Aos 2 anos, a pequena Yvone Martha vivia a ralhar com sua avó. Cobrava com autoridade que a matriarca cuidasse melhor da organização da casa – história que poderia soar como fofa não fosse o fato de as atitudes da criança serem semelhantes às de sua tia-avó, já falecida. Os trejeitos que parecia mimetizar somavam-se a outras curiosidade: as duas nasceram no mesmo dia, 11 de setembro, e a garotinha tinha uma marca de nascença na nuca – sua antepassada morrera durante a Segunda Guerra Mundial, na Áustria, com estilhaços de uma bomba que a atingiram nessa mesma região do corpo. Certa vez, quando alertada pela avó de que não poderia ralhar com ela, a menina revidou dizendo que, sim, podia fazê-lo, pois era a sua irmã mais velha.
O caso de Yvone ganhou notoriedade em 2010, quando uma pesquisa do psiquiatra norte-americano Jim Tucker, da Universidade da Virgínia, foi apresentada por uma rede de TV inglesa. Nela, além da brasileira, outras 250 pessoas de todo o mundo tiveram catalogados os relatos de supostas memórias de vidas passadas. Agora, pela primeira vez, um estudo empreendido pelo Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde (Nupes), da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), vai investigar como tal fenômeno se desenha em território brasileiro.
“O Brasil é, hoje, um país de destaque acerca das pesquisas sobre espiritualidade e saúde. Somos o quinto país do mundo que mais produz pesquisa científica com essa temática e temos observado um interesse crescente da comunidade acadêmica e da sociedade como um todo em tais questões”, observa o psiquiatra e presidente do Nupes, Alexander Moreira-Almeida. Todavia, ele reconhece que ainda há temas a serem mais bem investigados – e as alegadas memórias estão entre eles.
“Este é o primeiro estudo acadêmico a tratar das alegadas recordações feito no país e, no mundo, será o primeiro levantamento nacional realizado”, observa. A pesquisa, intitulada “Levantamento Nacional de Casos Sugestivos de Reencarnação na População Brasileira”, teve seu pontapé inicial em março.
Na primeira fase, os estudiosos vão catalogar possíveis ocorrências, que podem ser registradas por qualquer pessoa que acredite ter acessado memórias de uma vida pregressa por meio de questionário online. Vale dizer que, em pouco mais de dois meses, mais de 360 pessoas já se cadastraram – até o final do ano, os casos mais consistentes devem ser selecionados e verificados.
Prevista para 2020, uma segunda fase do projeto vai investigar in loco as histórias de maior relevância. “Os pesquisadores vão entrevistar testemunhas de primeira mão, ouvir as crianças, buscar por documentos, objetos, visitar os lugares mencionados nas alegadas memórias, a fim de verificarem a acurácia do relato”, explica Moreira-Almeida.
O pesquisador da UFJF expõe que o principal objetivo da pesquisa é “traçar um perfil dos brasileiros que alegam possuir as memórias de supostas vidas passadas e as características dessas memórias”.
“Queremos conhecer, também, seus níveis de saúde, felicidade e religiosidade/espiritualidade”, explica ele. Interessado também em compreender como as supostas memórias surgiram, o levantamento se propõe a ser amplo, incluindo as manifestações ocorridas na infância, de forma mais espontânea, e também as experiências alcançadas mediante atividades como relaxamento, meditação e terapias.
Interesse nacional
O interesse brasileiro pelo tema não é só científico. Pesquisa do Instituto Datafolha de 2007 aponta que 37% dos brasileiros acreditam em reencarnação, enquanto 18% têm dúvidas. Curiosamente, entre os católicos, 44% creem em vidas pregressas – algo que contraria os preceitos da própria religião. Portanto, como examina Moreira-Almeida, estas são “experiências vivenciadas por pessoas de todo o mundo e de variadas posições religiosas e filosóficas, envolvendo crenças muito disseminadas na população”.
Atento a esse fenômeno, “o Nupes tem desenvolvido pesquisas científicas interdisciplinares acerca das relações entre espiritualidade e saúde há mais de uma década”, explana o psiquiatra, destacando o “interesse em investigar, com rigor metodológico, temas que são de relevância para a saúde e que impactam a vida das pessoas cotidianamente”.
A equipe juiz-forana trabalha com uma rede nacional e internacional de pesquisadores por meio de parcerias com instituições como as universidade de Harvard, de Oxford e da Virgínia – esta última, parceira na atual empreitada, apoiada também por Jim Tucker, que se dedica ao tema há meio século. O levantamento da UFJF também conta com apoio financeiro da Fundação Bial, tradicional incentivadora de estudos da neurociência.
Regressão como terapia
Entusiasta das possibilidades de cura que acredita serem provenientes da terapia de regressão a vidas passadas, a especialista em psicanálise e mestra em reiki Carmem Farage se diz feliz por saber do interesse acadêmico pelo assunto. “Eu acho realmente maravilhoso. É um futuro anunciado: já sabemos, por mediunidade, que nossos mentores espirituais estão buscando aproximar ciência e espiritualidade. Precisamos sair desse simplismo de que nascemos, crescemos, morremos e acabou”, garante ela.
Na psicanálise, Carmem buscou formação justamente em Juiz de Fora – que tem se consolidado como polo em estudo da espiritualidade no país. Mas foi no Rio de Janeiro, na segunda metade da década de 90, que ela viu sua vida mudar. Lá, participou de uma série de workshops ministrados pelo psiquiatra norte-americano Brian Weiss, que estuda temas afins. “Isso mudou minha vida, me transformei em outra pessoa”, expõe, destacando que, por meio da regressão, passou a compreender a origem de certa agressividade que tinha – e soube trabalhar melhor essa questão.
A partir de 1997, Carmem começou a oferecer terapias de vidas passadas em seu consultório, no Rio. Quando mudou-se para BH, em 2000, passou a focar mais esse tipo de atendimento. Oito anos depois, embarcou para a França, onde faria um mestrado em psicanálise transcultural, na Universidade Paris 13. “Foi lá que travei contato (pela mediunidade) com meu mentor espiritual, Theilhard De Charbin, um ser desencarnado. Então, abortei o projeto do mestrado e foquei o que deveria seguir”, diz.
Naquele mesmo ano de 2008, desenvolveu o método Lumni, que é baseado em três pilares: “um eixo mental, em que uso a psicanálise; um energético, da regressão, e um espiritual, inspirado na apometria (tipo de técnica holística que tem como objetivo manter a energia positiva)”, explica a terapeuta.
Hoje, reconhece que todos os seus pacientes a procuram por conta dessa possibilidade de acesso. Ela alerta que a regressão não deve ser buscada por curiosidade, mas sim em vista de promover autoconhecimento. E, embora não veja contraindicações, acredita que, ao se submeter a uma sessão para reaver tais memórias, é recomendável que a pessoa esteja inserida em um contexto de acompanhamento terapêutico.
Comunidade científica busca explicações para fenômeno
Na década de 60, o professor de psiquiatria da Universidade da Virgínia Ian Stevenson (1918-2007) começava a tomar ciência de relatos de crianças que, espontaneamente, narravam situações que teriam vivido, lugares e pessoas que teriam conhecido, reclamando para si uma experiência de suposta vida passada. Instigado, ele se dedicou a desenvolver métodos de pesquisa a fim de esmiuçar tais histórias e buscar evidências da suposta personalidade anterior da criança. Foram por ele catalogados mais de 2.000 casos – em muitos, foi possível encontrar paridade entre o que havia sido relatado e a biografia de pessoas já falecidas.
De lá para cá, pesquisadores de todo o mundo têm se debruçado sobre o tema, tantas vezes controverso. Agora, o Brasil junta-se a tais esforços. “À medida que pesquisas são realizadas e seus resultados são apresentados para a comunidade científica, os temas vão recebendo a devida atenção e se tornando objeto de mais discussões. Além disso, é a forma como a ciência contribui para quebrar tabus”, defende Alexander Moreira-Almeida, psiquiatra à frente do primeiro estudo brasileiro sobre relatos de alegadas memórias de vidas passadas.
O pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora explica que a literatura científica trabalha com algumas hipóteses que explicariam o fenômeno. Essas memórias “podem ser fantasias criadas pelas crianças com base em necessidades psicológicas e em seu contexto sociocultural”, a
As recordações podem ser tanto sobre fatos corriqueiros, que poderiam se encaixar na vida de qualquer pessoa, quanto de fatos específicos, mas sobre os quais quase não se consegue encontrar registros. E, mesmo quando indícios de real paridade são localizados, há que se considerar outras possibilidades.
Descartada a hipótese de fraude, pode-se estar diante de um caso de criptomnésia – “quando a criança teve acesso por vias normais àquelas informações, mas não se lembra conscientemente, e, sob determinadas circunstâncias, elas retornariam sob a forma de personificação ou dramatização”, explica.
Outra abordagem possível é a memória genética – quando a pessoa teria herdado memórias de seus antepassados, acreditando ser a reencarnação deles. Do ponto de vista científico, todavia, não é possível dizer que lembranças sejam transmitidas geneticamente.
Por fim, interpretações menos ortodoxas também podem ser feitas, incluindo a percepção extrassensorial, via telepatia ou clarividência, ou a real sobrevivência da personalidade.
“Provavelmente, apenas uma hipótese não conseguiria abarcar a complexidade do tema. Todas elas precisam ser consideradas na investigação dos casos, e cada relato precisa ser acolhido de forma respeitosa e empática, uma vez que se trata de uma experiência subjetiva que, como tal, tem um significado real para a pessoa e um impacto sobre sua vida”, conclui Moreira-Almeida.
Revisitando o passado
Já revisitei umas seis passagens minhas por esse plano. A duas delas, as mais importantes para o processo que buscava entender e elaborar, retornei duas ou três vezes – em uma delas no período da peste negra (1343-1353)”, assegura o músico e acupunturista Renato Caetano, 47, que há cinco anos faz acompanhamento terapêutico com a possibilidade de regressão a vidas passadas.
A busca pelo método foi desencadeada por um quadro de crises de pânico. Primeiramente, Caetano buscou ajuda em terapias convencionais. Mas, motivado pela crença na reencarnação, decidiu buscar por uma abordagem mais ampla. Foi então que começou a compreender os processos de construção da sua identidade – sendo que alguns desses não estariam localizados neste período da existência. “A partir daí, consigo trazer esses elementos para a consciência e trabalhá-los melhor comigo mesmo”, assegura.
O músico alega ter reavido memórias dolorosas que ajudaram a compreender um constante medo. “Vivi muitas punições, fui preso e morto por conta de decisões que tomei. Isso me ajudou a entender por que tinha dificuldades de tomar certas decisões, era como se eu temesse por essas punições outra vez”, expõe, completando que já tem apresentado melhora, mas segue em processo terapêutico.
Diferentemente de Caetano, o médico carioca Rodrigo R., radicado em BH há cinco anos, experimentou com certo ceticismo a terapia de regressão de memória. “O que me levou a buscar por isso foi um processo de desencanto em relação à medicina”, explica ele. Na sua primeira sessão, retomou lembranças de sua infância. “Estava meio reticente, mas veio um conteúdo emocional muito forte. Por mais que pudesse negar o que vi, dizer que era da imaginação, essa carga emotiva estava ali. Então, acreditei”, reconhece Rodrigo, que faz acompanhamento há dois anos. “Tive três ou quatro episódios de regressão ao longo desse período, sendo uma delas mais importante para mim”, cita, preferindo não entrar em detalhes.
Rodrigo passou a se interessar tanto pelo tema que se formou como terapeuta no Instituto Lumni, mantido por Carmem Farage, em BH. Para ele, o método pode ser resumido como uma forma de revisitar o passado, possibilitando melhor compreensão do presente e levando a mudanças que vão acarretar um futuro mais feliz.
Mais um estudo
EQM
Outra pesquisa desenvolvida pelo Nupes UFJF, também em fase inicial, busca refletir sobre o perfil de pessoas que tiveram Experiência de Quase Morte (EQM) e sobre as características desse fenômeno no país.
Mente-cerébro
“Além disso, investigaremos a função da mente humana e sua relação com a função cerebral. Em outras palavras, a mente é produto do cérebro ou é algo além dele que o utiliza para se manifestar?”, expõe o psiquiatra e presidente do Nupes, Alexander Moreira-Almeida.
Método terapêutico divide opiniões
Ceticismo
A terapeuta Carmem Farage, criadora do método Lumni, lida bem com o ceticismo acerca de vidas passadas. “Eu já fui uma pessoa desconfiada”, diz.
Validade
Para ela, no entanto, mesmo que se considere que tais memórias não sejam de vidas passadas, mas sim fantasias, este é um conteúdo do inconsciente do indivíduo – e, portanto, pode vir a ser usado em terapia.
Controverso
Para Gisele Parreira, presidente da Associação Mineira de Psicanálise (Amap) – uma instituição de ensino e entidade de psicanalistas, que também faz atendimento social –, o tema é controverso.
Ciente
“Nós sabemos da existência dessas terapias, mas quem pode garantir que essa memória é mesmo de uma vida passada? É complicado”, diz ela.
Terapias
Presidente da Comissão de Orientação e Fiscalização do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais, Túlio Picinini lembra que “terapia não é uma atribuição específica da psicologia, existindo modalidades místicas, holísticas, religiosas”. Além disso, ele salienta que “nem toda terapia significa tratamento psicológico”.
Código de Ética
A questão nesse ponto, explica Picinini, é que uma pessoa pode ter formação em psicologia, mas entender que esse campo do conhecimento não atende seus anseios e propósitos. Ela pode, portanto, optar por terapias alternativas. “O que não se pode fazer é associar ao atendimento psicológico terapias, técnicas ou protocolos que não foram cientificamente validados – e a existência de vidas passadas e a efetividade do tratamento que usa a regressão a passagens pregressas não têm tal embasamento”, diz.
Trocando em miúdos
Assim, o profissional não pode dizer, enquanto psicólogo, que faz regressão a vidas passadas.