Vida ‘de adulto’

‘Síndrome da filha mais velha’ expõe sobrecarga e traumas de primogênitas

Responsabilizar crianças por tarefas “de adulto pode causar impactos na vida futura como ansiedade e até mesmo dificuldade de pedir ajuda e dizer não

Por Da Redação
Publicado em 24 de agosto de 2023 | 07:00
 
 
Relatos sobre o que foi chamado de 'síndrome da filha mais velha' viralizaram recentemente no TikTok Foto: Unsplash

A jornalista Rafaela Rocha tinha quase 4 anos quando sua irmã nasceu. E sentiu, desde o início, a necessidade de cuidar e estar presente para a criança. “Ela teve uma infecção que pegou ainda no hospital, então com dias de nascida, ela já tomava antibióticos e remédios fortes. Lembro que as pessoas não podiam entrar na minha casa porque ela estava muito vulnerável”, conta. Vendo o cuidado que os pais dedicavam à criança, ela acabou se tornando mais independente. O cenário também fez com que ela entendesse a irmã como uma pessoa mais frágil. “Durante toda a vida eu me responsabilizei muito por ela. Como ela sempre foi miudinha, fraquinha e eu sempre fui muito grande, deixava claro que ela era minha irmã e que se ela precisasse de qualquer coisa, eu sempre estaria disponível”, confessa.

O relato da jornalista se mistura a outros tantos casos de irmãs mais velhas que, de certa forma, se sentem responsáveis pelos mais novos ou, em alguns casos, acabam incumbidas de cuidar deles. A situação é tão comum que ganhou até mesmo um nome entre usuários das redes sociais: “síndrome da filha mais velha”. No TikTok, por exemplo, há até mesmo uma hashtag, em inglês, que reúne experiências de diversas mulheres que têm irmãs ou irmãos mais novos. Somente na plataforma, já são mais de 20 milhões de visualizações nesse tipo de conteúdo. 

Embora Rafaela não sinta que o desejo ou o próprio papel mais responsável com a irmã tenha a impactado de forma negativa, a situação não é a mesma para todo mundo. Entre os relatos feitos no TikTok há mulheres que confessam, entre várias coisas, que por passarem tanto tempo cuidando dos irmãos - e em alguns casos até mesmo dos pais - não desejam ter filhos. 

Uma dessas postagens que levanta esse paralelo foi feita pela usuária Israa Nazir e é acompanhada por inúmeros relatos de pessoas que dizem viver a mesma situação. “Filha mais velha aqui. Eu passei a minha infância gerenciando as emoções dos meus pais, sendo mãe dos meus irmãos. Passei a minha infância cumprindo o papel dos meus pais. Estou cheia. Não quero mais”, confessa a usuária “Brige_Mae_”. O comentário ultrapassa os 2,8 mil likes. Outro relato que reforça o coro é de uma mulher chamada Alexis. Ela diz que também é a filha mais velha e que aguentou muito quando criança. “Eu apenas não tenho energia para cuidar de outro humano”, diz. 

Os impactos causados por assumir o cuidados dos irmãos ou até mesmo outras responsabilidades relacionadas à vida doméstica também se estendem para outras áreas. É isso o que explica a psicóloga Elayne Novais. Especialista em terapia cognitivo-comportamental, ela afirma que a filha mais velha pode acabar assumindo inúmeras tarefas, fazendo com que a carga e o cansaço físico sejam visíveis, mas que o peso e dor emocional passem despercebidos. 

Ainda, conforme a psicóloga, mulheres que passam por essas situações podem acabar desenvolvendo estruturas mentais de funcionamento mais rígidas, o que dificulta ações importantes para o bem estar emocional como o simples ato de pedir ajuda. “A mente entende que elas ‘dão conta de tudo sozinhas’. Elas também se tornam mulheres que se sentem sobrecarregadas, muitas não conseguem delegar tarefas a outras pessoas e acabam sacrificando exageradamente seus desejos e momentos de lazer, que também são essenciais para a saúde mental”, acrescenta. 

Elayne conta, ainda, que a sobrecarga e o peso das responsabilidades assumidas desde criança também podem fazer com que, no futuro, essas mulheres sintam-se mais ansiosas, tenham dificuldades para se posicionar de forma assertiva e também que se torne difícil dizer não. “Isso acontece por um medo, muitas vezes inconsciente, de não serem aprovadas ou aceitas, porque muitas vezes eram reforçadas com elogios ou com castigos a cumprirem todas as tarefas”, explica. 

Cultura reforça papel “cuidador” da mulher

A grande maioria de relatos femininos e o próprio nome da “síndrome”, que se refere exclusivamente às filhas mais velhas, mostra o quanto o contexto sociocultural ainda delega à mulher o papel de cuidadora. “De modo geral, na nossa cultura, as filhas são ensinadas a realizarem tarefas domésticas desde muito cedo, seguindo o modelo da mãe, que durante muito tempo na história, era restrita apenas ao trabalho doméstico”, pontua Elayne. 

Dentro desse cenário, a filha mais velha acaba ficando encarregada de realizar as tarefas de casa. Em situações atípicas dentro da família, ela poderia assumir ainda mais responsabilidades, como cuidar dos pais doentes, limpar toda a casa, cuidar dos irmãos mais novos e em casos mais extremos, assumir o posto de trabalho de um dos pais. “Uma paciente, que na vida adulta tem muita dificuldade de pedir ajuda e delegar tarefas para outras pessoas, me contou que o pai faleceu quando ela tinha 13 anos e, com isso, ela passou a tomar conta do bar que ele administrava, além de ter que cuidar da casa e dos irmãos mais novos”, exemplifica a psicóloga. Ela ainda lembra que a mesma paciente também sentia medo de não conseguir aguentar tanto cansaço acumulado. 

A psicóloga Tatiana Zanatto, por outro lado, acredita que não há predileção por gêneros quando o assunto é impor funções às crianças. “Meninos e meninas têm tarefas impostas. No consultório não percebo uma predileção por meninas. O que pode justificar a maioria dos relatos de mulheres é o fato de que os homens têm uma tendência, até  cultural, de suprimir suas emoções”, observa. 

Ainda, conforme Tatiana, as queixas vindas de mulheres demonstram, também, o quanto os núcleos familiares estão desorganizados e desadaptados. “Para aquelas que apresentam esta dor, o ideal é buscar terapia para analisar de maneira aprofundada os sentimentos, vivências e emoções oriundas deste nuclear familiar”, orienta. 

Crianças não devem assumir responsabilidades de adultos

Na madrugada do último sábado, 19 de agosto, uma mulher de 26 anos foi presa depois de deixar os quatro filhos, com idades entre 2 e 5 anos, presos e sozinhos dentro de casa. A situação, que aconteceu na cidade de Joaíma, no Vale do Jequitinhonha, foi descoberta após as crianças gritarem por socorro por cerca de três horas e os vizinhos chamarem a polícia. 

A situação, considerada um crime de abandono de incapaz pelo Código Penal Brasileiro, reflete o quanto muitas crianças acabam sofrendo ao terem que assumir tarefas para as quais não têm idade, nem capacidade para cumprir. No caso mineiro, quem havia ficado “responsável” pelas crianças, segundo a mãe, era a filha mais velha, de apenas 5 anos. 

Vale ressaltar que a legislação brasileira determina que “os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores”, considerando, ainda, que pessoas com menos de 16 anos “são absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil”.

Para além da questão legal, os impactos psicológicos e emocionais também podem ser notados. “Para uma criança ter responsabilidades além do que seu cérebro é capaz, representa stress e sofrimento. Ela acaba não completando fases importantes de seu desenvolvimento. Isso pode acarretar em quadros de depressão e ansiedade para a criança”, ressalta Tatiana Zanatto.