Apesar das diversas conquistas relacionadas a pautas da liberdade sexual e da sexualidade que ocorreram nas últimas décadas, há um tema que ainda parece pouco explorado e que permanece cercado de tabus: o sexo anal. Em geral, o simples ato de tocar no assunto é suficiente para gerar reações de embaraço e até de repulsa – e não apenas por conta de valores religiosos e por certo moralismo. Ocorre que, tratado por muito tempo como uma perversão, mesmo no meio médico, o ato de obter prazer por meio da estimulação ou da penetração do ânus permanece estigmatizado e classificado como um “comportamento de risco”. Tantos constrangimentos e pudores, contudo, não significam que a prática seja uma exceção – o que, aliás, está longe de ser. Embora seja verdade que, assim como pouco se fala, há também pouca pesquisa sobre essa forma de prazer erótico, as investigações disponíveis indicam que o sexo anal é uma alternativa para a maioria das pessoas.

Nacionalmente, um dos principais inquéritos sobre o assunto foi conduzido pelo Instituto Datafolha, em 2009. Ouvindo brasileiros com idade entre 18 e 60 anos, em 125 municípios de todas as regiões do país, o estudo, apesar de desatualizado, é importante por revelar como a modalidade é comum à maior parte da população: segundo a apuração, 64% dos entrevistados, considerando as pessoas que já haviam se relacionado sexualmente, confirmaram que já haviam experimentado o ato, enquanto 20% disseram nunca tê-lo praticado. O Datafolha também expôs que 72% das pessoas bissexuais, 62% das homossexuais e 34% das heterossexuais garantiram ter gostado, em alguma medida, de obter prazer anal. Por outro lado, não gostaram 17%, 26%, e 32%, respectivamente.

Entretanto, ainda que pautas comportamentais tenham avançado nos 12 anos que se passaram desde a pesquisa, a percepção ainda é a de que o sexo anal permanece um tema sobre o qual não se fala. “Até mesmo nos consultórios, não é algo que chega diretamente. Em geral, o assunto vai surgindo aos poucos, como uma questão secundária”, informa a sexóloga e psicanalista Lelah Monteiro. Curiosamente, “é mais comum que essas perguntas surjam nas redes sociais e em programas de rádio”, complementa. Para ela, esta é uma evidência de como essa forma de prazer erótico segue sendo tratada como algo vergonhoso, sobre o qual não se deve sequer manifestar, à luz do dia, qualquer curiosidade.

Para piorar, a postura de profissionais da saúde reforça o tabu do prazer anal. É o que constatou o antropólogo William J. Robertson, da Universidade do Arizona, nos Estados Unidos. Após analisar 147 publicações médicas sobre corpos estranhos no reto, o pesquisador demonstrou que era recorrente a associação entre essas ocorrências e práticas sexuais “pervertidas ou aberrantes”. Para ele, esse comportamento pode contribuir para que pacientes evitem buscar ajuda mesmo em situações emergenciais. Trata-se de um preconceito que dialoga com a perspectiva moralista, já socialmente enraizada, com que se encara o ato sexual. Como situa o psicólogo e terapeuta Paulo Tessarioli, mesmo na contemporaneidade, as expressões de desejo que se dissociam, simbolicamente, do ideal reprodutivo tendem a serem reprovados.

Leia também: Cospe ou engole? Apesar de ser uma prática disseminada, o sexo oral ainda é cercado de tabus

Mas se, publicamente, pouco se fala sobre o sexo anal, na intimidade da vida privada a prática parece se tornar cada vez mais popular, como observa a comunicóloga Ana Carolina Sanseverino Silva, que fundou, em 2016, a loja de sex toys Sob Sigilo. “Noto que as pessoas estão entendendo que essa é uma forma de potencializar o prazer. Hoje, 15% do meu faturamento vem de produtos específicos para essa prática”, revela. A demanda é tamanha que a empresária criou uma categoria específica de produtos dedicados aos que vão explorar a região pela primeira vez. “Atualmente, os itens do ‘primeiro anal’ são os que eu mais vendo”, admite.

O problema de se fazer, porém nunca se falar sobre, é que esse constrangimento repercute em uma profunda carência de informações. E tanto desconhecimento pode se tornar um problema de saúde pública.

Empalamento. Por conta disso, no caso da busca por prazer solitário ou compartilhado, por exemplo, parcela da população ignora o risco de empalamento. “Trabalhei por anos em um hospital, e, infelizmente, é grande o volume de pessoas que são internadas depois de colocarem objetos inadequados no ânus, então é preciso muito cuidado”, pontua Lelah, detalhando que existe uma grande pressão nessa região, de forma que itens inseridos no reto podem ser sugados para dentro do intestino.

“É uma prática que pode ser perigosa, e, por isso, é preciso recorrer a produtos específicos, que podem ser encontrados em sex shops e que possuem uma parte externa a fim de prevenir esse tipo de ocorrência”, alerta, lembrando que se deve evitar itens que possam causar cortes, que possam se romper ou que migrem para dentro do intestino.

Higiene. Outro mito comum está relacionado à lavagem retal. O método de limpeza é bastante popular, como demonstrou um estudo brasileiro de 2017. Ouvindo homens cis e mulheres travestis e transexuais que fizeram sexo anal nos últimos três meses anteriores à pergunta, mais da metade (54%) havia realizado a chamada “chuca” ou “chuveirinho”. 

No entanto, Lelah não recomenda essa técnica. Ela adverte que o uso de água encanada para a limpeza interna do órgão, quando há excesso pela quantidade e/ou pela frequência, pode prejudicar a na flora intestinal de microrganismos benéficos e causar lesões da mucosa, deixando a pessoa mais vulnerável a Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs). Além disso, o uso de duchas compartilhadas também aumenta o risco de contágio. O uso de grande quantidade de água pode, inclusive, fazer com que fezes localizadas no intestino grosso desçam, de forma que a lavagem terá o efeito oposto ao desejado. “Se, durante o sexo, a parceria ficar suja, deve-se agir com naturalidade e leveza, afinal, é uma região em que se está sujeito a esse tipo de incidente”, aconselha a sexóloga.

Preservativo. A crença de que se pode dispensar o uso de preservativo no sexo anal é outro grave problema, ainda muito comum. “Principalmente nas relações heterossexuais (quando a mulher é penetrada), muitos casais dispensam a camisinha porque pensam que nessa relação não é possível engravidar. Porém, é preciso lembrar que há riscos de ISTs”, expõe, citando que, após penetrar o ânus, é importante descartar o preservativo e utilizar outro para o sexo vaginal, pois microorganismos presentes na região anal podem provocar complicações quando migram para a vagina, causando, por exemplo, infecção urinária.

Prazer. Por fim, Lelah é enfática ao dizer que um homem não vai ser menos hétero ou menos cisgênero por gostar da estimulação ou da penetração anal. “Se bem explorada, é uma região prazerosa. E não há nada de errado em investigar essa zona erógena. Então, é, sim, uma verdade que qualquer pessoa pode sentir prazer pelo simples fato de estarmos falando de um órgão muito vascularizado”, explica, advertindo que o reto e intestino não possuem lubrificação, e, portanto, é essencial o uso de lubrificantes.

Sentir-se confortável é essencial para o prazer

Entre os produtos eróticos ofertados aos iniciantes por Ana Carolina Sanseverino Silva, há utensílios descartáveis para a realização da ducha retal. “Não é uma coisa para se fazer sempre, mas, se a pessoa está nervosa e isso vira uma grande questão, ela pode realizar nessa sua primeira aventura até para conseguir relaxar, o que é essencial no sexo anal. E, nesse caso, é importante que faça da forma correta”, explica, detalhando que não se deve usar mais de 300 mL de água na operação.

“Há também dessensibilizantes, que vão reduzir um pouco a dor, mas sem anestesiar completamente o local”, informa. Outra opção são os plugues anais, “que são menores e podem ser usados até para se acostumar com a prática”, sugere. Ela também lembra que essencial mesmo é o uso de lubrificante e de preservativo.

Vale lembrar que, diferentemente do externo, não é possível controlar o esfíncter interno. Portanto, é fundamental que a pessoa que vai ser penetrada esteja esteja bastante excitada e relaxada.

A série Sex Education, da Netflix, trouxe para a TV algumas questões sobre o sexo anal

Tá faltando #SexEducation? 👀 pic.twitter.com/eXz60rxBq9

— netflixbrasil (@NetflixBrasil) January 22, 2020

Assim como Lelah Monteiro, Ana Carolina relata serem comuns os casos de pessoas que introduzem objetos inadequados no ânus. “Existem produtos específicos, que foram desenvolvidos para que a prática ocorra de forma segura. Sabemos que, muitas vezes, a pessoa está tomada de tesão e quer realizar aquela vontade imediatamente. Por isso, se o sujeito não tem itens apropriados naquele momento, é importante lembrar que a maioria dos sex shops têm serviços de entrega rápida e atendimento 24 horas justamente para responder à urgência do desejo”, indica. Ela detalha que esses objetos precisam possuir, em sua estrutura, uma base, que vai impedir que o produto seja sugado para dentro da pessoa.

Dilema. Para a empresária, o sexo anal é a expressão máxima do prazer, e também um dilema. “As pessoas que vão ser penetradas, muitas vezes, pensam que só o outro vai sentir prazer, que vai ser doloroso, o que não é verdade. Ao mesmo tempo, noto que todo mundo está cada vez mais curioso e mais disposto a potencializar seu orgasmo. Ainda assim, para chegar a pedir pelo sexo anal, o sujeito tem que estar com muito tesão, é por isso que considero o ápice do prazer”, examina.