“Fiquei muito feliz ao descobrir que ia ser mãe. No ultrassom, soubemos que seria um menino. Ficamos honrados. Decidimos que ele carregaria o nome do pai, que, todo orgulhoso, contou para todos que teríamos um ‘varão’. Desde esse primeiro momento, passamos a seguir um padrão. O enxoval, por exemplo, tinha cores específicas que foram determinadas para o gênero masculino. Os brinquedos são, também, segregados. Boneca é de menina, e carrinho, de menino. Quando a gente projetava o futuro, pensava em aulas de futebol, de judô, de esportes radicais e em tipos de roupas e vestuários específicos. Contudo, logo na primeira infância, essas expectativas que eu tinha foram caindo por terra. Ao longo dos anos, o meu filho disse que aquelas brincadeiras que pensamos que seriam legais para ele, na verdade, não eram. Ele preferia outros brinquedos e outros tipos de brincadeiras. Na época, meu maior dilema era se devia ou não o impedir de brincar de boneca, de vestir minhas roupas, de usar meus sapatos, entre outras manifestações que já diziam sobre a expressão de sexualidade do Alessandro. Eu não sabia o que era ser mãe de uma criança LGBT e, por várias vezes, tentei impedi-lo de fazer ‘coisas de menina’. Agora sei que o que eu fiz foi provocar nele dor e culpa”. 

O relato, carregado de emoção, é da professora Soraya Ottoni, 48, que narra uma história que, da gestação aos primeiros anos de vida de Alessandro, atualmente com 22 anos, pode soar familiar e reverberar em outros diversos lares onde mães e pais se percebem diante do mesmo dilema que um dia assombrou a educadora: o de não saber o que fazer diante do comportamento de filhos e filhas que não agem conforme as expectativas neles depositadas pelo simples fato de nascerem com o sexo masculino ou feminino.

Hoje, Soraya dedica-se à luta pelo direito de toda e qualquer criança a uma infância plena, quer ela se adéque ou não a certos padrões de comportamento. Por essa razão é integrante do coletivo Mães Pela Liberdade, que acolhe famílias que possuem entes LGBTQIA+ em Minas Gerais. 

“Sei que, em algum momento, os pais tendem a negar a sexualidade de um filho não hétero. O que posso dizer é que eu não escolhi ser mãe de uma pessoa LGBTQIA+ da mesma maneira que a orientação sexual não foi uma opção para o meu filho. Mas eu, por muito tempo, tentei apagar a identidade dele. Tentei colocá-lo para fazer ‘coisas de meninos’ e enquadrá-lo nos ‘padrões’ impostos para aquele gênero. Infelizmente, isso só contribuiu para que ele desenvolvesse diversos problemas emocionais, sofresse com distorções de sua autoimagem e com depressão, chegando, inclusive, a tentar suicídio. Ele não se aceitava porque o mundo não o aceitava como ele é!”, lamenta.  

Soraya cita que Alessandro, que hoje se identifica como pessoa não-binária e homossexual, só ao completar 18 anos, decidiu se abrir com ela. “No dia do aniversário dele, ele me chamou no quarto e disse que queria conversar comigo, que tinha uma coisa importante para dizer. Quando contou que era gay, é claro, eu disse aquela frase clássica: ‘eu já sabia’”, recorda, lamentando que não tivesse dado sinais de abertura para que aquela conversa acontecesse mais precocemente. “Acredito que boa parte do sofrimento que meu filho enfrentou poderia ter sido evitado se, desde a primeira infância, houvesse espaço para essa conversa. Ele teria sido uma criança mais feliz, sem repressões, sem imposições. Por isso, acredito ser fundamental que os pais se mostrem abertos para o diálogo desde sempre. Sem dúvida, o ganho é relevante para todos os lados. Se a criança for heterossexual, ela aprenderá a ter respeito e empatia pelos que são diferentes dela. Se não for, ela saberá se valorizar sendo quem é”, indica. 

Heterossexualidade não é a única alternativa

Em uma realidade de maior acesso à informação, é provável que – a exemplo da história de Soraya e Alessandro Ottoni – mais famílias tenham que lidar com crianças e pré-adolescentes que, de maneira explícita ou velada, demonstram inquietações sobre como compreendem sua própria identidade e sexualidade. Pelo menos é o que se pode inferir a partir de uma pesquisa realizada pela agência J. Walter Thompson Innovation Group, nos EUA, segundo a qual menos da metade dos jovens da geração Z (nascidos entre 1996 e 2011, aproximadamente) se identificam como heterossexuais.  

O estudo recorreu à Escala Kinsey, uma espécie de “régua” que tenta descrever o comportamento sexual de uma pessoa ao longo do tempo e em seus episódios em um determinado momento. Para isso, o instrumento metodológico usa uma escala iniciando em 0, com o significado de um comportamento exclusivamente hétero, e terminando em 6, para comportamentos exclusivamente homossexuais. No caso da geração Z, apenas 48% se declaram 100% heterossexuais. Em comparação com a geração anterior, os millennials (nascidos, em média, entre 1981 e 1996), a percepção é notadamente diferente, já que 65% desses indivíduos se consideram 100% héteros.

Os dados do estudo, portanto, indicam um cenário em que a heterossexualidade já não é percebida universalmente como a única possibilidade, de forma que, muitas vezes, mães e pais se mostram surpresos ao ver seus filhos, ainda crianças ou pré-adolescentes, trazendo questões que os adultos tratam como tabu – sobretudo em uma sociedade que ainda reage mal à educação sexual, que é fator de proteção da infância. 

Na opinião do psicólogo Samuel Silva, especializado em atendimento ao público LGBTQIA+, é importante que mães, pais e pessoas que cuidam busquem informações confiáveis para desconstruir seus próprios preconceitos. “Em muitos casos, acontece que crianças e pré-adolescentes estão mais abertas e aptas para esse diálogo que os próprios adultos”, aponta. 

“Compreender que a heterossexualidade não é a única, mas uma das possibilidades naturais e saudáveis para a nossa sexualidade, já é um ótimo começo. Além disso, é necessário não recriminar, julgar ou ignorar as inquietações trazidas na conversa por mais que elas possam gerar desconforto. Acolher o diálogo é compreender que essas crianças e adolescentes estão buscando construir a sua compreensão acerca da vida; logo, seus questionamentos são genuínos”, aconselha o profissional.

“E, por fim, para tranquilizar mães, pais e pessoas que cuidam: falar sobre o tema não torna ninguém necessariamente LGBTQIA+. Na verdade, essa postura apenas trará mais naturalidade e tornará mais saudável o processo de se reconhecer enquanto pessoa. Por outro lado, a atitude de proibir e julgar esse diálogo não impedirá que a pessoa seja LGBTQIA+, apenas vai dificultar e trazer sofrimento para a construção da sua identidade”, salienta Samuel, que lembra: “Ter expectativas sobre como e quem serão suas filhas e filhos é natural e saudável. Não se trata de criticar isso. Mas ter essas expectativas é também reconhecer o que elas são: apenas expectativas. Use-as para nortear a educação e os ensinamentos, mas não para limitar e oprimir. Transforme suas expectativas em perspectivas, traga elas para o diálogo e construam juntos com filhas e filhos os próximos caminhos a seguir”.

Entrevista
Samuel Silva
Psicólogo clínico especializado em atendimento ao público LGBTQIA+

1. Algumas mães e alguns pais pontuam que essa conversa aparece de forma precoce, com os filhos ainda com pouca idade. Há, de fato, alguma idade em que essas questões venham à tona? No caso de a conversa acontecer muito cedo, conforme entendimento desses pais, como eles podem agir de forma a ajudar essa criança a se entender consigo mesma? Não existe uma idade específica. Isso dependerá muito do nível de autopercepção da crianças ou adolescente e da liberdade que vivenciam em casa para trazer esse assunto.  Surgir “cedo” talvez seja um ótimo indicativo de que a criança entende o ambiente familiar como acolhedor e seguro para se expressar. Ao surgir esse assunto é importante: 1) Não julgar ou punir – a criança está aprendendo sobre si e sobre a vida, logo é natural que tenha questionamentos; 2) Evitar verdades inquestionáveis – busque informações seguras e não preconceituosas para construir as suas respostas; 3) Ter objetividade e naturalidade nas respostas – deixe os seus preconceitos de fora; 4) Trazer afeto para esse momento – sobretudo a conversa deve refletir a qualidade de relação familiar que vocês vivem, não é uma simples aula, é a construção de uma vida; 5) Entender que conversar a respeito não significa concluir a questão – o assunto provavelmente retornará em outros momentos; 6) Ter abertura genuína para o diálogo – você também pode aprender com essa conversa.

2. É comum que os responsáveis por essas crianças atribuam tantos questionamentos à presença dos filhos em redes sociais e ao aparecimento mais frequente de pautas de sexualidade na mídia. Esse tipo de exposição pode, de fato, gerar um tipo de comportamento induzido? Comportamento induzido não, mas ampliação de autoconhecimento sim. O comportamento induzido acontece quando temos pouca consciência e autonomia limitada sobre as possibilidades de construção da nossa identidade. Assim somos levados a acreditar que existem respostas únicas. Ou seja, o comportamento induzido com relação à sexualidade era comum em gerações anteriores nas quais o debate ampliado sobre a sexualidade não existia e, portanto, a heterossexualidade era colocada como único caminho possível. Assim, várias pessoas foram induzidas a acreditar que eram heterossexuais apenas por essa ser a única identidade aceita socialmente como legítima. Hoje com a ampliação do debate temos outros caminhos sendo compartilhados. O que acontece então é que pessoas podem se identificar como não-heterossexuais sem vivenciar tanto sofrimento ou culpa nesse processo. Repito: não há indução, mas ampliação dos caminhos possíveis para que cada pessoa seja quem realmente é de forma mais natural, saudável e respeitosa.

3. Diante do dilema de se a ver com a própria sexualidade, mães e pais relatam perceber uma certa ansiedade de seus filhos em relação ao tema. De sua experiência ou da experiência de colegas com quem dialoga, esta tem sido uma queixa mais frequente nos consultórios? O que pode estar por trás dessa apreensão? O autoconhecimento é libertador, mas também é um processo que traz angústia. E isso faz parte. Anteriormente, por existirem respostas mais fechadas quanto à sexualidade, crianças e adolescentes eram levadas a acreditar na heterossexualidade como única resposta possível e demoravam mais para se questionar e vivenciar ansiedades relacionadas ao processo de se descobrir. Como hoje, felizmente, existe menos essa imposição de uma sexualidade única, as pessoas passam a pensar sobre si mais cedo. Isso naturalmente traz apreensão, mas não é necessariamente ruim. Angustiar-se faz parte do nosso processo de elaboração e descoberta de nós mesmos. É um indicativo de crescimento e autoconsciência.

4. Por fim, é possível se falar em crianças LGBTs? Falar em crianças LGBTQIA+ não só é possível, mas é natural e um importante passo na construção de uma sociedade que promova saúde mental para infâncias e adolescências LGBTQIA+. Vamos pensar o seguinte: existem crianças hétero? Nossa sociedade dirá (e sempre disse) que sim. Existia uma lógica de que a heterossexualidade era a única possibilidade existente e por isso era imposta como verdade para crianças e adolescentes. E isso gerava ainda mais sofrimento às pessoas LGBTQIA+ que ao se perceberem não-heterossexuais viviam sofrimentos intensos relacionados ao silenciamento, não aceitação, violência e exclusão quanto às suas identidades. Não por acaso é comum pessoas LGBTQIA+ terem a percepção de que foram impedidas de vivenciarem naturalmente suas infâncias e adolescências, já que viveram essas fases da vida pautadas em medo e julgamento, e não de forma leve e livre como outras pessoas. Logo, admitir que existam crianças LGBTQIA+ já é a primeira atitude para um melhor acolhimento. Além disso, é importante dizer que admitir isso não é sexualizar a infância. Pessoas preconceituosas tentam argumentar desonestamente que admitir infâncias LGBTQIA+ seria o mesmo que sexualizar as crianças. Não se trata disso. Trata-se apenas de acolher como naturais os sentimentos, pensamentos, questionamentos e vivências das crianças que já se percebam LGBTQIA+ assim como já é feito com as crianças que pressupomos serem heterossexuais. 

5. E como os adultos, sobretudo mães e pais, podem tornar o meio social mais acolhedor para esses sujeitos de direito? Tornar esse meio mais acolhedor é mais simples do que parece. Não é necessário ficar abordando o assunto a todo momento, mas sim dar a liberdade para que ele surja e trazer informações objetivas e sem preconceitos nessas situações. E por fim, não julgar quando as crianças vivenciarem sua identidade por meio de questionamento e/ou brincadeiras. Esse é o momento no qual elas estão construindo quem são como pessoas. Julgar esse processo não as fará serem como os adultos querem que sejam, só dificultará essa caminhada e trará sofrimento para as pessoas envolvidas.

Depoimento
Soraya Ottoni
Professora e integrante do coletivo Mães Pela Liberdade

Logo na primeira infância do meu filho eu, enquanto mãe, já o percebia diferente das demais crianças do mesmo gênero. Dava para ver nitidamente que se tratava de uma criança LGBT. Ele sempre dava preferência por brinquedos mais relacionados ao feminino, como as panelinhas, vassourinhas, aventais, sapatos de salto e maquiagens. Os temas de aniversário também eram voltados para o universo de sereias e fadas. Mas, foi no período escolar que tudo começou: ele era uma criança introspectiva, delicada, vítima de muitos comentários maldosos e desnecessários, além de ser autista.

No colégio, ele passava todo o tempo do recreio dentro do banheiro. Ele se escondia para não se expor. Em sala de aula, era completamente apático e antissocial. Não tirava dúvidas com os professores porque sua voz era fina e sua fala era suave. Suas notas escolares estavam sempre abaixo da média e sua vida social era o caos. Não tinha amigos e sofria bullying constantemente. Ali começava a minha saga como mãe de uma criança LGBT. 

Nas reuniões de pais de alunos, eu ouvia de tudo. “Seu filho não vai conseguir entrar para uma universidade, mas, não fique triste, mãe... Ele vai se enquadrar em alguma colocação compatível com sua condição...”. “Não compensa investir muito nele, acho que ele tem algum problema mental”. “Acho que você vai ter problemas com ele no futuro porque ele tem todos os trejeitos de veado”. E eu me perguntava: será que esses professores não entendem nada de inclusão? Será que eu teria que ensinar a diferença entre habilidades e competências? Será que esses profissionais da educação nunca ensinaram sobre orientação sexual como tema transversal e multidisciplinar? Foi ali que eu percebi que precisava acolher meu filho de forma incontestável. 

Ainda no final da sua infância e no início da adolescência, seus “trejeitos” afeminados foram reforçados e suas “estereotipias” em decorrência do autismo também eram recorrentes. Aos 14 anos, ele sofreu assédio sexual por um professor no banheiro do colégio. Depois, foi rotulado de “bichona escrota” por um familiar meu só porque ele gostava de pintar o cabelo. Além disso, ele passou a ser excluído de alguns grupos de “amigos” por conta do seu estilo de vida.

E com isso, veio a negação. Ele chegou a pregar o joelho no chão e conversar com Deus dizendo: “Deus, afasta de mim essa coisa que eu estou sentindo”. “Não quero ser uma aberração para a minha família”. “Não quero queimar no inferno”. Com isso, afastou-se da vida religiosa por não se sentir representado e nem amparado. Nesse processo, de negação de si, ele foi diagnosticado com depressão.

Foram dias e noites sem dormir, vigiando sua conduta, amparando sua dor, segurando sua mão. Retiramos todos os elementos pérfuro-cortantes de fácil alcance. Facas, tesouras, aparelho de barbear, cordas... Meu esposo entendeu que ser LGBT passou a ser uma das menores questões diante do risco de ter que enterrar nosso filho por ele mesmo não se aceitar como ele é. Não dormíamos enquanto os efeitos dos sedativos não faziam efeito. Eu sentava no chão, ao lado da sua cama, vendo-o chorando, encolhido, diminuído em sua fragilidade, falando frases em que ele precisava externar sua dor e eu era a única que estava ali para ouvir tudo aquilo. Imagina uma mãe ouvir do seu filho desabafos como: “Mãe, me deixa ir embora pra sempre”. 

Falar de suicídio para um suicida era um risco, mas era necessário. Meu casamento estava em frangalhos, meus amigos afastados, meus familiares traçando julgamentos do tipo “criou esse menino muito mi-mi-mi, por isso está assim”, “isso nem é depressão”, “isso é falta de Deus”, “falta de taca na época certa”, “é porque nunca pegou na enxada”... 

Nesses dois anos de luta, desenvolvi diversas compulsões. Descontava minhas dores principalmente na comida e no uso abusivo do álcool. Engordei, me embriaguei, dei trabalho para pessoas que tanto amo. Também fui criticada pelas minhas fraquezas... Foi no grupo de Mães Pela Liberdade que eu recebia um pouco de alento. Ali eu também recebi uma das coisas mais importantes: conhecimento. 

Hoje, meu filho está com 22 anos de idade, está curado da depressão. Ele vem me ensinando diariamente como ser não-binário. Mesmo ainda fazendo uso de medicação controlada, já está com previsão de desmame para este ano ainda e já está no mercado de trabalho. Fez cursos profissionalizantes de confeitaria e culinária. Faz bolos deliciosos e tem um pequeno empreendimento de vendas dessas coisas deliciosas que ele faz. Ele pretende fazer faculdade de gastronomia e, o melhor, aprendeu a se amar do jeito que ele é.