Ele tem mais nomes do que Deus e está presente nas raízes culturais e espirituais da sociedade ocidental. Ele, o tinhoso, o capiroto. Quem fala sobre ele no livro “My News Explica o Diabo” é Edin Sued Abumanssur, doutor em ciências sociais e professor de sociologia da religião na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). 

 

Afinal, quem é o diabo? Fundamentalmente, ele é uma criação do cristianismo, embora sua origem remonte a 400 anos antes de Cristo. Não existe, em outras religiões, nada parecido com o diabo cristão: nem no judaísmo, nem nas religiões de matriz africana, nem nas religiões orientais. No islã há algo parecido, que, com certeza, foi influenciado pelo cristianismo. Para a teologia erudita da Idade Média e do início da modernidade, o diabo é o senhor de todos os demônios, imperador dos infernos, responsável pela dor e pelo sofrimento de homens e mulheres e por todos os desvios morais que questionam a ordem social. Para a cultura popular, que podemos ver, por exemplo, na literatura de cordel e nos contos e histórias que circulam principalmente no Brasil rural, o diabo é um serviçal, tolo e ingênuo que pode ser usado para algumas pequenas tarefas domésticas, pode ser enganado e ludibriado. É ele quem dá a paga ao avarento, ao adúltero, ao preguiçoso, ao maledicente. Ele, em geral, vem associado às pessoas poderosas, ao senhor de engenho, ao rico, às autoridades e ao clero, que não trabalham em favor dos pobres. O diabo serve a diferentes representações e a diferentes usos. 

Por que um livro sobre o diabo? Talvez este livro não tenha muito a ver com o diabo mesmo. Na verdade, ele trata da maneira como no Ocidente nós lidamos com o problema do mal. A gestão do mal – e de sua expressão temporal, a maldade – é o que subjuga e ao mesmo tempo motiva o ser humano em seu empreendimento civilizatório. Portanto, o diabo nos interessa apenas enquanto a maneira como, no Ocidente cristão, nós administramos o mal que nos rodeia. O livro é inconcluso, como acho que convém ao tema tratado. No entanto, termino com uma firme desconfiança: nem as ciências, nem a teologia estão apetrechadas o suficiente para uma adequada exposição do tinhoso ensaboado. 

 Como a cultura popular se refere ao diabo? Ele é tratado com a mesma sem-cerimônia dedicada àqueles que foram destituídos da majestade e estranhamento, próprios dos seres investidos de poder e autoridade. Entre belzebu e o cramulhão há um rebaixamento no trato da coisa. Com esse mesmo rebaixamento o diabo é tratado nos cultos pentecostais. É possível pensarmos, por outro lado, que a forma de tratamento das coisas sagradas esteja relacionada às posições de classe. O campo erudito tenderia a um tratamento mais formal e distanciado, com um viés racionalizante, das coisas santas. O campo popular da religiosidade, se assumirmos como válida a tese, desenvolve um comportamento mágico, mais incorporado às rotinas diárias e às lides da vida comum. 

 O senhor sustenta que o diabo morreu no século XVIII e Deus no século XIX. Não há mais espaço para esse pensamento no mundo atual? Nas camadas sociais mais intelectualizadas, na teologia erudita, entre acadêmicos, nem Deus, nem o diabo encontram um lugar natural e confortável em seus sistemas de representação do mundo. A ciência moderna expulsou um e outro de qualquer explicação sobre o mundo, a natureza, as sociedades e as subjetividades. No entanto, nas camadas mais populares, junto à grande massa da população, tanto Deus quanto o diabo estão cada vez mais presentes, necessários e atuantes. Para as populações mais pobres, sem acesso aos benefícios do Estado, à educação e à cultura formal, ambos continuam tendo, e nunca deixaram de ter, uma grande valia. Para elas, sem Deus ou sem o diabo, a vida perderia todo sentido e razão de ser. 

No livro, o senhor diz que “o diabo é uma produção cultural necessária para se fechar a conta da maldade”. Como assim? As religiões monoteístas não têm como resolver o problema da maldade em face a um Deus único tido por onipotente e amoroso em essência. O diabo foi uma solução cristã, mas esta é uma solução problemática porque a existência do mal questiona o poder de Deus ou o amor de Deus. Pode-se lançar na conta do diabo a responsabilidade por todo o mal que nos atinge. Com isso, livra-se Deus dessa responsabilidade, mas às custas de sua onipotência. De qualquer forma, a criação do diabo permite dar nome ao mal e, assim, dar um sentido para a dor e o sofrimento. Sofrer o mal, sem ver nele algum sentido, é sofrê-lo duas vezes. Ele se torna mais amplo, mais profundo e, pior, sem solução. 

O mal é propriedade exclusiva do diabo? Podemos distinguir o mal natural e o mal moral. O mal natural é aquele que sofremos por alguma causa natural, um desastre, uma epidemia ou qualquer coisa assim. Do mal natural somos apenas pacientes. O mal moral é aquele que sofremos ou praticamos por maldade, por um desvio de caráter, por um descuido ou distração, pela irracionalidade. No mal moral somos, os seres humanos, seus agentes e pacientes. O diabo, segundo Tomás de Aquino, estaria circunscrito ao mal moral. Mas, segundo algumas igrejas evangélicas, todo o mal e toda a maldade seriam de responsabilidade do diabo. No fundo, a resposta vai depender de cada pessoa e daquilo que faz mais sentido para ela em uma situação de sofrimento. 

Fale um pouco sobre o ritual do exorcismo. Embora as práticas exorcistas e o interesse da Igreja Católica em normalizá-las existam desde o início da modernidade, sem falarmos nos textos bíblicos do Novo Testamento, é no final do século XIX que o exorcismo ganha os holofotes. Isso se deve ao fato de que, de alguma forma, a ação dos demônios na subjetividade dos indivíduos coloca em dúvida a própria existência do diabo. A fragilidade da figuração do mal exclusivamente nesse personagem, construído a duras penas desde o início do século XIII, se acentua a partir do final do século XVIII. Nessa época as fogueiras inquisitoriais, católicas ou protestantes, já não mais ardiam no continente europeu. O diabo como realidade objetiva se esvanecia a ponto de os setores mais intelectualizados na sociedade – acadêmicos, artistas, filósofos e livres pensadores – virem com profundo desprezo e pouco-caso qualquer referência a ele como causa formal ou material dos males que acometiam as nações. Resta ao diabo ocupar o único lugar que lhe sobrou: a subjetividade, a mente, o espírito das pessoas. 

A Igreja renunciou ao diabo no século XIX? A racionalidade teológica não foi capaz de encontrar um lugar confortável para ele no arcabouço doutrinário para os novos tempos que chegavam. Aos poucos ele foi deixando de ser um operador conceitual nas relações da Igreja com o mundo. Sua presença no debate erudito tornou-se marginal e intermitente. Com isso, a cultura popular percebeu o campo aberto para a retomada de um personagem que, distante da lógica racionalizante, imprimia muito sentido para a inteligibilidade dos infortúnios diários. O monopólio da Igreja sobre a figura do diabo, construído a partir da desapropriação do povo da sua capacidade de produzir e gerir os bens da salvação, é quebrado quando essa mesma Igreja não vê mais funcionalidade para esse rico personagem 

Lançamento

“My News Explica o Diabo” 

Edin Sued Abumanssur 

Editora Almedina Brasil 

110 páginas 

R$ 49