Nem demorou muito. Já nas primeiras semanas da quarentena, por volta de abril do ano passado, Maria de Lourdes Silveira, 58, se deu conta de que sua rotina havia virado de ponta-cabeça – não só pelo medo da contaminação por um vírus então desconhecido e pela necessidade de tomar variadas medidas protetivas, mas também pelo volume de trabalho em casa, que, na avaliação dela, no mínimo triplicou.
Lourdinha, como é conhecida, viu o volume de vasilhames sujos na pia aumentar substancialmente, já que os demais integrantes de seu núcleo – marido e dois filhos adultos –, que antes almoçavam na rua, passaram a fazer essa refeição em casa. Não bastasse, como a cada saída (mesmo que reduzidas) as roupas que vinham da rua eram deixadas na área, para evitar contaminações, o volume de peças a lavar e a passar também deu um salto. Mesmo com as medidas de flexibilização, hoje, cerca de um ano e meio depois daquele período, a vida dela não voltou ao curso de antes da pandemia, motivo pelo qual não se furta a usar a palavra “exaurida” para definir seu estado de ânimo.
Maria de Lourdes pertence a um contingente de pessoas que “não trabalham fora”, ainda hoje conhecidas como “donas de casa”. Na verdade, a distinção de gênero nem faz mais jus à realidade, já que, nos tempos atuais, homens também exercem essa função – alguns por estarem desempregados, outros por opção mesmo do casal, como quando o salário da mulher é muito mais alto que o do marido e, diante da chegada dos filhos, os dois concluem que é mais interessante que ele abra mão de seu emprego para cuidar da prole.
De todo modo, como forma de dar visibilidade e homenagear essas pessoas que exercem intrincadas tarefas para garantir o funcionamento do lar, até um dia para elas foi criado: o 31 de outubro, que, no Brasil, é o Dia da Dona de Casa. Não há informações precisas sobre o que motivou a escolha da data, e vale pontuar, ainda, que algumas cidades a celebram em outros dias do ano, devido, principalmente, a propostas de vereadores.
Mas, se Lourdinha é uma dona de casa na acepção do termo, ou seja, não exerce outra atividade remunerada (embora já tenha sido bancária), mesmo quem tem uma fonte de renda (registrada em carteira ou não) também pode, e deve, ter a atividade “dona de casa” adicionada às suas credenciais, até para receber o mérito da dupla jornada.
Múltiplas funções. Em home office, a assessora de comunicação Ana Paula Romeiro usa um termo afim ao empregado por Lourdinha para falar de como se encontra neste momento: “exausta”. “Trabalho em casa e, com a pandemia, acordo às seis da manhã, vejo o café da manhã, almoço e jantar, além de fazer as camas, lavar louça e levar meu filho para lá e para cá. À noite, caio dura na cama e chego nos finais de semana supercansada”, diz ela, que, como Lourdinha, entende que a pandemia piorou a situação. Questionada sobre a valorização do que faz, Ana ri: “Nenhuma”.
A psicóloga Érica Arantes concorda que, com a pandemia, a multiplicidade de funções que costumam recair sobre os ombros das mulheres se exacerbou. “A mulher já tinha toda uma questão de assumir várias funções, de esposa, mãe, dona de casa... Trabalhando em casa (devido à quarentena), ela não conseguiu mais fazer essa divisão: ela não sai mais para o trabalho, o trabalho está em casa, assim como todas as outras funções, os filhos, a cozinha, a casa para arrumar, a roupa para lavar”, enumera ela, lembrando que há de se inserir toda essa nova realidade em um sistema ainda muito machista. ““Ainda vemos pouca participação dos homens (nas tarefas domésticas). Claro, não quero generalizar, há mudanças, muitos homens estão de fato empenhados em dividir as tarefas. Mas o que se observa é a mulher assumir muito esse lugar, o que sabemos ser uma questão cultural. O ser humano tende a repetir aquilo que aprendeu, é um comportamento que muitas vezes não vai nem no racional. A pessoa faz porque sempre funcionou assim, então, vamos repetindo”.”.
Um papel ainda pouco valorizado na sociedade
A falta de reconhecimento é disparado uma das maiores queixas de quem carrega no ombro a parte mais árdua de fazer uma casa funcionar. “Assumir esse papel de dona de casa é muito pouco valorizado na nossa sociedade, sendo que, muitas vezes, é o que permite ao marido sair para trabalhar sem se preocupar com os cuidados com os filhos. Na verdade, acho que a mulher é desvalorizada de modo geral, porque, quando trabalha fora, acaba tendo que dar conta da casa e dos filhos, assumindo jornada dupla, tripla...”, desabafa a jornalista Sofia* (nome fictício, a pedido da entrevistada), acrescentando que, da sua parte, vem fazendo um trabalhando interno para se permitir deixar coisas por fazer.
Intuitivamente, ela toma a atitude que Érica Arantes sugeriria. “Já que, no piloto automático, acabamos por querer fazer todas as funções, porque assim aprendemos, é aconselhável que nos exercitemos a fazer o contrário, tipo: ‘Agora não vou arrumar a cozinha porque vou assistir a uma série’. ‘Não vou lavar a louça agora porque quero fazer uma caminhada’. Falo que, muitas vezes, as mulheres ainda ficam esperando atitudes dos homens – o que, claro, seria bacana se funcionasse. Mas como, pelo sistema que vivemos, muitos deles também se acostumaram a agir assim, podem ser orientados. Então, é falar: Olha, hoje você fica com as crianças porque vou sair com as minhas amigas’. E não ficar na expectativa de que essa atitude venha da parte dele, porque, se não acontecer, vai ficar alimentando mágoas e frustrações. Às vezes, é preciso que a mulher pontue esse lugar do limite”.
Embora já tenha feito isso, Sofia confessa que não raras vezes capitulou. “Pior é que eu sou a única que sofro com as coisas não feitas. Marido e filhos não se dão conta nem quando falo. Por aqui, se peço para fazer alguma coisa, até fazem, mas no tempo deles, do jeito deles, nunca com a urgência da necessidade. E é preciso pedir todas as vezes, lembrar. Não adianta só dizer que a partir daquele dia será parte das obrigações de um ou de outro”. Não raro a peleja chega ao ponto de Sofia desistir. “Como detesto mandar, acabo fazendo (a tarefa para a qual pediu ajuda). Pra mim, a carga mental é tão pesada quanto fazer em si”.
Um outro ponto que a jornalista ressalta é que o trabalho doméstico parece nunca acabar. “Se a mulher tem crianças, então é possível/provável que trabalhe sem parar, sem remuneração, sem reconhecimento, sem folga e, a menos que as coisas fiquem bem acordadas com os outros moradores da casa, sem ajuda”. Sofia frisa que, hoje, muitas mulheres escolhem não trabalhar fora para acompanhar o dia a dia dos filhos de perto, enquanto os maridos arcam com as despesas, em comum acordo. “Mas acho que, mesmo quando essa decisão se dá a partir do que o casal considera melhor para a família, é preciso estabelecer uma rotina na qual sobre um tempo para a mulher descansar, se distrair, fazer coisas por si própria e que tenha acesso ao dinheiro. E que o marido nunca justifique a falta de ajuda nos momentos que estiver em casa com falas do tipo: ‘Estou bancando’”.