COMPANHEIRISMO

Para os bromossexuais, o que realmente importa é a amizade

Relação antiga, homens heterossexuais amigos de homossexuais aposentam o velho preconceito

Dom, 23/10/16 - 02h00
Na amizade entre Saymiton Alves e Vitor Santiago, orientação sexual de cada um não tem o menor peso | Foto: Uarlen Valério

Entre eles não falta intimidade. É com o estudante de arquitetura Saymiton Alves, 27, que o garçom Vítor Santiago, 24, sai para barzinhos e casas de amigos. Grandes companheiros, eles também gostam de cozinhar juntos e até vão para a balada, mas com objetivos diferentes. Enquanto Saymiton se interessa por homens, Vítor sente atração por mulheres. Não é novidade que esse tipo de relação de amizade entre homens héteros e homossexuais sempre existiu, mas só recentemente eles passaram a ser representados com mais destaque e naturalidade em filmes, livros e blogs. Talvez por isso a relação passou a receber um nome: amizade bromossexual.

Vítor conta que eles se conheceram enquanto faziam cursinho pré-vestibular, e lembra com carinho da forma como descobriu sobre a orientação sexual do amigo. “Eu desconfiava, mas nunca tive coragem de perguntar. Depois de um tempo, eu perguntei, e a gente riu muito da situação, mas não mudou nada. A amizade só foi aumentando”, diz.

Para Saymiton, a relação é quase igual à de irmãos. “Tenho muita liberdade com meu amigo hétero. Brinco de abraçar, beijar no rosto, brincadeira mesmo, como se fosse irmão”, diz.

O preconceito com o universo homossexual, segundo Saymiton, faz com que a amizade entre eles seja sempre questionada pelos outros. “O homem é sempre identificado como macho alfa, pegador e galinha, e as pessoas acham que gay é promíscuo, então passam a duvidar da sexualidade do hétero só porque ele tem essa amizade”, afirma.

Certa vez, o estudante postou em suas redes sociais uma foto carregando o amigo nas costas e recebeu uma enxurrada de críticas. “Vários comentários preconceituosos, até da própria família. Tive que deletar alguns mais pesados”, conta Saymiton.

Para Vitor, não há nada que os diferencie de uma amizade entre pessoas de mesma orientação sexual. “A diferença está na cabeça das pessoas. Essa amizade mais profunda me deixou mais aberto ao universo homossexual. Hoje em dia consigo entender melhor as dores e as lutas deles, consigo compreender muito melhor, e o convívio com outros gays ficou muito mais legal”, reforça.

Convivência. Para o presidente da Associação Brasileira de Famílias Homoafetivas (Abrafh), Rogério Koscheck, não há mais espaço para “o clube do Bolinha e da Luluzinha”. “A gente luta para que não vivamos em guetos, pois viver só com as pessoas que compartilham das mesmas situações acaba sendo fácil. A gente quer mostrar que as famílias e as crianças podem (devem) interagir e brincar com outras crianças de outras famílias”, diz, fazendo referência ao trabalho que realiza.

Koscheck, no entanto, reconhece que outro desafio ao decidir se assumir, além de pensar na reação da família, é justamente a iminência de perder algumas amizades. “Quando ainda estava no meu dilema, tinha muito receio. Desde que me vi como homossexual, eu me declarei aos parentes e amigos, e, em 95% dos casos não houve qualquer problema. Mas demorei a falar com amigo hétero, que descobriu por terceiros, e depois me xingou por eu não ter contado antes para ele”, lembra o presidente da Abrafh.

FOTO: ARQUIVO PESSOAL
Relações. Rogério Koscheck é presidente da Associação Brasileira de Famílias Homoafetivas. “O objetivo é que não haja diferenciação do respeito”, diz.


Minientrevista

Jarlath Gregory
Escritor, 38 anos
irlandês

O seu mais novo romance, “The Organised Criminal” (“O Criminoso Organizado”, em tradução livre), gira em torno de uma amizade fraternal entre um gay e um hétero. Foi baseada em alguma história real?

Os personagens são completamente fictícios, mas notei que não há mais uma barreira para heterossexuais e homossexuais serem amigos. Não foi minha intenção colocar isso no centro das atenções, mas o livro reflete como as coisas mudaram socialmente.

Você é homossexual. Como construiu seu círculo de amizades?

A maioria dos meus amigos mais antigos é de gays que eu conheci na época da escola. Tenho amigos mais recentes que são héteros, em sua maioria pessoas que conheci pelo trabalho.

Você reconheceu que esse tipo de relacionamento não seria verossímil para o grande público dez anos atrás. O que mais contribuiu para essa mudança?

A maior mudança é que mais pessoas homossexuais saíram do armário, há mais visibilidade gay. Todo mundo conhece alguém que é gay, seja no trabalho, na família ou na vizinhança. Isso é ótimo, porque os jovens crescem compreendendo que ser gay é normal.

O preconceito realmente é mais forte no universo masculino ou existe no lado feminino também?

As mulheres tendem a ser mais abertas sobre o amor e a sexualidade, e os homens, provavelmente, lutam mais contra seus sentimentos. É uma vergonha. Todos deveriam se abraçar mais.


Depoimento

Conceito é machista, critica músico

“Qual é o nível de diversidade das suas amizades?”, questiona o cantor Marcelo Veronez, 35. “Se você não conhece nenhuma travesti ou transexual ou não tem nenhuma relação com alguém com deficiência, negro ou gay, seu círculo de amizades está fechadinho demais”, diz ele. Para o cantor, o “novo” conceito de amizade bromossexual se revela também machista.

Por causa do bullying sofrido durante o período escolar, Marcelo disse ter passado a selecionar suas amizades priorizando duas coisas, que para ele são básicas: admiração e respeito. Um desses amigos cuidadosamente selecionados é o ator e iluminador Jésus Lataliza, 31, com quem também divide a casa onde moram há quatro anos. “É gostoso quando ele está em casa, porque é um ótimo cozinheiro e ouvinte. E aquilo que admiro no outro são as coisas que quero aprender para ser melhor. Como ele é um ótimo ouvinte, gosto de estar perto para ele me ensinar isso. Tenho a alegria de tê-lo como parceiro de caminhada. É mais que um amigo, é uma parceria de vida mesmo”, afirma.

Do outro lado, Jésus elogia a sensibilidade e o bom gosto musical do amigo. “Ele acaba me aplicando muitas coisas que eu não escutava tanto, como Carlinhos Brown, Madonna, Kid Abelha, Marina Lima e Fernanda Abreu. Além disso, percebo que, de certa forma, os homossexuais, em certo aspecto, acabam tendo a sensibilidade muito aflorada. Não que os héteros não sejam sensíveis, mas eu acabo absorvendo muito isso e levo pra onde quer que eu vá”, comenta.

A intimidade entre eles é tanta que a amizade já virou praticamente um casamento. “A gente se chama um ao outro de marido. O Marcelo tem uma ‘filha’, que é a labradora Maria Betânia, mas eu acabo sendo pai dela também. A gente cuida de uma casa, de um lar, de uma energia. Não é só uma coisa simples, corriqueira, de funções de casa”, conta Jésus.

Por todo esse companheirismo e admiração que um nutre pelo outro, o ator prefere achar graça da desconfiança das pessoas em relação a sua amizade com Marcelo. “No princípio, para algumas pessoas preconceituosas, houve um certo estranhamento por eu estar indo morar com outro homem. De certa forma, isso vem diminuindo, nossa geração está destravando essa situação, dando mais a cara a tapa, e acho que quem diz isso são pessoas malresolvidas”, explica.

Para a terapeuta de casal e especialista em sexualidade humana Tatiana Leite, todos os rótulos acabam limitando. “Quanto mais pudermos falar disso, nas escolas, dentro de casa e em outros ambientes, mais se torna natural e passa a não ser julgado como diferente”, afirma. 

Documentário

“Seja homem”, “não chore”, “seu viadinho”, “seu boiola”, “faça sexo”, “seja corajoso”… Essas são algumas expressões que muitos meninos estão acostumados a ouvir desde cedo. Além de mostrar como a imposição desse modelo machista é prejudicial, aumentando a incidência de depressão e suicídio, o filme “The Mask You Live In” (“A máscara que você veste”, em tradução livre), da cineasta Jennifer Siebel Newsom, traz dados de como essa educação baseada no incentivo à hipermasculinidade está diretamente ligada ao aumento do número de homicídios e violência. A cineasta também assina o aclamado “Miss Representation”, ambos disponíveis na Netflix.


Questão cultural

Estereótipos e tabus reforçam preconceitos

A diversidade sexual deveria ser algo natural, mas, por enquanto, o “deveria” é quase sempre uma teoria. Na prática, o preconceito ainda está muito presente, impedindo que muitas relações se estabeleçam.

De acordo com a psicóloga e sexóloga Priscila Junqueira, parece que as pessoas têm que aprender e, por isso, deram o nome bromossexual. “Talvez a necessidade de rotular e de nomear é para ver se realmente vira um conceito, algo que as pessoas vão identificar, levantar a bandeira e defender. Pode ser positivo por esse ponto de vista, de colocar o ser humano cada vez mais para refletir, e não ficar estático”, afirma.

Nas relações de amizade, quanto mais significativo o grau de intimidade, mais abertura para tratar de temas de cunho privado e agir com espontaneidade. Sobretudo nesses casos de diferença de gênero, o laço afetivo aproxima e pode permitir olhar para além da orientação sexual. Além disso, segundo Junqueira, uma convivência plural é importante para o desenvolvimento e o amadurecimento emocional. “Se a pessoa só convive com iguais, fica difícil. É preciso se relacionar para poder crescer”, diz.

A terapeuta de casal e especialista em sexualidade humana Tatiana Leite acredita que a desconfiança do quão real possam ser as relações entre pessoas com identidades de gênero diferentes passa por estereótipos e tabus construídos culturalmente: “Crescemos escutando que não existe amizade entre homens e mulheres, que sempre existe uma segunda intenção. Tudo isso acaba levando a situações de violência que estão ligadas a esses estereótipos”.

FOTO: Bruna Carvalho e Igor Zaidan/Divulgação
Nas telas. A parceria entre Jésus e Marcelo já proporcionou a eles até a realização de alguns trabalhos juntos, como a série “Um Morro do Barulho”, que estreia em 2017