Basta alguma familiaridade com temas da psicologia – seja por meia dúzia de sessões de terapia ou por algumas leituras sobre transtornos de comportamento – para que se possa constatar que as experiências vividas na infância repercutem fortemente na vida adulta.
“Em termos de construção da personalidade, esse período – normalmente até os 20 anos, mas com pico até os 12 – é o mais decisivo, ainda que a personalidade siga se transformando ao longo do tempo, embora com menor intensidade”, expõe o psiquiatra Bruno Brandão ao falar sobre o porquê de questões da infância aparecerem tão recorrentemente no divã. Significa dizer que as crenças adquiridas nessa fase tendem a ficar mais enraizadas do que outras que possam surgir em outras épocas. “E, por isso, fica mais difícil acessar e modificar esse padrão”, determina. Ele salienta que, para corrigir ações e reações disfuncionais, é preciso readequar a maneira como olhamos para aqueles fatos, de forma que retornar memórias de criança é essencial nesse processo. “É justamente nessa fase que desenvolvemos essa lente pela qual observamos o mundo e é através desse olhar que vamos reagir aos acontecimentos à nossa volta”, sinaliza o psiquiatra.
Partindo desse entendimento, fica mais fácil entender que vivências do período da infância exercem influência inclusive em dimensões da vida que, na meninice, nem mesmo seríamos capazes de compreender, como em relação às dinâmicas afetivo-sexuais. Nessa seara, a psicóloga Camilla Viana, especialista em atendimento do público adulto, de família e de pessoas com trauma geracional e complexo, indica que há cinco tipos de situações que, vividas na infância, aparecem recorrentemente na clínica por favorecerem a ocorrência de padrões disfuncionais no contexto de relacionamentos amorosos.
“É comum perceber impactos associados a episódios de abandono, rejeição, humilhação, traição e injustiça”, diz, ponderando que cada um reage à própria história de vida à sua maneira, mas sinalizando que, de forma geral, é possível identificar um padrão sobre como cada uma dessas vivências costuma reverberar na vida adulta.
Abandono. “Se uma criança viveu em situação de abandono, seja físico ou afetivo, se ela está ali meio invisível dentro da casa, é provável que, no futuro, ela tenha dificuldade de desenvolver uma noção de amparo e passe a demonstrar grande medo de voltar a se sentir abandonada. Então, ao entrar em uma relação, pode acontecer de essa pessoa se tornar emocionalmente dependente do outro. Esse sujeito também vai ter dificuldade de respeitar a individualidade do outro, sentindo uma grande ansiedade quando está longe de sua parceria. Nesses casos, pode ser excessivamente desgastante imaginar que o outro, por exemplo, vai para uma festa sozinho ou vai fazer uma viagem desacompanhado – mesmo que esteja a trabalho”, aponta Camilla.
Rejeição. “Já quando falamos em rejeição, estamos falando daquela criança que era constantemente corrigida, como se sempre estivesse errada. ‘Fale baixo’, ‘sente-se direito’, ‘comporte-se’ e outras expressões, sempre no imperativo, são eventos comuns na infância dessas pessoas, que, então, passam a se sentir desajustadas, como se o tempo todo tivessem que se esforçar para serem aceitas, para se adequar”, observa a psicóloga. “Na vida adulta, essa crença tende a permanecer. Então, esse indivíduo vai tentar se modelar ao outro em uma desesperada busca por aprovação externa. São comuns, por exemplo, os relatos de pessoas que entram em uma relação de uma maneira e, de tanto tentarem se modelar à expectativa do outro, passam a não se reconhecer mais”, diz, completando que uma postura exageradamente passiva e de pouco enfrentamento é comum a esses indivíduos.
Humilhação. “Geralmente, uma pessoa que passou por humilhações na meninice vai ter dificuldade de entender o lugar de dignidade no mundo. Nessas situações, após ter vivido episódios que podem, inclusive, configurar violência física ou psicológica, o sujeito pode chegar à vida adulta demonstrando grande resistência de suportar abusos. Por conta dessa postura, pode-se conviver com o peso de uma relação tóxica sem sequer perceber. Afinal, aquelas atitudes hostis já foram naturalizadas, de forma que a vítima vai tolerando, vai achando tudo normal”, informa a especialista. Para ela, adultos com histórico de humilhação na infância tendem a ser mais vulneráveis a entrar em relacionamentos abusivos, tolerando até episódios de agressão na relação conjugal.
Traição. “Uma criança que viveu em um lar com traição muito naturalizada, no caso de pais que têm amantes, ou mesmo que lidou com situações em que ela própria se sentiu recorrentemente traída, como no caso de promessas descumpridas sistematicamente, tende a ter mais dificuldade de confiar no outro. Isso acontece porque já mentiram tanto para ela que, por hábito, ela passou a desconfiar de tudo e de todos”, analisa. Camilla sublinha que pessoas com esse perfil tendem a ter extrema necessidade de controle. “Para elas, é desesperador pensar que não podem estar a par de tudo e que podem estar sendo enganadas”, comenta, acrescentando que, geralmente, são sujeitos que, nos relacionamentos, têm atitudes que denotam possessividade.
Injustiça. “Por fim, temos as crianças que se sentem injustiçadas porque nada do que fazem parece suficiente. Aquela nota 9 na prova que valia 10 é vista com desdém pelos pais, que sempre vão exigir mais e mais. Nesses casos, por mais que haja esforço, a recompensa nunca vem”, descreve a psicóloga. Normalmente, ao chegar à idade adulta, essas pessoas tendem a não confiar em si, demonstrando dificuldade de tomar decisões sem a ajuda do outro. “Na verdade, elas tendem a transferir para o outro a responsabilidade de decidir por nunca estarem seguras se estão certas e se suas escolhas são boas”, sinaliza. “Esses sujeitos também costumam ter uma postura muito passiva, cedendo às vontades alheias”, conclui.
A culpa é sempre dos pais?
Camilla Viana indica que em qualquer lar, por mais saudável que o ambiente seja, sempre há margem para vivências que podem desencadear comportamentos disfuncionais ou até transtornos no futuro. “Os pais e tutores em geral precisam entender que não existe um sistema de criação perfeito. Tanto que, em psicologia, falamos em um contexto familiar predominantemente saudável ou predominantemente adoecido, e não em um contexto totalmente saudável ou adoecido”, avalia a profissional, indicando que não é razoável que os pais se culpem pelo destino de seus filhos.
Tendo em mente que não há um padrão de educação que blinde a pessoa de desenvolver traumas, a psicóloga aconselha que os tutores busquem capacitar as crianças a ter autonomia para resolver os próprios problemas e, idealmente, invistam em uma formação doméstica que se insira no contexto do autoconhecimento. “É justamente a partir desse olhar para nós mesmos que vamos conseguir identificar esses padrões disfuncionais que levamos para as relações. E, tendo consciência dessas questões em aberto, teremos condições de buscar ajuda”, explica.