A morte e as circunstâncias da morte do menino Henry Borel, aos 4 anos, no Rio de Janeiro, fizeram soar um alerta, em milhares de lares em todo o Brasil, sobre o problema da violência doméstica contra crianças. O garoto morreu no Hospital Barra D’Or, na Barra da Tijuca, no dia 8 de março. Ele foi levado para lá por sua mãe, Monique Medeiros, e pelo namorado dela, o médico e vereador Dr. Jairinho, que alegaram tê-lo encontrado desmaiado no quarto onde dormia após, supostamente, ter caído da cama. Esta também foi a versão apresentada nos primeiros depoimentos policiais sobre o caso. Contudo, causou estranhamento à equipe médica o fato de, apesar da formação, o padrasto não ter realizado nenhuma tentativa de reanimação na vítima, que, após uma parada cardiorrespiratória, já teria chegado ao local de socorro sem vida. Também foi razão de desconfiança a quantidade de lesões do menino, que não correspondem a uma simples queda da cama. Apesar das tentativas de Dr. Jairinho no sentido de evitar que o corpo de Henry fosse levado ao Instituto Médico-Legal (IML), o procedimento foi realizado, conforme determinam os protocolos médicos para esses casos. A necropsia constatou múltiplos sinais de trauma, como equimoses, hemorragia interna e lesões no fígado, típicos de agressão. Segundo laudo da Polícia Civil, foram 23 lesões externas “provocadas por ações violentas no dia de sua morte”.

No dia 8 de abril, um mês após o suposto acidente, Monique e Jairinho foram presos sob suspeita de atrapalhar a investigação. Antes testemunhas, eles passaram a ser investigados por envolvimento na morte do garoto. Além disso, com a repercussão do caso, novas denúncias contra o parlamentar vieram à tona. Agora, ele é suspeito de agressão e tortura contra três crianças. Nesses episódios, a violência era dirigida a meninos e meninas de cerca de 5 anos, geralmente. Em todos os casos, o vereador manteve relações com as mães das supostas vítimas, que também relatam já terem sido agredidas por ele.

Além das denúncias contra Dr. Jairinho, o caso Henry também reverberou em uma sensação de aumento no número de queixas de violação de direito de crianças e adolescentes prestadas em delegacias da Polícia Civil do Estado de Minas Gerais (PCMG). “Em termos de atendimento presencial, nas últimas semanas, desde a divulgação das investigações da circunstância da morte de Henry, percebemos um aumento no número de atendimentos. A demanda, para essas ocorrências, se tornou maior”, sublinha a delegada Renata Ribeiro, da Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente (Depca). Para ela, a explicação do fenômeno é simples: “A partir do momento em que se vê um caso dessa gravidade, em que se vê que as agressões podem escalar custando a vida de um menino, aquelas pessoas que têm notícia de um fato semelhante se sentem encorajadas a denunciar esses eventos”, observa.

Em consonância à sensação exposta pela delegada, de um aumento do volume de queixas de violência contra a criança e o adolescente, dados do Disque 100 confirmam uma crescente dessas denúncias no último ano. Conforme apuração do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), em 2020, foram 95.247 ocorrências registradas, o maior número em 7 anos, significando um novo caso a cada 5,5 minutos. Em Minas, a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) detalha que, no ano passado, foram informados 5.295 casos de lesão corporal e 1.167 de maus-tratos envolvendo pessoas com menos de 17 anos.

Essa disposição de noticiar às autoridades casos de violência contra pessoas indefesas é fundamental para o enfrentamento desses crimes, ressalta a policial. Trata-se, afinal, de um tipo de violação que é, muitas vezes, invisível. “É comum que, mesmo sabendo que a agressão acontece, a pessoa se cale, pense que é um problema da família e, que, se a mãe não está fazendo nada a respeito, ninguém deve fazer. O que é um equívoco. Todos temos o dever de resguardar as crianças e de denunciar abusos contra elas. Esta é uma obrigação da sociedade”, reforça. Foi o que aconteceu com Henry. Segundo apuração técnica e novos depoimentos, pelo menos a avó materna do garoto, Rosângela Medeiros, e a babá, Thayná Oliveira, além da mãe dele, tinham consciência de possíveis ataques.

Mortes. Em uma década, conforme levantamento do departamento de informática do Sistema Único de Saúde do Brasil (DataSUS), 2.000 crianças de até 4 anos perderam a vida em decorrência de agressões, sendo que, morreram em casa, mais de um terço delas.

Pandemia amplia vulnerabilidade de crianças a episódios de violência doméstica

Desde o ano passado, entidades dedicadas à defesa dos direitos humanos, como a Childhood, têm manifestado preocupação quanto ao risco de crianças estarem mais vulneráveis à violência doméstica no contexto da pandemia de Covid-19. A crise sanitária também pode reforçar a já problemática invisibilização dessas ocorrências.

“Considerando que, nas atuais circunstâncias, muitas famílias se viram forçadas a estabelecer uma nova dinâmica de convivência e de compartilhamento do espaço com seus entes por estarem confinadas em casa por mais tempo, há o temor de que uma escalada dos níveis de tensões no lar, acentuadas pela ansiedade gerada pela insegurança sanitária e financeira, levem ao número de abusos físicos e maus-tratos”, alertava Itamar Batista Gonçalves, gerente de advocacy da Childhood, em uma entrevista a O TEMPO feita em abril de 2020. Ele completou que, além dessa ampliação do volume de casos, a pandemia prejudicava duplamente a identificação dessas ocorrências. 

De um lado, sem aulas presenciais, os pequenos perdem um importante aliado: o professor. “Na maioria dos casos (cerca de 70%, segundo dados do Ministério da Saúde), a vítima sofre a agressão em casa e se sente impotente para pedir socorro no ambiente familiar. Pode ser, ainda, que ela não seja a única pessoa agredida naquele espaço, de forma que, inserida nesse contexto de opressão, ela não vai sentir que poderia ser ajudada. Nesse sentido, é na escola que essa criança poderia receber apoio na medida em que os professores estivessem capacitados a perceber marcas físicas e mudanças de comportamento ou ouvir denúncias”, analisa.

Além disso, a apreensão causada pela crise global e pelo isolamento social provoca sintomas que podem mascarar sinais emitidos por crianças vítimas de abusos. 

Sinais codificados

A pesquisadora e psicóloga Renata Borja concorda com as ponderações de Itamar Gonçalves. Ela situa que sintomas comportamentais e até mesmo físicos podem ser indícios de diversos problemas enfrentados por uma criança, não sendo, necessariamente, uma reação a episódios de violência. Contudo, a especialista sublinha que, em boa parte dos casos, os pequenos dão, sim, indicativos de estarem vivendo alguma situação de desconforto, ainda que esses sinais sejam codificados. “Isso ocorre porque, normalmente, a criança, cujo pensamento se dá mais por imagens, terá dificuldade de explicar e de nomear seus sentimentos, emoções e pensamentos para os adultos, cujo raciocínio se constitui por palavras”, avalia. 

Sabe-se hoje, por exemplo, que Henry, na véspera da noite de sua morte, vomitou e chorou ao ser entregue pelo pai, o engenheiro Leniel Borel, para a mãe e o padrasto. Olhando para trás, esta parece uma manifestação óbvia de pedido de socorro, mas não é bem assim. Renata Borja observa que, como tremores, taquicardia e o ato de fazer xixi na roupa, vomitar pode ser um indicativo de problemas de ansiedade ou uma resposta psicossomática do corpo a um problema com o qual a pessoa não consegue lidar. Era impossível, portanto, que alguém adivinhasse do que se tratava. Cabe ressaltar que, àquela altura, Leniel considerava plausível a argumentação de Monique de que as reações da criança eram consequência de uma não aceitação da separação dos pais. 

A psicóloga ainda lembra que, como nessa história, o pedido de ajuda pode soar ambíguo. Ela menciona que, em seu mais recente depoimento, a babá Thayná Oliveira narra que Henry teria abraçado o padrasto quando ele chegou em casa e, no mesmo dia, o garoto teria sido, supostamente, vítima de agressões. “O fato de uma criança ser carinhosa e abraçar alguém não vai significar, de fato, uma relação saudável. Pensando em se proteger do agressor, ela pode ter essas atitudes, na tentativa de, agradando, se resguardar”, sublinha.

Acolhimento. Renata Borja defende que os adultos criem um canal seguro de comunicação com as crianças. O que significa se mostrar aberto a compreendê-la, sem julgamento. “A validação emocional é crucial”, diz. Ela pondera que, muitas vezes, os tutores tendem a reduzir os sentimentos da criança a algo menor, como “ela está fazendo birra” ou “ela é manhosa”.

“Uma cena comum é ver uma criança dando um show no chão de um shopping, e a família brigando com ela, gritando com ela. O que não se percebe é que a criança está tentando demonstrar um desconforto, mas está fazendo isso de forma inadequada, e tende a ser punida por conta da expressão dessa emoção. Com efeito, cada vez menos ela vai desejar se expressar. O ideal, nesse cenário, seria validar o que ela sente, mas não o comportamento dela. Dizer: ‘Eu entendo que você está com raiva, é chato mesmo quando essas coisas acontecem, mas não é por estar assim que você deve se comportar dessa maneira e não vai ser assim que você vai resolver esse problema’”, aconselha.

Cuidado. A psicóloga pondera que os adultos devem tomar cuidado ao abordar uma criança, sem propor para ela uma conclusão. “Deve-se evitar questionar diretamente sobre algum suposto evento, pois, se ela acreditar que é aquilo que o interlocutor quer ouvir, ela pode optar por mentir para agradar à pessoa e, com isso, pode até criar falsas memórias”, sinaliza. Nessas situações, o ideal é se abrir para o diálogo de forma mais abrangente. “O adulto pode dizer: ‘Estou percebendo que algo está te incomodando, tem algo que você está com medo ou com vergonha de me dizer? Tem algo que eu precise saber que está gerando isso?’. Dessa maneira, a criança vai se sentir legitimada e segura para falar”, avalia. Renata Borja situa que a ajuda profissional, como a psicoterapia, pode auxiliar os pequenos nesse processo.

Atenção. A delegada Renata Ribeiro sinaliza que lesões físicas, como hematomas, marcas ou contusões não compatíveis com quedas ou que sejam muito recorrentes são os principais indícios de agressão contra crianças. Ela acrescenta que mudanças repentinas de comportamento, queda abrupta do rendimento escolar e o fato de demonstrarem medo de alguém, evitando se aproximar dessa pessoa, também são indicativos de problemas.

Ajuda. Denúncias podem ser feitas pelo Disque 100, pelo aplicativo para dispositivos móveis Diretos Humanos BR e pelo site da Ouvidoria do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos: https://ouvidoria.mdh.gov.br/.

Em Belo Horizonte, a Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente (Depca) recebe denúncias presencialmente e pelo telefone (31) 3228-9000. Casos urgentes podem ser levados, inclusive, por outros órgãos de segurança, como Polícia Militar e Guarda Municipal.

Em todo o Estado de Minas Gerais as unidades continuam funcionando. Para saber o número de telefone da delegacia mais próxima de sua cidade, ligue para o 197. Denúncias anônimas podem ser feitas pelo 181. As ocorrências também podem ser registradas pela Delegacia Virtual: https://delegaciavirtual.sids.mg.gov.br/.

Se o ato de violência está acontecendo naquele momento, a Polícia Militar pode ser acionada pelo 190.

Pena. Pessoas acusadas de violência contra criança podem responder pelos crimes de maus-tratos, cuja pena é de dois meses a um ano de detenção, lesão corporal, com pena de três meses a três anos, e, em alguns casos, pelo crime de tortura, cuja condenação pode levar à prisão por dois a oito anos. Além disso, ainda durante a apuração do caso, a Justiça pode, por meio de ordem de medida restritiva, determinar que o agressor se afaste da vítima.