava sobre a capacidade de perdoar a 130 pacientes divididos em dois grupos, sendo possível observar que o primeiro, com pessoas que tinham histórico de IAM, apresentava mais dificuldade em superar mágoas, enquanto o segundo, com aqueles que não tinham tido ocorrência da enfermidade, exercitava mais a habilidade do perdão.

Em um segundo momento, Suzana analisou o correspondência entre o desapego de rancores e dois tipos de espiritualidade: uma mais institucional, expressada por pessoas que frequentam igrejas e templos religiosos - e que apresentaram menor propensão a perdoar - e outra mais relacionada a um sentido de propósito de vida e a uma conexão com o sagrado, o presente e a natureza - que tendem a ser mais benevolentes.