Ana e Laura (nomes fictícios) se conheceram por acaso, quando o namorado da primeira trabalhava no mesmo departamento da última. Daí, em um desses encontros de colegas de trabalho que incluem agregados, calhou de as duas se aproximarem. Laura, afinal, parecia uma pessoa divertida e aberta a novas amizades. Com o tempo, as trocas entre as duas passaram a fluir tão bem que, quando Ana rompeu com o seu companheiro, encontrou apoio justamente naquela amiga que havia conhecido por intermédio dele. Foi a partir de então que as duas se tornaram quase inseparáveis. 

O que parecia um exemplo de amizade feminina, contudo, ainda se revelaria um pesadelo. Laura, cada vez mais, se mostrava ciumenta e invasiva, sendo excessivamente crítica aos comportamentos e escolhas de Ana e usando suas vulnerabilidades para atacá-la. “Eu havia me tornado muito ansiosa. Toda mensagem que recebia dela, eu demorava horas para ler, porque eu tinha medo de ser um xingamento, uma pressão. Toda vez que ela me chamava para sair, eu sentia medo do que poderia acontecer naquele encontro”, relembra, inteirando que, em todo esse período, reconhece que elas tiveram bons momentos. “Ela me ajudou, sim, em momentos que eu estava para baixo. Só que, ao mesmo tempo, ela também se aproveitava das minhas fragilidades para me machucar ainda mais”, pontua. 

Apesar de tanta apreensão, Ana na maioria das vezes se via como a “errada” e, por isso, não conseguia reagir, se sentindo culpada. “Demorou até eu perceber a dimensão daquilo. Na verdade, foi só quando percebi que a dinâmica dela com as outras pessoas era igualmente problemática que entendi que eu não queria mais viver aquilo. E, então, eu simplesmente não lhe respondi mais nas redes sociais. Eu sumi da vida dela”, recorda sobre o momento em que decidiu desfazer aquele laço. “Ela ainda me procurou uma vez, mas logo também sumiu”, pontua. 

A história de Ana não é um caso isolado. Muitas pessoas passam por situações semelhantes de ruptura de amizades que se tornam insustentáveis ou prejudiciais, mas, enquanto os términos de relações amorosas são vastamente debatidos, pouco se fala sobre o outro tipo de situação. Para o psicólogo Jailton de Souza, os rompimentos de amizades podem ser tão significativos quanto o fim de um namoro ou casamento, pois em todos esses casos há afetividade envolvida. Ele explica que uma das principais causas que levam uma amizade ao fim se relaciona à quebra de confiança, que pode colocar em xeque uma relação de anos.

“Muitas vezes esse vínculo de confiança é quebrado não somente em ações direcionadas à pessoa que está dentro da amizade, mas também a outras pessoas. Situações em que a fragilidade dos valores daquele amigo ou amiga, como honestidade e sinceridade, acaba sendo exposta”, avalia, fazendo eco ao relato que abre esta reportagem. 

Impactos 

Jailton de Souza examina que uma das consequências do rompimento de uma amizade é o sentimento de culpa por aquela amizade não ter dado certo. Sensação que, muitas vezes, é acompanhada de outras, como a de vazio, a de perda e até a de luto. Mas ele ressalta que essa ruptura não se dá exclusivamente por culpa de uma das partes, mas por um vínculo que ficou desconfiado, por uma questão em que a confiança foi colocada em xeque pelo outro.

“Nesse momento, precisamos entender que não dá para se ter uma amizade em que tudo que a pessoa fala gera desconfiança, em que tenho restrições do que falar por medo de essa pessoa usar isso de uma forma avessa ao que eu havia dito”, crava o professor do curso de psicologia na Estácio BH. 

Diga-se, ao falar sobre esse conjunto de sensações, Souza parece descrever precisamente a experiência de Ana. “Depois de tudo, eu ainda me senti muito culpada. Me culpei muitas vezes. Tipo, será que estou fazendo a coisa certa? Será que fui uma boa amiga? E, nesse momento, eu tive que refletir muito comigo mesma”, pontua, acrescentando que suas experiências do dia a dia acabaram lhe mostrando que, sim, sua escolha foi a mais acertada.

“A minha vida andou tão bem depois do rompimento, sabe? Eu consegui retomar amizades calorosas, que me fizeram tão bem e das quais eu tinha me afastado por causa dela. Hoje, sinto que até a minha energia melhorou”, observa. 

‘Livramento’ 

Para lidar com os sentimentos de culpa, raiva e tristeza que podem surgir, o analista comportamental Jailton de Souza recomenda exatamente a busca de apoio em outras pessoas que possam ouvir, acolher e ajudar a superar essa fase. Ele também sugere buscar atividades que façam bem, que distraiam, que façam sentir prazer e alegria. Além disso, aconselha reconhecer e expressar os sentimentos, sem negá-los ou reprimi-los. Nesse sentido, aponta que pode ser útil escrever um diário, fazer uma carta, conversar com alguém de confiança ou até mesmo procurar ajuda profissional se for necessário.  

“O importante é não se isolar, nem se culpar, nem se fechar para novas amizades. A vida é feita de ciclos, e às vezes é preciso encerrar um para começar outro”, conclui o psicólogo, asseverando que essa quebra de vínculos afetivos é um processo complexo e doloroso, mas que também pode ser uma oportunidade de crescimento e transformação. “É extremamente importante permitir vivenciar essas emoções, buscar apoio emocional e cuidar principalmente de você, de compreender que essa amizade, apesar de ter vínculos afetivos, tinha e tem feito muito mais mal do que bem, e não querer que essa amizade vire dependência”, reforça. 

Instintivamente, ainda que não tivesse ouvido o conselho de Souza de fazer de um processo doloroso, mas libertador, um trampolim para o autoconhecimento, Ana parece tê-lo seguido.

“Acho que a palavra é ‘livramento’”, reflete ela, que prossegue: “Após esse rompimento, eu consegui perceber melhor as nossas vivências, olhar para o nosso passado e ver que não funcionava mais e que muita coisa estava sendo idealizada por mim. Consegui me fortalecer e abrir os meus olhos, principalmente para relações, lugares, pessoas e situações em que eu não gostaria de estar mais. Enfim, consegui me perceber como pessoa”. 

Minientrevista

Jailton de Souza, psicólogo, analista comportamental e professor do curso de psicologia da Estácio BH 

1. Como você define uma amizade verdadeira e saudável? Quais são os sinais de que uma amizade está se deteriorando ou se tornando tóxica? Uma amizade verdadeira e saudável se mostra a partir do interesse pelo bem-estar do outro, do entendimento sem julgamento, da compreensão e até da crítica construtiva. Já a deterioração da amizade começa a partir do momento em que há uma cobrança excessiva pela presença, quando começa a ocorrer ciúme exagerado, quando muitas vezes novas amizades são um incômodo para esse meu amigo de tempos ou amigo recente. Uma amizade tóxica é aquela em que eu não posso mais ter outros tipos de relacionamentos interpessoais ou relacionamento com outras pessoas. Essa amizade me inibe de conhecer outras pessoas. Muitas vezes, até questões de cunho particular, nos meus relacionamentos afetivos e familiares, tudo vira motivo de uma cobrança. É nesse momento que a gente precisa analisar e verificar algumas questões. 

2. Como reconhecer e respeitar os limites de si mesmo e do outro em uma amizade? Quais os sinais de que é hora de romper aquele vínculo? Uma das questões extremamente importantes na amizade é estabelecer limites. Afinal, apesar de se ter intimidade, a minha individualidade tem que ser respeitada. Outra questão é quando eu me sinto extremamente sobrecarregado por aquele amigo, que exige um excesso de escuta, fazendo dessa relação algo unilateral, em que só você se mostra presente. Também teremos problema quando não há respeito pelas questões de crença, diferenças políticas e estilos de comunicação. É preciso estar atento a situações em que há crítica constante sobre tudo o que fazemos e quando há carência excessiva, sendo que somos constantemente convocados a supri-la.