Em boa parte de sua vida, Eduarda tentou dietas e remédios. Apesar da perseverança, a balança teimava em apontar três dígitos. Aos 50 anos, celebrou uma sensível perda de peso – mas de forma tão vertiginosa que chegou a consultar um médico para saber se estava tudo bem. Voltou satisfeita: havia recebido os cumprimentos do profissional. Em uma foto, ao lado das três filhas, riu por não ser mais, em tamanho, a maior mulher da família. Chegou aos 80 kg e, logo, se agravou uma sensação de fraqueza. Voltou a se consultar e o parecer médico é que estaria tudo bem, o corpo dela apenas se adaptava à nova dieta. Meses depois, foi internada. Descobriu, então, que seu intestino estava obstruído por um tumor maligno. Meses depois, aos 51 anos, Eduarda faleceu. Ela pesava 35 kg.

Extrema, sim, mas longe de ser uma exceção, a história de Eduarda evidencia como o corpo gordo, por si só, é visto como sinônimo de doença, enquanto o magro, sinal de boa saúde. Por essa razão, aliás, não são poucos os relatos de pacientes que têm suas queixas aos médicos até mesmo ignoradas diante de uma frequente recomendação não solicitada: perca peso. Foi o que ouviu a mercadóloga Anelise Hott, 34, quando, depois de sofrer por anos com dores, foi diagnosticada com fibromialgia. 

“Até descobrir o que eu tinha, havia suspeita até de lúpus. Então, o reumatologista identificou a doença e queria que eu saísse do consultório com encaminhamento para uma cirurgia bariátrica”, diz ela, que recusou. Anelise não quis ser parte da crescente estatística que busca na invasiva cirurgia de redução de estômago uma solução – em 2017, 105,6 mil operações foram feitas no país, número que se ampliou em 47% em cinco anos, segundo a Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM). Detalhe: após a indicação da cirurgia, o único remédio receitado foi um relaxante muscular. A medicação não era capaz de aplacar as dores que ela sentia nas extremidades do corpo. 

Diante do descaso com a doença em si, ela via se repetir a história de sua mãe, Eduarda. Buscou, portanto, um segundo profissional de saúde. E a indicação foi a mesma: que perdesse peso. “Se sentisse dores apenas nos pés, poderiam justificar que o peso era uma questão essencial. Mas sentia muita dor nas mãos. Como ele explicava isso?”, questionou. Dessa vez, saiu com recomendação de tomar anti-inflamatórios – mas também de consultar um endocrinologista, fazer atividades físicas e visitar um nutrólogo.

Foi só na terceira tentativa, passados seis meses do diagnóstico, que Anelise sentiu-se acolhida por um médico. “A fibromialgia tem fundo de ansiedade, então, além dos medicamentos, me recomendou ir a um psicólogo. Só depois de avançar no tratamento, ele me consultou se queria perder peso, explicando no que isso ajudaria”, conta.

“Independentemente do sintoma, sempre que vou ao médico, ele diz que preciso perder alguns quilos”, relata o publicitário Marcelo Gomes, 28, corroborando para a perspectiva de que essa é uma prática comum – e que recentemente passou a ser nomeada como “gordofobia médica”.

“Há muitos médicos que não estão preocupados em escutar as queixas do paciente, mas logo projetam a questão do emagrecimento – geralmente ignorando os prejuízos à saúde emocional”, observa Joana Cannabrava, que mantém o projeto Papo sobre Autoestima, no blog Futilidade. E, com centenas de relatos de leitoras, ratifica: “É uma reclamação unânime entre pessoas gordas”. Ela mesma já passou por isso. “Sempre ouvi calada. Agora, não mais! Quando uma médica começou a falar do meu peso, logo disse que ela devia ter mais tato, pois já tive transtornos alimentares justamente por conta dessa pressão constante pelo emagrecimento”, diz. 

“Pela minha vivência, digo que não deveríamos abrir mão da saúde mental e emocional para ter esse corpo idealizado”, conclui a blogueira.

Essa perspectiva holística, aliás, também é compartilhada pela presidente do Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais (CRM-MG), Cláudia Navarro. “As queixas dos pacientes devem ser sempre valorizadas. Mas é preciso entender que, para tratar aquela queixa, precisamos ver o todo”, garante. E, em muitos casos, segundo ela, a perda de peso é, realmente, essencial. “Ninguém é só uma unha encravada, um rim ou um fígado. Não dá para considerar esses elementos individualmente, e sim, muitas vezes, é preciso perder peso para iniciar um tratamento”, defende.

Questão de saúde

No ano 2000, a Organização Mundial da Saúde (OMS) passou a considerar a obesidade, entendida como uma doença crônica, como uma “epidemia mundial”. De fato, o mundo está cada vez mais gordo. No Brasil, por exemplo, a Pesquisa de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção de Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), de 2018, indicou que 18,9% da população do país tem Índice de Massa Corporal (IMC) acima de 30 kg/m² e é, portanto, obesa. Já 54% entraria nas estatísticas do sobrepeso, com entre 25 e 30 kg/m².

Curiosamente, o mesmo levantamento registrou que a prática de atividades físicas no tempo livre cresceu 24,1%, entre 2009 e 2017, e houve queda de 52,8% no consumo de bebidas açucaradas, incluindo refrigerante, entre 2007 e 2017. E é sobre essas mudanças de hábitos que situam os argumentos de quem defende que a obesidade deixe de ser uma patologia. É o que argui Natália Fonseca de Abreu Rangel, mestre em sociologia política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Embora reconheça que quase todos os estudos em nível populacional apontam que pessoas gordas têm pior saúde cardiovascular do que as magras, Natália é parte de um grupo de estudiosos que defende um olhar mais individualizado, sem tratar o peso como uma doença em si.

Um estudo em parceria entre as universidades do Alabama e do Texas, nos EUA, publicado em 2016, pois, dá sustentação ao posicionamento: acompanhando participantes por cerca de 19 anos, evidenciou-se que pessoas magras sedentárias tinham duas vezes mais chances de ter diabetes do que pessoas gordas ativas fisicamente. Além disso, segundo o Ministério da Saúde, cerca de 30% dos obesos têm perfil metabólico e cardiovascular dentro da normalidade.

Cláudia Navarro, no entanto, objeta: “Temos que pensar no curto e no longo prazo. O fato de estar bem, embora obeso, não quer dizer que no longo prazo a obesidade não vá trazer prejuízos”.

Mas Natália cita em sua dissertação de mestrado novas pesquisas que demonstram que o IMC pode não ser um dado preciso para avaliar a saúde de um paciente. Afinal, o índice considerado “saudável” pode “mascarar uma nutrição pobre e falhar em detectar diferenças cruciais entre gordura e conteúdo muscular”, escreve a pesquisadora. Já a presidente do CRM sustenta que o IMC funciona como um alerta inicial sobre a necessidade de buscar ajuda, mas lembra que “cada caso é um caso”.

A crítica mais contundente do grupo de estudiosos que defende a despatologização da obesidade – que dentro da medicina tem sido chamado de “Health at Every Size” (saúde para todos os tamanhos, em tradução livre) – é calcada na ideia de que seria contraproducente tratar o peso como uma doença: “Neste caso, o paciente é excluído do direito ao atendimento, pois, mesmo diante de um conjunto de sintomas, muitos médicos apenas mandam que a pessoa emagreça – afinal, eles precisam tratar uma doença, e a obesidade é tida como tal”, sustenta Natália.

Se havia consenso sobre a obesidade estar registrada no Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), agora essa é uma verdade que ganha ranhuras (e até trincas), avalia Natália – que já co-orientou um Trabalho de Conclusão de Curso em que se punha em questão as interfaces entre a gordofobia e a formação acadêmica em nutrição, na UFSC.

“A medicina, assim como outras ciências, é feita por seres humanos e pode errar. A histeria, por exemplo, foi considerada por muitos anos uma patologia por conta de uma visão machista da sociedade”, analisa Natália, emendando que o mesmo pode estar acontecendo agora por razão de um “prisma social gordofóbico”, avalia ela.

 

MULHERES QUE INSPIRAM

Desde criança, a tatuadora Carol Melo, 28, era pressionada para que fosse magra. Situação que piorou na adolescência. Então, na expectativa de se enquadrar ao “desejável” padrão estético e de saúde, ela adoeceu. “Aos 19 anos, comecei um processo para emagrecer com remédios. Perdi peso, me senti mais bonita. Mas, logo, meu corpo começou a reagir”, conta Cajurine, como prefere ser chamada. Por conta da medicação, teve gastrite e problemas respiratórios. Em consulta com outro profissional, os remédios foram suspensos.

“Daí, tripliquei meu peso e fiquei mal por isso”, conta, afirmando que a tentativa radical para emagrecer comprometeu sua saúde. Veio a baixa autoestima. Cajurine, até os 26 anos, evitava ser vista. A história começou a mudar quando começou a acompanhar blogueiras que debatiam sobre gordofobia. Agora, ela mesma é uma dessas mulheres que, por meio das redes sociais, inspiram outras tantas. “É um luta cotidiana”, afirma.

Inspirar outras mulheres é parte do dia a dia de Karoline Ribeiro, 27. Hoje modelo plus size, ela precisou vencer o descontentamento em relação ao próprio corpo para, então, brilhar nas passarelas. “Eu sempre fui grande, e minha irmã mais velha, menor. Ela era minha referência, e por muito tempo eu me culpava e me sentia feia”. Em 2014, se sagrou Miss Minas Gerais e ficou em quarto lugar no concurso nacional da categoria.

Vale dizer, Karol tem IMC de 29,7 kg/m². Está a 0,3 pontos de ser classificada como obesa. No entanto, com a saúde em dia, não sente necessidade de emagrecer e chegar ao peso considerado "ideal" para si. E tampouco os médicos que frequenta cobram isso dela.

A nutricionista Camilla Estima é uma dessas profissionais que, monitorando a saúde de seus pacientes, respeitam seu peso e não forçam emagrecimento. Frisando que vê a obesidade como uma doença crônica, ela defende, no entanto, que é preciso “desmistificar essa história de que magreza é padrão de saúde”. “Tenho pacientes com sobrepeso com exames normais e pacientes magros com exames ruins. Não é, portanto, um fator condicionante. É um dos indicadores, mas não dá para generalizar”, conclui.

 

O PROCESSO DE AUTOACEITAÇÃO

Por mais que tenha como verniz “ser questão de saúde”, muitas vezes a pressão pelo emagrecimento vem de um apelo meramente estético. Afinal, o padrão de beleza está umbilicalmente ligado ao corpo magro, pelo menos desde a década de 60. Aceitar o próprio corpo, diante da quase onipresente cobrança, não é tarefa fácil. E, tampouco, é impossível. É verdade que a autoaceitação demanda tempo, como relata o publicitário Marcelo Gomes, 28. Hoje, tamanho não é problema para ele, mas nem sempre foi assim. Por anos, o espelho era sinônimo de incômodo – e ele precisou emagrecer para, só depois, se dar bem com seu corpo “fora do padrão”.

Aos 18 anos, o rapaz iniciou uma série de procedimentos, entre remédios e dietas. Em dois meses, perdeu 40 kg. “Vivia em função do emagrecimento”, conta. Agora, quando vê as fotos de então, nota que o sorriso havia desaparecido do rosto. Era um período de descoberta, “nessa turbulência”, ele se descobriu gay. Com a compreensão da sua sexualidade, passou por uma situação curiosa: levou um bolo em um encontro. A razão: o pretendido moço achou Marcelo magro demais. “Foi aí que a ficha caiu, e eu comecei a entender que havia beleza em todos os corpos”, diz. Agora, quer evidenciar que, sim, “todo corpo é incrível!”. Reuniu amigos e criou o Rolê de Peso, que terá seu primeiro encontro na tarde de sábado (23), no bar Santa, no Horto. O clima, claro, é de Carnaval.

Não por acaso, o relato do publicitário faz lembrar outra história: a de Gabriela Nascimento, 26. Seguindo a regra, ela também sofria pressão para emagrecer. Na adolescência, fez um tratamento hormonal, perdeu peso, mas sofreu um trauma, que desencadeou nela uma série de distúrbios alimentares. Quando mais engordava, pior se sentia. Gabriela, como tantas outras, precisou do reconhecimento do outro para se entender consigo. 

"Mesmo que não gostasse de meu corpo, usava as roupas que queria – e nunca fui de muitos panos”, brinca. Por isso, uma moça a interpelou: “Disse que eu a inspirava, porque eu não ligava para o resto do mundo”, conta. Foi aí que a chave começou a virar. Mas essa mudança de perspectiva acerca de sua autoimagem só se consolidou mesmo quando passou a frequentar a militância negra. Então, passou a se entender como uma mulher preta e, simultaneamente, encontrou paz na conturbada relação com seu peso.

Barreiras e mitos

Estigma. Há um preconceito generalizado em relação aos corpos gordos – associados a adjetivos negativos: preguiçoso, desleixado, feio, incapaz.

Acesso. O constrangimento social é rotineiro e esbarra no acesso a serviços básicos: é impossível transpor a catraca do ônibus, o assento do avião é estreito demais, e as macas dos hospitais podem não suportar o peso do paciente.

Gênero. Mesmo no mercado de trabalho, o fator peso pode ser um impeditivo. Um preconceito que tem recorte de gênero: pesquisa da Universidade Cornell aponta que as obesas têm 50% menos chances de frequentar o ensino superior, 20% têm menos chances de se casar, têm sete vez mais chances de ter depressão e recebem 9% a menos que outras mulheres.

Dietas. Com a justificativa de ser atalho para o “corpo ideal”, a cada verão uma nova dieta é a moda da vez. Ocorre que, em 1959, um estudo clínico já indicava que entre 95% e 98% dessas tentativas de perder peso falhavam – e dois terços dos dietistas recuperavam mais quilos do que perderam.