Pobreza Menstrual

Falta de acesso a absorventes e a saneamento básico impacta a vida de mulheres

Pesquisa mostra que uma em cada quatro brasileiras já faltou à aula por não poder comprar itens de higiene

Ter, 18/05/21 - 07h00
Projeto vai ajudar a conter evasão escolar. | Foto: UNSPLASH

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“Muitas vezes, precisei rasgar uma tira do lençol com o qual dormia e fazer (o retalho) de absorvente. Já a meia que mais usava durante a minha menstruação, conseguia lavar e usar novamente. Mas as minhas colegas de cela também usavam saco plástico, saquinho de papel desses de embrulhar pão e até espuma do colchão”, relata Poliana Fernanda Pacheco, 39, relembrando o período em que esteve detida, por nove meses, no Complexo Penitenciário Feminino Estevão Pinto, em Belo Horizonte. Pode soar até bizarro para boa parte da população, mas, para Poliana, assim como para tantas outras mulheres brasileiras que vivem em situação de vulnerabilidade social, o absorvente íntimo ainda é um artigo de luxo. Sendo assim, para quem não pode arcar com esse gasto, a alternativa é recorrer a métodos considerados inadequados, como os citados pela ex-detenta, para fazer as vezes de absorvente – e, assim, conter o próprio fluxo sanguíneo característico do período menstrual.

O estranhamento que algumas pessoas podem sentir ante essa realidade se deve ao fato de que, mesmo com todos os avanços conquistados pelas mulheres ano a ano, alguns temas ligados à saúde feminina ainda são considerados tabu, como o ciclo menstrual. Mesmo que algumas lendas tenham caído por terra – como a de que a mulher não poderia lavar o cabelo nesse período –, a informação sobre o fenômeno ainda não está ao alcance de muitas mulheres do planeta. A essa realidade soma-se a chamada “pobreza menstrual”, que vem a ser a falta de acesso, por questões econômicas, aos absorventes – isso sem falar em remédios contra cólicas. Na verdade, a questão pode ser inserida num contexto ainda mais amplo e preocupante, já que muitas dessas mulheres vivem em habitações nas quais falta até mesmo o saneamento básico. Poliana relata também que o kit higiene fornecido a ela e outras detentas contava apenas com 16 absorventes e, às vezes, era entregue a cada três meses – número, portanto, insuficiente para cobrir o período menstrual. “Meu fluxo sempre foi intenso e dura cerca de cinco dias. Sempre faltava absorvente, e a gente não tinha acesso. Às vezes, trocava comida por absorvente”, recorda.

EVASÃO ESCOLAR. Muitas meninas deixam até de ir à escola quando e s t ã o menstruadas. Segundo um levantamento inédito no Brasil, feito pela antropóloga e pesquisadora Mirian Goldenberg, uma em cada quatro brasileiras já faltou à aula por não poder comprar absorventes. O problema se estende também às detentas em penitenciárias femininas e às moradoras de rua. Estima-se que 23% das meninas de 15 a 17 anos não tenham condições financeiras de adquirir produtos seguros para usar durante a menstruação, de acordo com uma pesquisa de 2018 da marca de absorventes Sempre Livre.

Mas, evidentemente, a situação não é exclusiva do Brasil. O filme indiano “Absorvendo Tabu”, de Rayka Zehtabchi, vencedor em 2019 do Oscar de melhor documentário de curta-metragem, mostra a vida de uma comunidade rural na Índia, mais precisamente em Harpur, onde a primeira menstruação significa que as meninas devem interromper os estudos. A produção está disponível na Netflix.  

NÚMEROS

21,8 bilhão de mulheres menstruam no planeta.

A ONU estima que uma em cada dez meninas deixe de comparecer às aulas durante a menstruação.

No Brasil, o número é de uma em cada quatro meninas.

48% destas tentaram esconder que o motivo era a falta do absorvente. 245% acreditam que esse não comparecimento em função da falta do absorvente impactou negativamente o seu rendimento escolar 250% das entrevistadas em uma pesquisa da Always já precisaram substituir o absorvente por papel higiênico, roupa velha ou toalha de papel.

A utilização de itens inadequados pode causar infecções no trato urinário, nos rins e até nos órgãos reprodutores.

Pesquisa encomendada pela marca de absorventes Always junto à Taluna, que ouviu 1.124 mulheres entre 16 e 29 anos

Políticas públicas ineficientes agravam ainda mais o problema

A questão da pobreza menstrual vem mobilizando também a esfera legislativa. Prova é que o Projeto de Lei 61/2021, da deputada Rejane Dias (PT-PI), incluiu, entre as atribuições do Sistema Único de Saúde (SUS), o direito de acesso a absorventes para mulheres em situação de vulnerabilidade social e em estado de pobreza extrema. A distribuição gratuita deverá abarcar “mulheres sem moradia convencional regular e que utilizem os logradouros públicos e áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, bem como aquelas que utilizam unidades de acolhimento para pernoite temporário ou moradia provisória”, segundo a Agência Câmara de Notícias. “É raríssima a disponibilidade de absorventes higiênicos para quem vive em situação de vulnerabilidade social ou em situação de rua”, explica Rejane. “Infelizmente muitas mulheres tentam controlar o sangramento com o uso de papel, papelão, jornal e até miolo de pão, o que aumenta as chances de infecções vaginais”, detalhou ela ao site da Agência Câmara.

Em março de 2020, a deputada federal Tabata Amaral (PDTSP) apresentou um projeto de lei na Câmara que prevê a distribuição gratuita de absorventes biodegradáveis em espaços públicos. No âmbito municipal, um projeto de lei de autoria das vereadoras Iza Lourença (PSOL) e Bella Gonçalves e da covereadora Cida Falabella, que visa distribuir absorventes higiênicos para mulheres em situação de vulnerabilidade social, foi protocolado em março na Câmara Municipal de BH. A iniciativa ainda prevê ações de conscientização e informação sobre a menstruação. A apresentação do projeto destaca que, de acordo com a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social de Minas Gerais (Sedese), o número de famílias em situação de extrema pobreza em Belo Horizonte saltou de 17.901 em março de 2020 para 61.734 em dezembro do mesmo ano, um aumento de 245%.

“Em plena pandemia, nos deparamos com um fato grave e sistematicamente negligenciado: a menstruação não entra na pauta das urgências básicas para as pessoas, mas deveria. Estamos acompanhando situações extremas em que é preciso escolher entre comprar um pacote de absorventes e comer, e isso afeta negativamente a dignidade humana, direito básico garantido a todas as pessoas pela nossa Constituição”, defende Iza Lourença.

Idealizadora da campanha Fluxo Solidário, de combate à pobreza menstrual e pela igualdade de gênero, Vivi Mendes explica que o acesso a absorventes femininos é uma necessidade básica que ainda passa longe do debate público no Brasil.“A discussão da menstrual é permeada pelo mesmo preconceito de vá- rias outras questões de como o corpo da mulher é tratado sob uma perspectiva muito preconceituosa, aliada a um discurso fundamentalista, que faz com que tenhamos ausência de debates”, enumera, citando que países como Canadá, Índia, Austrália e Quênia e 33 dos 50 Estados dos Estados Unidos possuem legislação que trata da pobreza menstrual.

Iniciativas ajudam na distribuição de kits 

A Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu, em 2014, o direito à higiene menstrual como uma questão de saúde pública e de direitos humanos. Porém, não se trata apenas da falta de dinheiro para comprar absorventes, mas também de direitos básicos, como produtos de higiene, educação sexual, água limpa e um banheiro com privacidade. Justamente diante da conscientização sobre esse problema, várias iniciativas vêm emergindo mundo afora, como o projeto Tô de Chico, que atende mulheres em situação de rua no Rio de Janeiro. Também no Rio, a estudante Constanza Del Posso, 16, criou o Absorvendo Amor, que distribui absorventes a mulheres e, principalmente, meninas carentes.

O coletivo mineiro bElas é mais um que tem o objetivo de fornecer ferramentas básicas de promoção da autoestima e autovalor a mulheres em situação de vulnerabilidade social. Criada em 2020, momento de aumento do desemprego e pobreza devido à pandemia, a iniciativa atua por meio de campanhas para arrecadar itens de higiene, já doados em Sabará, Betim e Contagem. “Já doamos 4.784 unidades de absorventes para em média 524 mulheres”, enumera Karen Ramos, idealizadora do bElas. 

Entrevista

Tabata Amaral Cientista política, astrofísica, deputada federal (PDT-SP) e cofundadora do Movimento Acredito


No ano passado, você apresentou um projeto (PL 428/2020) para garantir a distribuição gratuita de absorventes femininos em espaços públicos. Como lidou com as críticas à proposta? Por mais que tenha sido duro lidar com todo o preconceito, ataques e machismo que eu recebi, de certa forma eles ajudaram a mostrar para outras pessoas que esse tema ainda é tabu e é um absurdo que ainda não consigamos falar sobre um processo biológico que acontece com 1/3 da população brasileira, com as mulheres em idade adulta.

Como você enxerga a falta de legislação no Brasil para tratar a pobreza menstrual? É uma realidade tão dura e com dados tão absurdos que pra mim era muito óbvio e continua sendo uma questão de saúde pública. É sobre você garantir dignidade para as mulheres do Brasil. Tenho orgulho de contribuir para que a menstruação deixe de ser um tabu e possa dar um basta à pobreza menstrual. Apesar dos ataques e dos xingamentos que recebi, essa causa vem avançado cada vez mais. Estamos tirando o rótulo que proibia as pessoas de abordarem sobre isso. 
 

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