Quando pensou em promover uma festa sexual-fetichista por videochamada – uma “websuruba”, como o evento tem sido chamado –, o designer e estudante de medicina Uno Vulpo, 24, desconfiou que a iniciativa não fosse vingar e já até tinha preparado um post bem-humorado para o caso de o projeto fracassar – ou melhor, “flopar”. Uma mensagem que nunca precisou ser publicada, afinal, bastou abrir as inscrições para que nada menos que 3.000 interessados fizessem cadastro para ter acesso ao link da sala virtual. No evento, que deve chegar à sua terceira edição ainda na primeira quinzena de agosto, um DJ embala, madrugada adentro, as performances dos mais desinibidos, enquanto os mais envergonhados podem até optar por manter suas câmeras desligadas – mas, em geral, à medida que o tempo passa, os participantes vão dando as caras (ou algo mais), ou surgem escondidos atrás de improvisadas ou elaboradas máscaras.
Mais do que simples divertimento, ainda que este seja um componente essencial desses encontros, as bem-sucedidas festas organizadas por Vulpo vêm na esteira de iniciativas que, turbinadas pela quarentena, trazem em seu bojo uma série de questões socioculturais e políticas. Sobretudo, são eventos reveladores de uma geracional quebra de paradigmas, indicando uma reconformação de conceitos como o de intimidade e de privacidade e a reapropriação e ressignificação do erotismo e da pornografia.
“Estamos passando por um momento em que o movimento sociocultural da libertação dos corpos e da livre expressão da sexualidade, que teve início nos anos 1950, se encontra com a Era Digital, em que temos a possibilidade de criar nosso próprio conteúdo erótico, o que é facilitado pelo anonimato e também pela (redução da sensação de) distância, pois não precisamos estar (presencialmente) próximos a outras pessoas para ter contato sexual”, analisa o sexólogo e educador Pedro Drubscky.
Efeito do encontro desses dois fenômenos, as transformações propostas pelo primeiro foram aceleradas pelo segundo. Assim, se o consumo e a troca de material de teor sexual, até pouco tempo atrás, era entendido como algo clandestino e razão de vergonha, hoje, o compartilhamento de conteúdos afins se dá de maneira, digamos, desencanada e empoderada. Ao mesmo tempo, aquela ideia de uma pornografia irreal e muito focada apenas no prazer masculino e começa a dar lugar a um outro tipo de produto, mais diverso e inclusivo.
É esse o lugar que as festas de Vulpo e diversos outros projetos buscam ocupar. Caso da mostra competitiva “Nude Casa”, organizada pela DJ e percussionista Sandra Leão, 32, e pela arquiteta Raquel Muguet, 24, e que acontecia no Instagram, rede social que tem políticas muito rígidas em relação ao compartilhamento de conteúdo erótico – inclusive por isso, quatro perfis dedicados à disputa já foram derrubados. “Ainda estou pensando em criar outra página, mas nada certo, pois, como é uma trabalheira danada e não recebemos nada por isso, então acaba ficando pesado. Mas a ideia ainda não morreu”, comenta Sandra.
Para a DJ e percussionista, o sucesso da empreitada se explica, em parte, por permitir que as pessoas “façam as pazes com o próprio corpo”. “Recebi muitas fotos de pessoas que fogem ao padrão de beleza, de pessoas que nunca tinham tirado uma nude e que até pediram dicas de como fazer”, ressalta, salientando que a diversidade é outra característica fundamental.
Experiência frustrante estimulou mineiro a criar espaços mais plurais
As ponderações de Sandra Leão são respaldadas em gênero, número e caso por Uno Vulpo. Não à toa, quando organizou o primeiro encontro, o mineiro vinha de uma frustrante saga de homogêneas e entediantes festas sexuais-fetichistas online. “Vi que aqueles eram locais que hierarquizam os corpos, em que mulheres e pessoas trans não estavam presentes, que traziam a figura masculina, muito dentro de um padrão normativo, essencialmente branco e magro, como porta-voz das discussões sexuais. E, por isso, eu não me sentia à vontade para interagir com pessoas”, cita. Dessa inquietação, ele passou, então, a buscar formas de construir outro horizonte possível.
Para criar um ambiente de estímulo à pluralidade, Vulpo acionou pessoas que poderiam trazer consigo corpos que, até então, pareciam apartados dessa experiência, como a PantyNova, um sexshop virtual voltado para o público lésbico, e a EDIYPorn, uma plataforma que trabalha com pautas LGBTs e feministas dentro dessa linguagem audiovisual da pornografia. Funcionou. Nas duas edições, que chegaram a somar mais de 600 participantes simultâneos, o que se viu foi um mosaico da diversidade se sobrepondo à estética das videochamadas, que demarcam como as relações humanas foram reviradas pela maior emergência de saúde pública em cem anos.
Vale registrar: o interesse de Vulpo em romper tabus em relação à expressão da sexualidade já vinha de tempos. Tanto que as festas são organizadas pelo Sento Mesmo, um projeto que reúne objetos de interesse do mineiro: “Nos campos da saúde e das artes, eu já tinha interesse em debater drogas e sexualidade”, comenta ele, que vinha trabalhando com zines (espécie de pequena revista fotocopiada e autoral) que miravam a construção de uma instalação que, ao chocar, desencadearia reflexão. “Dentro da minha experiência profissional, na medicina, cheguei a ser confrontado com a realidade de meninas muito jovens grávidas, de pessoas com 14 anos com sífilis e HIV, de mulheres de 70 anos que nunca tiveram orgasmo na vida. Tudo é sobre educação sexual, é sobre se conhecer”, diz.
Mas, sim, eventos com proposta fetichista-sexual já existiam antes que a palavra quarentena ocupasse lugar central no léxico popular. Essas reuniões, todavia, aconteciam de modo um tanto mais privado, sublinha a psicóloga e sexóloga Enylda Motta. Ela acredita que “a pandemia potencializa esses espaços como escape, pois o desejo sexual está à flor da pele”, diz, ponderando que a tecnologia é uma ferramenta de descarga dessa tensão, o que não significa que vá trazer, necessariamente, satisfação.
A sexóloga também examina que, hoje, as pessoas têm mais consciência do que significa ter uma foto vazada na internet, mas, ao mesmo tempo, por existir mais liberdade sexual com as descobertas digitais e por haver mais abertura para a busca pelo autoconhecimento corporal, “muitos perderam esse medo de se expor”. Enylda acredita que essas festas podem, inclusive, trazer descobertas – “como em relação ao se sentir voyer”, cita, completando que, até elaborar esses sentimentos, ao fim do evento (e do after, que tem sido regra nessas produções), a sensação que pode ficar é a de uma mistura de prazer, solidão e ressaca.
Expressão da sexualidade é mais livre, e conceito de intimidade se transformou
Mesmo que não tenha participado nem da mostra idealizada por Sandra Leão e tampouco das festas organizadas por Uno Vulpo, a estudante de arquitetura Cláudia Teixeira, 22, é exemplo de como a relação com o próprio corpo, a expressão da sexualidade e a ideia de intimidade já escapam a conceitos muito restritos e limitantes.
E, apesar de ainda ter que lidar com situações de assédio, Cláudia acredita que – também pelo fato de, associado às pautas feministas, a internet possibilitar mais liberdade em expor o próprio corpo e em falar da sexualidade – as discussões sobre exposição indevida e importunação sexual têm amadurecido. “Você pode até ver um nude que eu tenha compartilhado, mas vai também ver também como eu me posiciono. Então, fica muito evidente que existe um limite, que não estou aberta a receber nude não solicitado ou que não estou disponível para que uma pessoa venha ter uma conversa sexual comigo”, diz.
A experiência dela é alegórica de um flagrante choque geracional provocado por essas novas compreensões e dinâmicas sociais: de uma família conservadora e religiosa, há poucos anos Cláudia, que hoje fala abertamente sobre temas como o prazer sexual feminino, evitava usar shorts curtos para não desagradar parentes mais próximos.
De fato, “o que presenciamos é uma mudança do que se entende como privacidade e intimidade. É uma mudança na forma como as pessoas estão se expondo. Esses conceitos, hoje, são muitos diferentes de anos atrás, e muito disso em decorrência de como operam as redes sociais”, avalia Theo Lerner, sexólogo da divisão de clínicas ginecológicas do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP).
E a relação com a pornografia também se faz outra. “Inicialmente, quando a internet surge, a pornografia torna-se uma opção por ser algo de fácil acesso e porque poderia ser consumida anonimamente. Com o advento dos smartphones, surgiu o “sexting” (troca de fotos íntimas de nudez e sexo, mensagens de textos insinuantes e eróticas por meio de redes sociais e aplicativos). Hoje, já existem modalidades de sexo virtual funcionando. E, algumas delas, dissociadas daquela sensação de vergonha, de clandestinidade”, analisa o sexólogo e educador Pedro Drubscky.
Pandemia acentua virtualização, mas é preciso cuidado
Afinados com outros especialistas, Enylda Motta, Theo Lerner e Pedro Drubscky concordam que a pandemia e as medidas de isolamento social vão deixar marcas nas dinâmicas e aceleraram o processo de virtualização das relações afetiva-sexuais – uma tendência que já vinha sendo percebida pelos estudiosos.
“Uma das poucas certezas sobre as mutações da sexualidade nesses tempos é a virtualização dos desejos e das práticas. Não é como se a gente tivesse criando algo novo, mas há um crescimento exponencial no uso desses recursos”, avalia o antropólogo Victor Hugo de Souza Barreto, mencionando como exemplo a intensificação dos programas de prostituição feitos virtualmente, do sexting e da “pornificação de si” (indo da exposição de práticas tidas como íntimas nas redes sociais até a monetização de um material mais explícito em plataformas virtuais pagas).
As razões, aponta o antropólogo no texto “Pandemia, sexualidade e percepção do risco: algumas notas sobre quarentena e desejo”, podem ser diversas: “maior tempo livre, tédio, estimular a comunicação em um momento de isolamento, dar conta de alguma forma da libido e, até mesmo, a complementação da renda”, enumera.
Um levantamento do aplicativo de relacionamentos Happn, realizado entre 4 e 11 de maio e ouvindo 1.117 usuários da plataforma, reforça a tese: de acordo com o estudo, 31% dos brasileiros inscritos praticaram sexting durante a quarentena. Para cerca de metade (15%), a primeira vez foi justamente neste período. “É um fenômeno interessante em que podemos observar como a sexualidade é algo fluido, que se adapta a contextos adversos”, opina o sexólogo Pedro Drubscky. Para ele, “a grande novidade é o reconhecimento institucional do sexo virtual enquanto modalidade sexual”, diz, lembrando que a prefeitura de Nova York, nos Estados Unidos, recomendou o método como alternativa aos moradores da megalópole.